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O esp�rito do deserto

M�rian Silva Rossi
1. Introdu��o
gif.gif (49 bytes)Através das várias obras consagradas às artes muçulmanas, pode-se observar que, como qualquer repositório de tradição cultural, as mesmas operam uma espécie de sedimentação, ainda que uma ou outra pesquisa possa alterar vez por outra os esquemas classificatórios estabelecidos. As explicações dos fenômenos artísticos por intermédio de simples comparações formais, têm subtraído das análises a dimensão teórica do ideário afirmado pelas várias tendências e movimentos que se agitam no curso do processo histórico. Se quisermos entender melhor as manifestações artísticas do Islã, teremos que considerar as injunções de interesse em meio às quais elas floresceram, sejam as heranças artísticas, as exigências religiosas, a evolução no tempo, as influências geográficas, etnográficas e filosóficas ou mesmo, o espírito do artista e o ideal de beleza concebido pela civilização muçulmana.
gif.gif (49 bytes)Para discorrermos sobre uma possível unidade estética, iconográfica ou estilística nas artes visuais dos povos islâmicos e suas influências no mundo ocidental, faz-se necessário, em primeiro lugar, entender que no começo, não havia uma entidade muçulmana no que se refere à dimensão étnica ou geográfica. Não havia uma arte islâmica, no sentido que há uma arte chinesa ou uma arte mexicana. Não havia, simplesmente, um período de arte como o Gótico ou o Barroco.
gif.gif (49 bytes)Fatores políticos e sociais transformaram um grande número de terras, com histórias distintas, em territórios muçulmanos. Os árabes que formaram o Islã não praticavam nenhum tipo de arte - a não ser a literatura - e se impuseram como uma aristocracia militar aos países conquistados. Herdaram, assim como toda a Idade Média, o desprezo que a Antigüidade outorgava à arte chamada mecânica ou servil, na qual se confundiam, indistintamente, todas as ações operativas que demandassem o trabalho manual. A tudo quanto era servil associava-se a condição própria da escravidão.
gif.gif (49 bytes)Uma vez que, no princípio, o Islã não possuía ou propagasse uma arte particular, serão os artistas locais, cristãos em sua maior parte, os depositários de tradições milenares, que responderão num primeiro momento ao comando dos novos mestres. Utilizando-se de um acervo próprio desenvolvido até então, os artistas das regiões conquistadas adaptarão uma linguagem artística às necessidades dos conquistadores e não à uma nova estética que pudesse ser considerada, verdadeiramente, muçulmana(1). A peculiaridade do espírito árabe consistiu em ter permanecido íntegro em todas as partes. Dominou, ao mesmo tempo que não construiu nada por si. Anárquico e sempre uno, sem fronteiras materiais, pôde, por isso mesmo, adaptar-se às expressões artísticas dos povos vencidos, ao mesmo tempo que estes se deixavam absorver pela sua unidade.
Não é portanto apropriado falarmos genericamente de uma arte visual islâmica e sim considerar separadamente as áreas que se tornaram muçulmanas, como Espanha, Sicília, Norte da África, Egito, Síria, Mesopotâmia, Pérsia, Anatólia, Índia, onde a arte resultou de uma complexa simbiose de elementos não-islâmicos reelaborados pela nova civilização e integrados ao contexto onde foram criados. Na Sicília observa-se uma curiosa mistura de elementos greco-romanos, normandos, bizantinos e muçulmanos. A arte persa, em particular, exibe uma série de características (certos temas como a representação de pássaros ou uma tradição épica na pintura), que deve pouco ao seu caráter islâmico do século VII. A arte otomana divide uma tradição mediterrânea de concepção arquitetural com a Itália mais do que com o resto do mundo islâmico. A presença da arte visual islâmica na China, Cor�ia e Japão é distinta daquela do ocidente cristão.
gif.gif (49 bytes)Na expansão do mundo árabe a riqueza destas diversidades vai se tornando cada vez mais evidente ao longo de toda a Idade Média, quer no ocidente, quer no oriente. Restringimos este trabalho à Alta Idade Média, portanto, aos primórdios do Islã, abordando apenas as artes visuais muçulmanas na Espanha - especialmente a mesquita de Córdoba - e na região do Magreb, como as mais significativas dos primeiros séculos de expansão ocidental, que se seguiram à Hégira. Tanto a Espanha quanto a parte setentrional da África, revelam uma forte independência artística e política dentro do mundo islâmico. O ocidentalismo irrompeu, vigorosamente, tanto no sentido geográfico quanto no sentido cultural, sustentado pelas relações de convivência entre elementos do Islã e do Cristianismo.
gif.gif (49 bytes)A independência do ocidente Islâmico manifestar-se-á pela cisão política, com a fundação de uma dinastia hispano-omíada, em Córdoba, por Abd er-Rahman I, príncipe da casa dos Omíadas, de Damasco. Nas terras férteis de al-Andalus, renasceria em meio à uma civilização compósita, sob linhas, formas e cores, o “espírito do deserto”.
Notas
(1) Para um aprofundamento dessa discussão ver A. Papadopoulo. Islam et l’Art Musulman. Paris: D’Art Lucien Mazenod, 1976.