Livro: Mais malandros: ensaios tropicais e outros
Autor(es): Kenneth Maxwell
Editora: Paz e Terra
Ano: 2002
Nº de páginas: 268

Para quem ainda hoje imagina que o pr�ncipe regente dom Jo�o agiu de maneira pusil�nime, em novembro de 1807, ao deixar o Reino entregue � pr�pria sorte para instalar a sua corte no Rio de Janeiro, o ensaio �Por que o Brasil foi diferente? Os contextos da Independ�ncia�, que faz parte do livro "Mais malandros: ensaios tropicais e outros", de Kenneth Maxwell, n�o deixa d�vidas: se a corte portuguesa n�o tivesse partido para o Brasil como planejado e, em vez disso, houvesse cedido �s exig�ncias francesas, os brit�nicos teriam bombardeado Lisboa, como o haviam feito pouco tempo antes em Copenhague e teriam destru�do ou apreendido os navios portugueses no porto. O almirante sir Sidney Smith havia recebido instru��es claras de Londres para que, sob nenhuma hip�tese, a armada portuguesa ca�sse nas m�os dos franceses.


Na abertura deste ensaio, que trata de colocar muitos fatos da Hist�ria no lugar, Maxwell observa que os historiadores portugueses �s vezes ainda escrevem como se o Brasil jamais houvesse existido - a mais recente e prestigiosa hist�ria de Portugal sobre o s�culo XVIII, diz, praticamente n�o menciona o Brasil (Ant�nio Manuel Hespanha (ed.), "O Antigo Regime", vol. 4, Hist�ria de Portugal, 8 vols., ed. Jos� Mattoso, Lisboa, Estampa, 1997), muito embora, durante quase todo esse per�odo, 60% da receita do Estado derivassem da col�nia americana. J� os historiadores brasileiros, constata o brazilianist, freq�entemente, ignoram as importantes dimens�es transatl�nticas dos conflitos pol�ticos internos e das limita��es econ�micas do Brasil.


Maxwell, nascido na Inglaterra e radicado nos Estados Unidos, diretor do Programa para a Am�rica Latina do Conselho de Rela��es Exteriores, de Nova York, � um respeitado especialista em v�rios momentos da hist�ria comum de Brasil e Portugal. "Conflicts and conspiracies: Brazil and Portugal 1750-1808" ou "Devassa da devassa", o primeiro de pelo menos tr�s livros fundamentais, descreve os motivos centrais que levaram � Inconfid�ncia Mineira, apresentando o movimento como reflexo dos interesses imediatos de antigos �s�cios� da Coroa, capitalistas que haviam constru�do fortunas � sombra do Estado na base do contrabando e da corrup��o. Tudo isso mostrado sem o facciosismo, o nacionalismo e o empirismo que marcaram os historiadores brasileiros da primeira metade do s�culo 20.


Maxwell � tamb�m autor de "Marqu�s de Pombal: paradoxo do Iluminismo", de 1996, biografia do mais famoso ministro da Hist�ria portuguesa em que d� um destaque at� ent�o nunca visto ao papel do Brasil nos destinos de Portugal, mostrando que, se a fam�lia real n�o se transferisse para o outro lado do Atl�ntico, os ingleses poderiam optar por uma rela��o direta com a col�nia em detrimento da metr�pole. O outro grande livro de Maxwell � "A constru��o de democracia em Portugal" em que discute a Revolu��o dos Cravos e seus efeitos que conduziram � democracia e � descoloniza��o portuguesa.


Mais recentemente, publicou o ensaio �Lisboa: o terremoto de 1755 e a recupera��o urbana sob o Marqu�s de Pombal� na revista Out of Ground Zero, julho de 2002, que re�ne uma s�rie de leituras apresentadas sob os ausp�cios do Temple Hoyne Buell Center for the Study of American Architecture na Columbia University para, a partir dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 que redundaram na implos�o do World Trade Center, em Nova York, discutir a recupera��o de v�rias urbes que, ao longo da hist�ria, foram submetidas a cataclismos, inc�ndios ou bombardeios, como Chicago, Hiroshima, Roterd�, Plymouth, Berlim, Jerusal�m ou ainda algumas cidades dos B�lc�s.


Mais malandros: ensaios tropicais e outros, que segue na esteira de Chocolate, piratas e outros malandros: ensaios tropicais, re�ne trabalhos que o historiador escreveu originalmente para o site www.no.com.br (Not�cia e Opini�o), uma das mais importantes experi�ncias brasileiras na Internet, mas que, por falta de f�lego financeiro, j� deixou de existir, e para o suplemento Mais do jornal Folha de S.Paulo, embora �Por que o Brasil foi diferente: os contextos da Independ�ncia� tenha sido publicado em O Estado de S.Paulo (23-30/7/2000), o que n�o � assinalado no livro.


