A reconstitui��o das grandes descobertas arqueol�gicas sempre foi motivo de enorme atra��o para o p�blico, especialmente quando a civiliza��o investigada � o Egito Antigo. N�o possuindo nosso pa�s uma tradi��o de estudos em hist�ria da arqueologia, o recente lan�amento �Em busca do Egito esquecido� � um fato a ser comemorado. Tanto pelos prodigiosos conhecimentos do autor Jean Vercoutter � um dos maiores nomes da egiptologia francesa, falecido em 2000 � quanto pela qualidade gr�fica da obra, integrante originalmente da cole��o de Arqueologia da Gallimard.
A narrativa acess�vel do texto nos remete inicialmente ao fim do paganismo ocidental, no s�culo IV d.C., quando o conhecimento a respeito dos hier�glifos foi perdido. Desde esse momento, o Egito tornou-se uma terra de mist�rios, um local deslocado das gra�as de Clio. Restou aos s�bios apenas os depoimentos cl�ssicos de viajantes como Her�doto e Diodoro da Sic�lia.
J� sob a �gide de Cristo, os novos viajantes iniciam ap�s a Idade M�dia suas grandes metas em rela��o � antiga terra dos fara�s: coletar a maior quantidade poss�vel de rel�quias transport�veis. Percebemos muito bem a sensibilidade de Jean Vercoutter ao tratar das rupturas na mentalidade explorat�ria, no instante em que principia suas considera��es sobre o Setecentos. Com um profundo conhecimento em documentos da �poca, o autor consegue separar nitidamente os viajantes que ainda mantinham um �olhar de antiqu�rio�, dos que j� come�avam a desenvolver uma percep��o moderna a respeito das ru�nas antigas. Ou seja, a diferenciar os simples colecionadores dos pesquisadores em vias de iniciar um m�todo mais criterioso para a arqueologia. Um desses estudiosos especialmente citado pelo autor � Vivant Denon, que com seus livros e desenhos iniciou a moda da �egitomania� na Europa no in�cio do s�culo XIX. Esse novo esp�rito cient�fico � muito bem exemplificado na composi��o aleg�rica do gabinete de Denon, executada por Benjamin Six em 1811: o s�bio escreve cercado de in�meras est�tuas, objetos antigos e livros. O Egito ainda n�o era acess�vel epigraficamente, mas apresentava-se como um imenso museu, repleto de possibilidades investigativas do ponto de vista da cultura material. Ali�s, essa � a id�ia b�sica que podemos perceber no frontisp�cio da monumental obra �Description de L�Egypte� (1809-1822): est�tuas, canopus, frisos e esfinges se misturam aleatoriamente ao lado de obeliscos e templos. A terra do Nilo � um gigantesco museu ao ar livre, �esperando� os exploradores eruditos provenientes do Velho Mundo para tentar decifrar seus mist�rios. Mas esse local tamb�m n�o possui semelhan�a com nenhuma outra parte do mundo, sendo �nicas suas maravilhas arqueol�gicas. O imagin�rio refor�a a id�ia de maravilhamento, como percebemos nas palavras do pr�prio Denon: �afigura-se-me o grupo mais pitoresco e a mais pasmosa representa��o da hist�ria dos tempos: nunca se sentiram os meus olhos e a minha imagina��o t�o vividamente impressionados quanto � vista desse monumento� (1).
O per�odo mais enfatizado em todo o livro � o s�culo XIX, durante o auge das viagens de explora��o e escava��es ao pa�s do Nilo. Neste momento o leitor pode claramente constatar que alguns personagens hist�ricos mereceram um certo entusiasmo por parte de Vercoutter. Por exemplo, ao tratar do explorador Giovanni Belzoni, t�o criticado pelos arque�logos modernos por seus m�todos considerados poucos escrupulosos, n�o podemos deixar de notar certa admira��o. E o restante do livro � dedicado a detalhar desde a fa�anha de Champollion, traduzindo os hier�glifos, at� os estudos de Mariette, Petrie e a espetacular descoberta do t�mulo de Tutankamon por Carter em 1922.
Muitos mais do que o conte�do textual, a maior import�ncia do livro em quest�o � a sua estrutura iconogr�fica, um verdadeiro deleite de obras extremamente importantes para o historiador interessado em aprofundar o imagin�rio da arqueologia. � por meio das imagens que podemos perceber a verdadeira for�a, o verdadeiro potencial simb�lico do Egito para os europeus. Nenhuma civiliza��o conseguiu reunir tantas sensa��es, tamanhas diferen�as de percep��es visuais e de conte�dos simb�licos sobre cultura material.
