Através das várias obras consagradas
às artes muçulmanas, pode-se observar que, como qualquer
repositório de tradição cultural, as mesmas operam
uma espécie de sedimentação, ainda que uma ou
outra pesquisa possa alterar vez por outra os esquemas classificatórios
estabelecidos. As explicações dos fenômenos artísticos
por intermédio de simples comparações formais,
têm subtraído das análises a dimensão teórica
do ideário afirmado pelas várias tendências e
movimentos que se agitam no curso do processo histórico. Se
quisermos entender melhor as manifestações artísticas
do Islã, teremos que considerar as injunções
de interesse em meio às quais elas floresceram, sejam as heranças
artísticas, as exigências religiosas, a evolução
no tempo, as influências geográficas, etnográficas
e filosóficas ou mesmo, o espírito do artista e o ideal
de beleza concebido pela civilização muçulmana.
Para discorrermos sobre uma possível unidade
estética, iconográfica ou estilística
nas artes visuais dos povos islâmicos e suas influências
no mundo ocidental, faz-se necessário, em primeiro
lugar, entender que no começo, não havia
uma entidade muçulmana no que se refere à
dimensão étnica ou geográfica. Não
havia uma arte islâmica, no sentido que há
uma arte chinesa ou uma arte mexicana. Não havia,
simplesmente, um período de arte como o Gótico
ou o Barroco.
Fatores políticos e sociais transformaram um
grande número de terras, com histórias distintas,
em territórios muçulmanos. Os árabes
que formaram o Islã não praticavam nenhum
tipo de arte - a não ser a literatura - e se impuseram
como uma aristocracia militar aos países conquistados.
Herdaram, assim como toda a Idade Média, o desprezo
que a Antigüidade outorgava à arte chamada
mecânica ou servil, na qual se confundiam, indistintamente,
todas as ações operativas que demandassem
o trabalho manual. A tudo quanto era servil associava-se
a condição própria da escravidão.
Uma
vez que, no princípio, o Islã não possuía
ou propagasse uma arte particular, serão os artistas locais,
cristãos em sua maior parte, os depositários de tradições
milenares, que responderão num primeiro momento ao comando
dos novos mestres. Utilizando-se de um acervo próprio desenvolvido
até então, os artistas das regiões conquistadas
adaptarão uma linguagem artística às necessidades
dos conquistadores e não à uma nova estética
que pudesse ser considerada, verdadeiramente, muçulmana(1). A peculiaridade do espírito árabe consistiu em ter
permanecido íntegro em todas as partes. Dominou, ao mesmo tempo
que não construiu nada por si. Anárquico e sempre uno,
sem fronteiras materiais, pôde, por isso mesmo, adaptar-se às
expressões artísticas dos povos vencidos, ao mesmo tempo
que estes se deixavam absorver pela sua unidade.
Não
é portanto apropriado falarmos genericamente de uma arte visual
islâmica e sim considerar separadamente as áreas que
se tornaram muçulmanas, como Espanha, Sicília, Norte
da África, Egito, Síria, Mesopotâmia, Pérsia,
Anatólia, Índia, onde a arte resultou de uma complexa
simbiose de elementos não-islâmicos reelaborados pela
nova civilização e integrados ao contexto onde foram
criados. Na Sicília observa-se uma curiosa mistura de elementos
greco-romanos, normandos, bizantinos e muçulmanos. A arte persa,
em particular, exibe uma série de características (certos
temas como a representação de pássaros ou uma
tradição épica na pintura), que deve pouco ao
seu caráter islâmico do século VII. A arte otomana
divide uma tradição mediterrânea de concepção
arquitetural com a Itália mais do que com o resto do mundo
islâmico. A presença da arte visual islâmica na
China, Cor�ia e Japão é distinta daquela do ocidente
cristão.
Na
expansão do mundo árabe a riqueza destas diversidades
vai se tornando cada vez mais evidente ao longo de toda a Idade Média,
quer no ocidente, quer no oriente. Restringimos este trabalho à
Alta Idade Média, portanto, aos primórdios do Islã,
abordando apenas as artes visuais muçulmanas na Espanha - especialmente
a mesquita de Córdoba - e na região do Magreb, como
as mais significativas dos primeiros séculos de expansão
ocidental, que se seguiram à Hégira. Tanto a Espanha
quanto a parte setentrional da África, revelam uma forte independência
artística e política dentro do mundo islâmico.
O ocidentalismo irrompeu, vigorosamente, tanto no sentido geográfico
quanto no sentido cultural, sustentado pelas relações
de convivência entre elementos do Islã e do Cristianismo.
A
independência do ocidente Islâmico manifestar-se-á
pela cisão política, com a fundação de
uma dinastia hispano-omíada, em Córdoba, por Abd er-Rahman
I, príncipe da casa dos Omíadas, de Damasco. Nas terras
férteis de al-Andalus, renasceria em meio à uma civilização
compósita, sob linhas, formas e cores, o espírito
do deserto.
Notas
(1)Para
um aprofundamento dessa discussão ver A. Papadopoulo. Islam
et lArt Musulman. Paris: DArt Lucien Mazenod, 1976.