Se alguns desses artigos perderam um pouco do vigor inicial porque, abordando temas da atualidade e no calor de hora, muitas de suas conclus�es j� foram superadas pelo tempo, h� ensaios de interesse permanente, dos quais, al�m do assinalado, pelo menos mais dois v�o atrair a aten��o dos historiadores. Um deles � �O caso C.R. Boxer: her�is, traidores e o Manchester Guardian� em que Maxwell tra�a um bem acabado perfil do historiador brit�nico Charles Ralph Boxer (1904-2000), v�tima, depois de morto, de uma acusa��o inserta num artigo publicado no jornal ingl�s The Guardian em 23 de fevereiro de 2001 por Hywel Williams.


Segundo o articulista, Boxer pode ter sido um �traidor� que entregou seus colegas oficiais num campo de prisioneiros comandado por japoneses em Hong Kong de uma maneira que solapou todo o sistema de intelig�ncia brit�nico no Sudeste da �sia. Para ele, Boxer era �um intelectual globalista � frente de seu tempo� cujo trabalho �forjou as pressuposi��es das elites p�s-coloniais e antiocidentais no Brasil, na �frica Ocidental e no Jap�o, onde � lido, traduzido e celebrado�.


Maxwell lembra que, em seguida, o Guardian publicou uma detalhada refuta��o das acusa��es de Williams escrita pelo historiador norte-americano Dauril Alden, autor de uma biografia de Boxer que, a esta altura, j� deve ter sido publicada pela Funda��o Oriente, de Lisboa. A refuta��o do professor Alden, um meticuloso erudito da velha escola para quem a documenta��o s�lida � o n�cleo da erudi��o hist�rica, segundo Maxwell, consta do site do Guardian (www.guardian.co.uk). J� o artigo de Williams, diz, foi removido dos arquivos, provavelmente porque o Guardian ficou envergonhado de public�-lo.


Refer�ncia obrigat�ria para qualquer investigador contempor�neo da hist�ria de Portugal e do Brasil, Boxer, lembra Maxwell, desafiou a propaganda �lusotropicalista� da ditadura de Salazar ao revolver suas ra�zes na afirma��o de Gilberto Freyre de que os portugueses coloniais n�o mantinham preconceitos raciais, o que o levou a ser sistematicamente difamado pelo regime salazarista e seus defensores.


Boxer, diz o historiador, n�o era nenhum traidor, nem em sua pr�pria mente foi um her�i. Tinha uma �integridade feita de granito�, na defini��o de um seu velho amigo, o professor Peter Marshall, do King�s College. E, segundo Maxwell, foi �um velho porfiador�, tal como ele tinha definido Salvador Corr�a de S� Benevides (1602-1686), personagem de um de seus melhores livros Salvador de S� e a luta pelo Brasil e Angola.


Outro ensaio que por si s� vale o livro � �Uma dupla incomum� em que Maxwell descreve a amizade entre o abade Jos� Corr�a da Serra (1750-1823) e Thomas Jefferson (1743-1826), paladino da independ�ncia norte-americana e grande senhor de escravos. O historiador mostra como os pensadores iluministas portugueses nada ficavam a dever aos seus pares franceses e americanos. E narra como o abade Correa da Serra ajudou a reformar a Universidade de Lisboa no sentido de investir na educa��o cient�fica e formar novos quadros para a elite dirigente do pa�s. Secret�rio da Academia das Ci�ncias de Lisboa, o abade, segundo o intendente Pina Manique, �desvirtuava� as id�ias do Duque de Laf�es, presidente da institui��o.


Maxwell observa que Corr�a da Serra exerceu forte influ�ncia sobre Jefferson, mas estranha que isso nunca tenha sido ressaltado pelos historiadores. Foi o abade quem aconselhou Jefferson a preservar a separa��o entre Igreja e Estado na Virg�nia, especialmente em sua nova universidade estatal. Como Corr�a da Serra, anticlerical e antijesu�ta, sempre foi odiado pela velha nobreza de Portugal, Maxwell acredita que tenha sido esse o motivo pelo qual muitos historiadores cat�licos trataram de diminuir sua import�ncia hist�rica.


Para o scholar, n�o � imposs�vel que o abade Corr�a da Serra fa�a parte da complexa hist�ria clandestina dos crist�os-novos em Portugal. Ali�s, lembra, o processo n�mero 1.911 da Inquisi��o de Lisboa na Torre do Tombo mostra que as autoridades inquisitoriais procuraram determinar se a sua fam�lia carregava sangue judeu, a prov�vel causa da fuga de seu pai para N�poles.


Seja como for, o que o ensaio de Maxwell deixa intuir � que h� espa�o para uma grande biografia que o abade Corr�a da Serra est� a merecer. Este ensaio constitui o n�cleo dessa biografia que, esperamos, deve ser um dos futuros livros de Maxwell.



Adelto Gon�alves




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