Hist�ria e antropologia mantiveram por muitas d�cadas rela��es problem�ticas. Numa breve simplifica��o, enquanto os historiadores tendem a privilegiar um recorte "diacr�nico" - que leva em conta sobretudo as mudan�as ao longo de per�odos de tempo demarcados, dado o car�ter processual da realidade social -, a antropologia pautou-se, sobretudo durante as primeiras d�cadas deste s�culo, por um recorte "sincr�nico" - que prioriza an�lises de uma totalidade sociocultural no momento em que a mesma � observada. Isso se deve ao fato de seu objeto fundador ter sido as tribos ind�genas, consideradas "povos sem hist�ria", onde, grosso modo, seria especulativo indagar sobre seu passado (dada a aus�ncia de registros escritos), ou porque seriam vistas como sociedades nas quais a passagem do tempo pouco significaria, sendo preciso compreender suas estruturas inconscientes, permanentes e invariantes.
Uma outra distin��o � que enquanto disciplinas como a hist�ria (ou a sociologia e a economia) voltaram-se tradicionalmente para temas abrangentes como as rela��es de poder, a constru��o do Estado, os modos de produ��o, etc, a antropologia, por sua vez, notabilizou-se por um olhar destinado a reconstituir as pr�ticas cotidianas, os costumes e as representa��es coletivas dos grupos estudados, o que constituiria boa parte do campo da abordagem cultural.
Tais diferen�as foram aos poucos se tornando menos n�tidas, � medida que a antropologia passou a enfocar objetos dotados de maior abrang�ncia e historicidade, como sociedades colonizadas ou, mais recentemente, diversos grupos urbanos - como migrantes, grupos �tnicos, religiosos, minorias. Al�m de grupos ind�genas h� tempo e ao seu modo inseridos em processos hist�ricos ligados ao contato com a sociedade moderna, nas lutas pol�ticas pela demarca��o de terras e pela amplia��o de seus direitos. J� a hist�ria, h� algum tempo vem enfocando a esfera cultural, como no caso da "hist�ria das mentalidades", com �nfase na reconstitui��o do imagin�rio social de outras �pocas; ou a chamada "hist�ria cultural", corrente da qual o historiador ingl�s Peter Burke � um importante representante. Nesse sentido, � bastante oportuna a leitura de seu �ltimo livro, "Variedades de Hist�ria Cultural", um conjunto de 11 ensaios que fornece um amplo panorama desse campo da hist�ria e seu di�logo fecundo com a antropologia.
Segundo o autor, "um grupo substancial de estudiosos atuais considera o passado como um pa�s estrangeiro", e, tal como fazem os antrop�logos, caberia a historiadores "tornar a 'alteridade' do passado ao mesmo tempo vis�vel e intelig�vel" (p. 245). De toda forma, como Burke abre o livro afirmando que "n�o h� concord�ncia sobre o que constitui hist�ria cultural, menos ainda sobre o que constitui cultura" (p. 13), cumpre tra�ar uma esp�cie de "hist�ria da hist�ria cultural", que o autor empreende ao longo dos artigos, explorando suas v�rias possibilidades tem�ticas e revelando tanto os campos onde a mesma tem se desenvolvido, quanto suas limita��es e principais impasses do presente.
Tal intento j� se revela no cap�tulo um, em que o autor busca responder "qual a idade da hist�ria cultural", anterior ao seu per�odo "cl�ssico", ou seja, antes que o pr�prio termo "cultura" tivesse um uso generalizado (p. 14). Burke percorre in�meras "hist�rias" - da l�ngua e da literatura, dos artistas e da arte, da m�sica, da doutrina, das disciplinas, etc -, procurando resgatar das mesmas um conjunto de problemas e quest�es que provariam, segundo ele, que, em 1800, "uma hist�ria geral da cultura e da sociedade j� se havia estabelecido em alguns c�rculos intelectuais" (p. 36), embora a hist�ria cultural tenha passado por um forte eclipse ao longo do s�culo XIX, devido ao crescimento de uma "hist�ria positivista", ligada apenas aos "fatos concretos".
