Nas �ltimas d�cadas vem se intensificando o interesse popular por temas mitol�gicos, somando-se a in�meros filmes, livros e outras formas de arte e entretenimento. Apesar disso, s�o muito escassas as publica��es em l�ngua portuguesa sobre a cultura viking, e principalmente, os mitos germ�nicos, motivo do interesse pelo livro em quest�o. A obra �Introdu��o � mitologia viking�, do escritor brit�nico John Grant, foi dividida em duas partes, sendo a primeira um dicion�rio com as principais divindades, e a segunda, um estudo sobre os principais aspectos tem�ticos da mitologia retratada. Somado ao fato da obra ter um projeto gr�fico audacioso, com belas reprodu��es de ilustra��es, fotografias e figuras, tratar-se-�a de um trabalho de refer�ncia espetacular, tanto ao iniciante como ao especialista na tem�tica. Uma grande desvantagem para o leitor mais criterioso � a falta de dados sobre a iconografia: est�o ausentes a data original e a autoria das imagens, especialmente as do Oitocentos.
O livro � uma grande decep��o, principalmente quando analisamos mais profundamente seu texto. Logo no in�cio, percebemos no autor um desconhecimento maior em hist�ria medieval: �os vikings eram um povo teut�nico� (p. 6). Tanto os teut�es, quanto os sax�es, anglos, jutos, vikings, e outros, eram povos que do ponto de vista etno-lingu�stico, s�o classificados como de etnia germ�nica. As outras duas grandes etnias da Europa pr�-crist�, foram a celta e a eslava. E cada uma dessas etnias tinha grandes diversifica��es pol�ticas, mas sempre com uma base em comum na l�ngua, aspectos culturais e principalmente, um mesmo padr�o mitol�gico.
Ainda em sua introdu��o, John Grant comete grandes equ�vocos, desconhecendo tamb�m maiores leituras em antropologia. A respeito dos vikings declara: �de uma crueldade b�rbara [...] matando homens e crian�as e violando mulheres [...] Os m�todos de carnificina usados com os camponeses e os pescadores eram repugnantes [...] estes crimes faziam tamb�m com que a maior parte dos membros da cultura viking empalidecessem� (p. 6-7). O tema da viol�ncia � um conceito que deve ser sempre relativizado em Hist�ria, assim como os estere�tipos do b�rbaro, da civiliza��o, do progresso e da humanidade. Afinal, os vikings apesar de utilizarem m�todos considerados violentos, n�o adotavam o recurso da tortura, amplamente usada na Europa medieval, que, diga-se de passagem, era toda ela j� cristianizada. E tamb�m sem entrarmos em outros pormenores, como a utiliza��o da inquisi��o, das chacinas pelos cruzados na terra santa � matando e torturando em nome da Santa Igreja. Assim, �tica e moral s�o conceitos que variam de cultura para cultura. Se para um franc�s crist�o os vikings e os orientais eram pag�os b�rbaros e desumanos, um mu�ulmano medieval teria os mesmos olhares para o europeu que visitava suas terras... Um tema largamente discutido por especialistas como Dubby e Le Goff. Em rela��o ao �empalidecimento� dos membros da cultura n�rdica, lembramos que a palavra viking era utilizada nos primeiros tempos das incurs�es (s�culo VIII d.C.), a todo campon�s, agricultor ou membro da alta sociedade escandinava que se aventurava pelo mar afora, para conseguir alguma esp�cie de lucro ou vantagem her�ica. Portanto, n�o havia por parte das comunidades escandinavas nenhum car�ter moralista negativo a seus guerreiros que retornavam das pilhagens.
Grant segue em seu texto tamb�m com terminologias pouco apropriadas. Em rela��o a sepulturas, utilizou a frase �padr�es de pedras� (p. 24), mas o correto seria alinhamentos megal�ticos em forma de navios. Na legenda para a fotografia da pedra de Lindisfarne, na Inglaterra, o autor descreve: �acredita-se que comemora o primeiro ataque viking � ilha� (p. 25). A pedra foi erguida pelos brit�nicos no s�culo IX e tem duas faces: uma com sete vikings portando espadas e machados, e outro lado referenciando o ju�zo final. Ou seja, associa os pag�os com o eminente fim do mundo. Com isso Grant cometeu um grave erro ao citar esta pedra como um monumento, pois de maneira nenhuma um crist�o teria comemorado um ataque viking a um lugar santo!
