Nos atuais estudos medievalistas, o interesse pelas religi�es e mitologias pr�-crist�s vem ocupando espa�os cada vez maiores. Seja pelas pesquisas de historiadores, literatos, antrop�logos e at� arque�logos, interessados em conhecer com mais detalhes as bases da forma��o ocidental. Em nosso pa�s, os estudos sobre as origens da cultura germ�nica medieval ainda s�o muito escassos. E esse constitui o interesse inicial pela obra em quest�o, o livro "Manifesta��es do sagrado na �pica medieval: um recorte em tr�s textos La Chanson de Roland, El cantar de Mio Cid, das Nibelungenlied", de S�rgio Almeida.
Logo em seu in�cio, o autor procura demonstrar seus v�nculos te�ricos: Rudolf Otto, Roger Caillois, Georges Dum�zil, Julien Ries, Carl Jung e Mircea Eliade. Apesar de serem autores consagrados, j� percebemos um primeiro problema, pois s�o integrantes de metodologias bem diferenciadas, principalmente na teoriza��o do mito. Em alguns casos, como Rudolf Otto, percebemos o quanto alguns autores do in�cio do s�culo 20 est�o totalmente ultrapassados em um ponto de vista cient�fico atual: �muito pouco se sabe, com certeza, das id�ias do habitante das cavernas [...] qual teria sido a religi�o do primitivo, se � que houve uma? (p. 11).� Em rela��o � pr�-hist�ria, Rudolf Otto baseou suas teorias religiosas nas ent�o investiga��es arqueol�gicas at� a d�cadas de 1930, que eram muito prec�rias. Com o advento do m�todo estruturalista aplicado � arte pr�-hist�rica, ap�s a d�cada de 1970, percebemos a imensa riqueza e complexidade cultural da religiosidade dos primeiros tempos. Se o autor tivesse consultado o livro �As religi�es da Pr�-hist�ria�, de Andr� Leroi-Gourhan (1985), perceberia o quanto as id�ias de Rudolf Otto est�o ultrapassadas. Teorizando sobre o sagrado na hist�ria das religi�es, novamente o autor S�rgio Almeida utilizou-se do religioso alem�o: �o numinoso, segundo Otto, representa para o ser humano um valor que, por ant�tese, o faz ver o n�o-numinoso do profano, assim como o anti-valor do pecado (p. 13)�. A no��o de pecado � algo pr�pria do pensamento hebraico-crist�o, e n�o pode ser generalizada para todas as religi�es da Hist�ria, e muito menos para o paganismo germ�nico.
Sobre a quest�o do sagrado dos povos indo-europeus e germanos, o autor citou um estudo do franc�s Julien Ries (�Les chemins du sacr� dans l�histoire�, 1985), referindo-se �s tr�s fun��es dos indo-europeus. O que aponta no m�nimo um desconhecimento de que essa teoria foi formulada por Georges Dum�zil na d�cada de 1930, e popularizada em seus cl�ssicos �L�id�ologie tripartie des indo-europ�ens� (1958) e �Mythe et �pop�e� (1968-1973). Algo estranho, visto a cita��o de Dum�zil na bibliografia final (�Los dioses de los germanos�, 1973) (p. 172).
Nesse mesmo cap�tulo, S�rgio Almeida relata seu desconhecimento em religi�o germ�nica: �nos textos por n�s estudados n�o h� qualquer refer�ncia a cultos ou rituais espec�ficos, oficialmente proscritos na Idade M�dia (p. 26)�. Um exame em algumas das dezenas de fontes escandinavas medievais (s�c. XII), percebemos abundantes descri��es de rituais paganistas, como os bl�ts (sacrif�cios, �l�fs saga Tryggvasonar) e cerim�nias m�gicas (Eyrbyggja saga, V�ga-Gl�ms saga), entre outras.
Tamb�m percebemos outros erros, como a concep��o ultrapassada de que os germanos n�o possu�am alfabeto: �runas � alfabeto m�gico n�rdico [...] n�o conhecendo os germanos a escrita (p. 43)�. Essa id�ia da inexist�ncia de uma forma de escrita para registro no cotidiano e de que as runas somente seriam utilizadas para fins m�gico-religiosos j� vem sendo criticado por Peter Heather (In: �Cultura escrita e poder no mundo antigo�, 1998) e radicalmente pelos epigrafistas Raymond Page (�Runes�, 2000) e Birgit Sawyer (�The Viking-Age Runes-Stones�, 2003). Esses dois �ltimos demonstram o uso das runas germ�nicas na pol�tica, genealogia, memoriais, cotidiano s�cio-familiar e at� amoroso.