Como ao historiador cultural cabe uma interpreta��o para al�m dos "dados objetivos", h� no cap�tulo tr�s uma interessante abordagem da pr�pria pr�tica do historiador, com base nos escritos de Maurice Halbwachs, para quem a mem�ria � sempre uma reconstru��o social do passado, onde os grupos sociais determinam o que � "memor�vel", e, pelo inverso, o que deve ser esquecido. Rejeitando uma hist�ria totalmente objetiva, que se diferenciaria da mem�ria, o autor defende que o acesso ao passado pelos historiadores tamb�m est� exposto a representa��es coletivas de nossa cultura, cabendo tratar da mem�ria n�o s� como fonte hist�rica, mas tamb�m como uma mitifica��o que pode estar presente de forma inconsciente no exerc�cio da reconstru��o do passado. Na mesma linha, o cap�tulo seis - que integra seus amplos estudos de "fronteiras culturais" do in�cio da It�lia moderna - tece uma an�lise baseada no estudo sistem�tico dos relatos dos viajantes ingleses � It�lia do s�culo XVII, com uma tipologia reveladora de muitos dos estere�tipos culturais e preconceitos presentes em suas narrativas.
J� no cap�tulo dois, onde o autor aborda a possibilidade de uma "hist�ria cultural do sonhar", o ensaio n�o d� conta de muitos problemas, pois, se � plaus�vel a hip�tese de que os sonhos tenham um significado cultural e que o mesmo varie de acordo com cada cultura, o dif�cil � se ter acesso a dados que confirmem isso plenamente, uma vez que nesse caso se adentra num debate dif�cil entre psicologia e antropologia, j� chamado de "di�logo de surdos", dada, por exemplo, a falta de consenso sobre o significado e a abrang�ncia de muitos conceitos (mais individuais na primeira, mais socioculturais na segunda); ademais, ao procurar analisar uma s�rie de registros de sonhos entre os s�culos XVI e XVIII, o autor envereda por posi��es que n�o escapam � fragmenta��o, al�m de um forte car�ter especulativo.
Outros ensaios, entretanto, n�o somente iluminam novas esferas de compreens�o da realidade sociocultural, como criticam de forma instigante abordagens j� consolidadas. � o caso do cap�tulo nove, sobre o carnaval no Novo Mundo, que para Burke teria mais semelhan�as do que se imagina com o carnaval europeu, ainda que nas Am�ricas tenha passado por novas s�nteses, em tr�s dom�nios: o lugar das mulheres, da dan�a e da cultura africana. Um argumento central � que "pr�ticas religiosas deram uma importante contribui��o aos carnavais afro-americanos" (referindo-se aqui a algo j� presente no Brasil do s�culo XIX, bem anterior � sua atual "re-africaniza��o"), com um sincretismo que possivelmente j� teria se iniciado na pr�pria �frica (p. 222-224). Quanto ao cl�ssico estudo de Roberto DaMatta sobre o tema, Burke defende que, apesar de brilhante, o trabalho � excessivamente durkheimiano, ao supor uma unidade que ignora "a varia��o e os diferentes significados do evento para diferentes grupos sociais" (p. 216).
Esse �ltimo argumento � retomado no cap�tulo final ("Unidade e variedade na hist�ria cultural"), talvez o mais importante do livro, onde o autor mostra que, apesar do crescimento recente dos "estudos culturais" e de sua maior legitimidade acad�mica, um balan�o cuidadoso aponta para sua crescente fragmenta��o e especializa��o, principalmente sob a influ�ncia do "multiculturalismo", que busca reler a hist�ria nas perspectivas de etnia, g�nero, gera��o, etc. Embora tais estudos acarretem uma cr�tica a uma cultura ou hist�ria pretensamente homog�neas, seu acirramento tem levado a simplifica��es que perdem de vista a totalidade. Revendo aspectos da escola culturalista e inspirando-se em Mikhail Bakhtin, Burke busca resolver tal tens�o com a proposta de uma hist�ria "polif�nica", que traduza a complexidade dos encontros e intera��es culturais ao incorporar "v�rias l�nguas e pontos de vista", incluindo "vitoriosos e vencidos" (p. 260-7).
Tal ponto de vista � desafiante, devendo-se, por�m, lembrar que a antropologia p�s-moderna j� tentou construir uma polifonia em termos apenas textuais, com resultados muito duvidosos.