O famoso cofre de Franks (Inglaterra), recebeu na legenda uma data��o do s�culo XVIII (p. 28), mas na realidade ela foi fabricada no s�culo IX. Mas o maior erro hist�rico do autor acabou sendo a frase: �Os vikings tamb�m foram para o sul, at� o Mediterr�neo � com os celtas irlandeses � chegando a amea�ar o imp�rio romano� (p. 119). Isso � simplesmente imposs�vel, porque os vikings (s�culo VIII-XI d.C.) eram do per�odo medieval, muito depois da queda do imp�rio romano.
Os equ�vocos com rela��o a mitologia s�o bastante amplos. Nos verbetes sobre os deuses Inverno e Ver�o (p. 12 e 15), o autor cometeu um lapso ling��stico (caso n�o tenha sido culpa do tradutor). Os vikings chamavam o ver�o (do lat. veranum) de Sumar, e o inverno (do lat. hibernu) de Vetur.
No verbete sobre o deus Modi, houve um erro de transcri��o repetida ou de impress�o tipogr�fica: �Filho de Thor e da giganta Iarnsaxa. Ap�s o Ragnarok, ele e o seu irm�o Modi...� (p. 13). O correto seria Magni, o outro filho do deus Thor.
A respeito da tela do deus Odin e Brunhilde, ela n�o foi originalmente publicada em 1915 (p. 96), e sim em 1890, de autoria do pintor F. Leeke.
Com rela��o �s valqu�rias, o autor efetuou contradi��es em seu texto. Na p�gina 88, ele afirma sobre essas personagens m�ticas: �jovens bel�ssimas�, e na p�gina seguinte: �nas lendas originais, as valqu�rias eram muito belas�. Mais adiante, comentado uma das maravilhosas ilustra��es de Arthur Rackham, Brunhilde (1910), o autor mudou de opini�o: �pouco nos leva a acreditar que os vikings as vissem como lindas donzelas de belas formas� (p. 98). Mas afinal, as tradi��es m�ticas n�o refletem as concep��es de uma sociedade? O mito de Afrodite n�o encarna o ideal de beleza feminino dos gregos? � �bvio que os vikings idealizavam mulheres de belas formas, e o mito das deusas n�rdicas Iduna, Freyja, Brunhilde e as valqu�rias, nada mais refletem do que esse ideal. Ainda sobre as valqu�rias, o autor comenta: �A imagem moderna das valqu�rias foi colorida pela execu��o das �peras de Richard Wagner: v�mo-las como objecto do rid�culo, roli�as, de peito grande� (p. 91). Nada mais incorreto. Analisando as fotografias da primeira execu��o oficial completa de O anel dos Nibelungos (1876, Bayreuth), percebemos que as cantoras que executavam o papel das donzelas em quest�o, n�o eram nada roli�as, pelo contr�rio, eram beldades que em nada denegriam a mitologia original. A cantora Amalie Friedrich, que fez o papel de Brunhilde em 1876, era muito bonita. As ilustra��es e pinturas utilizadas como cen�rio desta �pera, como os quadros de G. von Leeke e do citado Arthur Rackham entre 1870-1910, representam as virgens guerreiras como criaturas absolutamente maravilhosas. Em especial, a pintura da valqu�ria de Theodor Pixies para o cen�rio de 1870, � simplesmente uma donzela loura, magra e linda! A quest�o � que j� no s�culo XX, algumas cantoras germ�nicas que se tornaram famosas interpretando a dita obra musical, n�o tinham um corpo que talvez fizesse juz � sua voz... Para encerrar o coment�rio, o autor esqueceu de citar uma famosa caracter�stica das valqu�rias, o seu aspecto de donzelas-cisnes, que acabou por criar no imagin�rio art�stico moderno as enormes asas laterais em seus capacetes.