A falta de conhecimento de bibliografias mais recente sobre o mundo germ�nico, tamb�m levou o autor a perpetuar uma velha imagem muito comum na d�cada de 1950-60, a de que todas as religi�es teriam um aspecto velado: �as religi�es, para a transmiss�o do conhecimento do Sacer, ou seja, daquele sagrado primordial, tinham sempre duas vertentes: a esot�rica � para um grupo escolhido de iniciados que sabiam a origem e o significado dos ritos que praticavam � e a exot�rica � destinada � massa popular, geralmente ignorante e, portanto, supersticiosa (p. 64)�. Isso de maneira nenhuma pode ser aplicada no paganismo germ�nico. T�cito, em seu cl�ssico �Germ�nia�, j� mencionava a realiza��o do culto aqu�tico a Nerthus, uma pr�tica onde a popula��o n�o era exclu�da. Existiam no mundo n�rdico medieval pr�ticas religiosas s� realizadas por populares, sem car�ter secreto, como os rituais de camponeses para Thor, como tamb�m pr�ticas para toda a elite aristocr�tica e nobre, os cultos para Odin (R�gis Boyer, �La religion des anciens scandinaves�, 1981, p. 110-165). Essa dicotomia que S�rgio Almeida emprega, referindo-se aos populares como �ignorantes� e somente a elite possuindo conhecimento realmente especializado de magia ou religi�o, tamb�m vem sendo totalmente criticado por outros autores, demonstrando que essas fronteiras nem sempre eram bem definidas, ocorrendo inclusive o emprego de conhecimento m�gico de populares por membros da elite mon�rquica viking (Thomas Dubois, �Nordic religions in the Viking Age�, 1999, p. 126-127).
A falta de conhecimento mais especializado prossegue por todo o texto. Referindo-se � �rvore c�smica, o autor diz: �os germanos t�m Yggdrasil � o freixo (p. 84)�. Aqui ocorre uma confus�o etimol�gica. Na realidade, os vikings mantinham muito em comum com a religiosidade e mitologia dos antigos germanos, mas esses �ltimos denominavam o freixo universal de Irminsul, L�radr e Mj�tvidr sendo a palavra Yggdrasil empregada somente pelos n�rdicos medievais (R�gis Boyer, �H�ros et dieux du nord�, 1997, p. 173 ). Um erro semelhante ocorre em outro momento: �Odin ou Wotan. Ambos os nomes designam o chefe da sociedade divina, na mitologia n�rdica (p. 102).� Na realidade, Wotan era a forma empregada pelos povos germ�nicos do per�odo de migra��o at� a Idade M�dia. No mundo viking, somente era empregado o termo Odin, para a mesma divindade.
Referindo-se � uma cerim�nia f�nebre no �La chanson de Roland�, S�rgio Almeida analisa o s�mbolo do cervo, acreditando que o mesmo proveio de uma influ�ncia c�ltica, o que n�o � de todo inveross�mil. Mas a representa��o simb�lica deste animal foi muito comum na cultura germ�nica, algo desconhecido pelo autor, como podemos perceber nos chifres cerimoniais de Gallehus (Dinamarca, s�c. V d.C.) e uma moeda da cidade viking de Hedeby (Alemanha, s�c. IX d.C.). Nesta moeda, a figura do cervo est� rodeada de uma serpente espiralada e o s�mbolo sagrado do Valknut.
No momento em que discute o �pico das �Nibelungenlied�, outros erros surgem no livro de S�rgio Almeida: �� curioso, entretanto, lembrar que, entre os deuses n�rdicos, era �din/Wotan que profetizava, e n�o uma das muitas deusas do pante�o germ�nico, certamente pelo car�ter eminentemente masculino desta religi�o (p. 125).� Na realidade, uma das pr�ticas m�gicas divinat�rias (sei�r) teria sido ensinada a Odin pela deusa vanir Freyja, e essa pr�tica era exclusivamente feminina no mundo viking (Thomas Dubois, �Nordic religions in the Viking Age�, 1999, p. 209).
Tamb�m a narrativa textual empregada, misturando aleatoriamente e sem nenhum rigor elementos totalmente d�spares, como o I Ching, astrologia e o Tarot, comprometem a qualidade anal�tica da obra. Nosso pa�s ainda carece de obras mais consistentes sobre literatura e hist�ria germ�nica. Para a �pera oitocentista de Wagner, Yara Cazn�k e Alfredo Neto lan�aram o excelente �Ouvir Wagner, ecos nietzchinianos� (S�o Paulo, 2000). A Idade M�dia germ�nica e viking ainda espera obras mais consistentes em nosso pa�s.