Livro: A ditadura derrotada
Autor(es): Elio Gaspari
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2003
Nº de páginas: 576

No dia 16 de fevereiro de 1974, numa conversa de tr�s horas, o general Ernesto Geisel acertou os ponteiros com seu futuro ministro do Ex�rcito. Dali a semanas, tomaria posse como quarto presidente do regime militar. Vinha de uma campanha sucess�ria t�o silenciosa que, por quase dois anos, uma das principais tarefas da censura � imprensa fora esconder da opini�o p�blica o nome do candidato escolhido. Elegera-se por um voto - o do general Emilio Medici.


"Imagina, para que � que eu havia de querer um escrit�rio eleitoral quando o Grande Eleitor est� aqui", disse Geisel, no conchavo palaciano que acabara de ungi-lo. Politicamente, tinha no bolso o AI-5. Economicamente, recebia nas m�os um pa�s que nunca mais voltaria aos �ndices da era M�dici, quando o crescimento anual bateu no patamar de 11,9%. Popularmente, estavam fora de seu alcance os 82% de aprova��o dados pelo IBOPE a seu antecessor.


Naquele momento, 120 mortes e 2500 den�ncias de tortura inchavam as estat�sticas da repress�o. O governo tinha vencido a luta armada. Mas estava acuado pelos aparelhos clandestinos que infestavam seus por�es. Geisel ponderou que "esse tro�o de matar" era "uma barbaridade", mas que n�o havia outro rem�dio. Recomendou a Coutinho que unificasse a pol�tica de repress�o. E ao se despedir do novo ministro do Ex�rcito, o quarto presidente da Rep�blica, no d�cimo ano da ditadura, concluiu que eles haviam concordado "100% em tudo".


� por causa de di�logos como esse - transcritos com um rigor que na �ltima hora, com os originais a caminho do prelo, incluiu uma corrida ao laborat�rio para esclarecer problemas de dic��o - que os melhores livros brasileiros de 2002 acabam de virar o melhor livro brasileiro de 2003. No ano passado, com "A ditadura envergonhada" e "A ditadura escancarada", os dois volumes d'As Ilus�es Armadas que venderam 175 mil exemplares, Elio Gaspari deixou uma arapuca para quem se metesse, depois dele, a escrever novidades sobre a dinastia dos generais que mandaram no Brasil de 1964 a 1985. Ou seja, armou uma arapuca para si mesmo. Parecia ter arrasado em 924 p�ginas at� as curiosidades que os brasileiros n�o chegaram a ter sobre o regime. E ainda tinha pela frente mais tr�s livros do mesmo porte.


Surpresa: "A ditadura derrotada", que est� chegando agora �s livrarias, como terceiro livro da cole��o e primeiro de um tr�ptico intitulado "O Sacerdote e o Feiticeiro", conseguiu melhorar o que era irretoc�vel. Trata-se, mais uma vez, de cerca de quinhentas p�ginas de texto, encorpado por mais de 1500 notas de p� de p�gina e uma vasta bibliografia. Fechado, � um tijola�o. Aberto, � lev�ssimo.


Seu foco � o labirinto de passos que levaram dois generais a demolir a ditadura que tinham engendrado. E encher quinhentas p�ginas com metade da hist�ria de Geisel e Golbery � uma temeridade. O livro vai dos tr�s anos e cinco meses que transcorrem do bilhete cifrado avisando, em junho de 1971, que o pr�ximo presidente seria "o Alem�o" ao momento em que o Alem�o engole a derrota do regime para uma leva de oposicionistas quase an�nimos, nas elei��es parlamentares de 1974. Os dois volumes anteriores trabalharam com elenco de superprodu��o. "A ditadura envergonhada" contou o come�o e o fim da ditadura, mostrando que ambos estavam mal contados por seus ac�litos. "A ditadura escancarada" abriu as tripas da "guerra suja", revelando por que os dois lados dessa luta n�o eram capazes de dizer como ela foi.


Contra esses trunfos arrasadores, "A ditadura derrotada" s� tem uma carta. Mas que carta. � a mais surpreendente cole��o de documentos j� publicada sobre os bastidores da pol�tica brasileira. E talvez das outras. Extra�da de arquivos pessoais, di�rios secretos e grava��es de di�logos, ela consegue da noite para o dia transformar um dos regimes mais fechados que o pa�s j� desconheceu no per�odo hist�rico mais devassado que ele daqui para a frente vai conhecer. Desde novembro de 1973, Heitor Ferreira, secret�rio particular de Geisel, disc�pulo de Golbery, confidente de ambos, leitor voraz e insaci�vel colecionador de segredos, gravava num aparelho Philips 85 as conversas do presidente. No pal�cio do Planalto, o h�bito se manteve por quatro meses. N�o era escuta clandestina. Geisel sabia que falava para o Philips 85. Mas poucas pessoas de confian�a tomaram conhecimento dessas grava��es, que se encontram em sessenta rolos de quatro faixas e somam 222 horas. E seu conte�do nunca tinha vazado.