Ao comentar sobre o deus Freyer, John Grant novamente elaborou coment�rios moralistas: �seu culto parece ter sido bastante desagrad�vel, incluindo pr�ticas tais como sacrif�cios humanos.� (p. 57). Qualquer an�lise s�ria sobre fen�menos religiosos e m�ticos deve ser relativizada, porque os referenciais simb�licos mudam de uma cultura para outra. Temas como sacrif�cios humanos e canibalismo fizeram parte de quase todas as culturas humanas, e n�o podem ser entendidos a partir do referencial �tico-crist�o do ocidente moderno. O moralismo subjetivo do autor torna-se direto quando trata da deusa Freyja: �n�o foi nenhum modelo de virtude. Seria de esperar que tivesse sido insultada pela sua sexualidade � especialmente numa sociedade primitiva, em que se espera que as mulheres sejam castas e condescendentes� (p. 62). Muito pelo contr�rio! Freyja era uma das deusas mais veneradas pelos escandinavos. Ali�s, as mulheres vikings eram bem liberadas para os padr�es dos cristianismo medieval, pois podiam ter propriedades, divorciar-se quando bem entendessem e escolher seus relacionamentos sexuais. A poligamia era uma pr�tica muito comum e aceita entre os vikings, principalmente na Su�cia, onde o deus do sexo, Freyer, era o mais adorado.
Citando v�rias deusas n�rdicas, o autor acabou por se confundir: �E�stre, Gode, Hlodin, Holda, Horn, Nerthus, Ostara e Wode�. (p. 64). Acontece que E�stre e Ostara s�o denomina��es para a mesma deusa! Identificada com a primavera, o seu culto inspirou a moderna celebra��o da p�scoa (Easter, em ingl�s; Ostern, em alem�o) com ovos e coelhos, s�mbolos da sua fertilidade.
Em rela��o ao deus Loki, o autor exagerou: �� o mais fascinante dos membros do pante�o escandinavo� (p. 67). Claro que � uma opini�o pessoal, mas em rela��o a esse mesmo deus, Grant cometeu outra contradi��o. Na p�gina 57 ele afirma que os tr�s principais deuses foram Odin, Thor e Freyer, algo que corroboramos plenamente. Mas j� na p�gina 79, ele cita que a trindade m�xima seria Loki, Odin e Thor!
O final da obra torna cada vez mais �bvio os referenciais moralistas-crist�os do autor. Em rela��o ao Valhala, ele seria t�o apelativo aos vikings, que estes cometeriam suic�dio para poderem adentr�-lo mais rapidamente: �se deixariam cair sobre as suas lan�as para se habilitarem a fazer parte dos eleitos de Einheriar�. (p.88). Uma afirmativa totalmente falsa. O que era desonroso para um viking era n�o poder morrer com a espada em punho, em um campo de batalha! Claro que podem ter existido vikings suicidas, mas desconhecemos qualquer caso desta natureza.
Novamente citando Wagner, o autor mais uma vez errou: �A vers�o da hist�ria retratada no ciclo de O anel, de Wagner � uma vers�o tardia, n�o tem rela��o com as lendas escandinavas�. (p. 97). Ora, qualquer estudioso deste compositor alem�o sabe que ele se baseou na vers�o do Volsunga saga (s�c. XIII), ao inv�s de Das Nibelungenlied, vers�o alem� do s�culo XIII. Por um motivo bem �bvio: a vers�o alem� n�o cita em nenhum momento qualquer divindade! Ao eleger a saga escandinava, Wagner apenas alterou o nome dos principais deuses - em vez de Odin, adotou o nome sax�o-teut�o Wotan; para Thor, adotou Donnar; para o her�i Siegurd, adotou o nome Siegfried.
O desfecho do livro n�o poderia ter sido pior. Comentando sobre o Ragnarok, Grant acabou por revelar suas pr�prias concep��es religiosas: �O cristianismo tamb�m deixou a sua marca na mitologia escandinava, estando escrito que, ap�s o Ragnarok, verificar-se-� a encarna��o de um deus grande demais para ser nomeado � por outras palavras, Jeov�. (p. 118). Ou seja, para o autor, dentro da pr�pria narrativa mitol�gica dos vikings j� encontravam-se as bases para a legitima��o do futuro cristianismo. Uma afirmativa totalmente equivocada, pois a mitologia n�rdica era essencialmente c�clica: ap�s o decl�nio e morte dos deuses, todo o ciclo c�smico iria novamente ser repetido. No polite�smo viking original, n�o h� espa�o para um deus ou profeta redentor nos moldes hebraico-crist�os.
Em conclus�o, o escritor John Grant realizou uma obra repleta de equ�vocos, erros hist�ricos e interpreta��es falsas, revelando um desconhecimento mais profundo sobre a cultura dos vikings. Ao leitor brasileiro resta a consulta em uma obra de refer�ncia muito mais completa e s�ria, como �Enciclop�dia de mitologia n�rdica, cl�ssica e celta�, de Arthur Cotterell (1998), e a excelente obra anal�tica �Mitos n�rdicos�, de R. Page (1999).