O Egito encanta. � o que constatamos ao admirar as ilustra��es de Jean de Th�venot, 1664, e Sicard, 1717. Uma terra onde o maravilhoso era considerado corriqueiro e os deuses incompreens�veis e fascinantes, mesmo para os polite�stas gregos e os posteriores crist�os medievais.
O Egito aterroriza. O car�ter temer�rio deste pa�s teve in�cio em plena antig�idade, com diversas hist�rias sobrenaturais envolvendo sepulcros e m�mias. Os pr�prios romanos temiam a terra dos fara�s, mas � com a chegada do Oitocentos que essas representa��es tornam-se realmente populares. A ilustra��o Vista do interior da grande pir�mide, 1809, � um exemplo perfeito: caminhando pelas galerias, os olhos dos transeuntes parecem saltar, num misto de medo e curiosidade. Em uma aquarela de Wilkinson, 1837, a atmosfera de pavor � ainda mais acentuada. Uma mulher procura antig�idades em uma sala repleta de m�mias: a fuma�a do candeeiro mistura-se com a tonalidade do ambiente e das paredes, provocando uma sensa��o de mist�rio, sonho e magia. Ao redor da fuma�a percebem-se pequenos tra�os de enigm�ticos desenhos eg�pcios cobrindo as laterais da sala. O temor do passado � tamb�m o medo da morte, que no caso das m�mias, parece n�o ter ocorrido.
Foi com o romantismo europeu que essas duas f�rmulas imagin�rias foram representadas na arte, principalmente ap�s 1810. A aquarela Philae � apresentada em uma prancha dupla no livro de Vercoutter � publicada por Wilkinson em 1837, � um soberbo exemplar dessa vis�o art�stica na arqueologia. Diversos barcos contornam a ilha de Philae, revelando as ru�nas majestosas, cujo reflexo na �gua d� um tom misterioso, quase m�gico ao cen�rio id�lico que se forma a partir da observa��o do pintor.
Um dos �nicos pontos fracos do livro foi ter inclu�do poucas imagens do escoc�s David Roberts, o mais importante pintor de temas arqueol�gicos do Oitocentos. Vercoutter selecionou apenas quatro pinturas, que n�o d�o conta de apresentar ao leitor a grandiosidade da obra do escoc�s. Talvez pela fama deste viajante-artista, com suas pinturas em muitos sites da Web e em diversas obras de populariza��o na Fran�a. De qualquer modo, o livro de Vercoutter tamb�m apresenta um material n�o muito divulgado, como as maravilhosas aquarelas de Nestor L�H�te, que acompanhou Champollion em sua viagem ao Egito. A pouco conhecida Philae, 1845, conservada atualmente no Museu do Louvre, � duplamente importante: nos d� conta de retratar o acampamento da expedi��o, al�m de representar em tons fortes e vibrantes as cores originais do famoso templo de �sis.
A parte final do livro �Em busca do Egito esquecido� � documental, apresentando excertos de narrativas cl�ssicas e contempor�neas. Algumas descri��es s�o simples curiosidades de viajantes, como o escritor Mark Twain e Eug�ne Fromenti. A mais interessante � uma passagem da obra �La Serapeum de Memphis� (1856) de Auguste Mariette, concedendo alguns detalhes da fascinante descoberta da necr�pole dos touros �pis. Como complemento, o livro tamb�m traz bibliografia, cr�ditos das ilustra��es, autoria e data das imagens e localiza��o dos acervos. Enfim, uma obra indispens�vel para o arque�logo, interessado em entender melhor os rumos de sua ci�ncia, e tamb�m para o historiador, que tenta compreender as diferentes interpreta��es sobre o passado monumental. Pois para o imagin�rio ocidental, o Egito antigo continua sendo a mais fascinante civiliza��o de todos os tempos.
Johnni Langer
Notas
DENON, Dominique Vivant. Voyage dans la base et la haute Egypte, 1802. In: CERAM, C. W. (Org.). O mundo da arqueologia: os pioneiros contam a sua pr�pria hist�ria. S�o Paulo: Melhoramentos, 1973.
LANGER, Johnni. As origens da Egiptologia. Espa�o Plural (Cepedal/Unioeste � Universidade Estadual do Oeste do Paran�), Marechal C�ndido Rondon, ano III, n. 7, mar�o 2001.