A mistura de pesquisa exaustiva com inconfid�ncias inimagin�veis d� �s p�ginas d'A ditadura derrotada o atestado definitivo de que a hist�ria supera, sim, a fic��o. Em vez de personagens reais dizendo coisas imagin�rias, elas t�m personagens reais dizendo coisas inimagin�veis. Geisel se deixou gravar por um auxiliar de confian�a num governo que censurou o presente e o passado mas deixou ao futuro o legado de suas pr�prias entranhas abertas � exposi��o p�blica.


Enquanto esses di�logos eram imortalizados pelo Philips 85, fora do gabinete soprava nos ouvidos dos jornalistas o primeiro vento do que seria a "lenta, gradativa e segura distens�o". Era o h�lito de Golbery, o "Feiticeiro" de Geisel. Eles formavam uma dupla. Mas n�o como na �poca se pensava. Golbery era um general retra�do, que gostava de textos rebuscados e de cristais venezianos com formas de passarinhos.


D� para medir a dist�ncia entre os dois pelas palavras que Golbery enfiava nos rascunhos dos discursos e Geisel extra�a das vers�es finais. Para a oficializa��o da candidatura, o ex-presidente da Dow Qu�mica no Brasil recitou uma frase sobre "as grandes empresas multinacionais, cujo potencial, para o bem, ou talvez para o mal �, e s�-lo-�, em escala maior talvez, condi��o essencial ao pr�prio desenvolvimento da Na��o". Geisel virou-a pelo avesso, falando de empresas "cujo potencial para o bem, ou talvez para o mal, ainda n�o nos � dado avaliar". Ao Col�gio Eleitoral, Golbery tentou anunciar a "coibi��o en�rgica de toda viol�ncia ilegal, partida de onde ou de quem partir". Geisel rebarbou: "Isso � verdade, e vamos ver se fazemos, mas voc� n�o pode dizer". Havia men��o ao "cidad�o ferido em seus direitos ou clamando por justi�a". O presidente traduziu a indireta: "H� uma refer�ncia velada �s torturas. Eu n�o posso dizer isso, n�o �?". Entre eles, o jogo n�o era para empate. Na d�vida, vencia Geisel. E Golbery n�o falava mais no assunto.


Com Heitor Ferreira, formavam uma trinca. Mas s� Geisel mandava. No governo, o secret�rio despachava em p� com o presidente, e as conversas a s�s com Golbery n�o passavam de tr�s por ano. Gaspari diz que Geisel, o "Sacerdote", parecia exc�ntrico, "por�m era apenas simples". Participou de quase todos os golpes que tiraram do eixo os militares de sua gera��o, sem virar um golpista genu�no, porque "se regia pelo manual". Tinha "opini�es pol�ticas t�o claras quanto operacionalmente irrelevantes". Achava que "todo pol�tico � falso e todo milion�rio � ladr�o". Nos fins de semana, despachava processos � beira da piscina. Fazia a ceia de Natal com os guardas do Riacho Fundo, porque a festa familiar recordava a morte de seu filho, Orlando, atropelado aos dezesseis anos por um trem em Quita�na. Se o presidente Lula encontrasse intacta no pal�cio da Alvorada a rotina que Geisel instalou, talvez achasse que tinha voltado por engano � cadeia.


Geisel e Golbery, juntos, somavam menos afinidades do que idiossincrasias e at� implic�ncias. Conheciam o avesso de todos os conspiradores, porque se meteram em quase todas as conspira��es. Em geral, era das mesmas pessoas que n�o gostavam. Acabaram com as biografias tran�adas pelas voltas que a desordem pol�tica deu em suas carreiras profissionais. Ambos s� atiraram em combate ao participar de golpes e contragolpes.


Se era assim, por que a ditadura haveria de acabar logo em suas m�os? A resposta completa estar� certamente nos pr�ximos livros de Gaspari. Mas as pistas deste terceiro volume apontam para a prov�vel conclus�o. Cinco dias antes daquela conversa com o general Dale Coutinho, Geisel descartara sem meias palavras um ministro do Ex�rcito. Era Orlando Geisel, o mais pr�ximo de seus irm�os. Tr�s anos e oito meses depois do di�logo absurdo com Coutinho, descartaria outro ministro do Ex�rcito, o general Sylvio Frota, que estava em campanha aberta para suced�-lo, com o apoio dos oficiais que traficavam viol�ncia nos por�es do regime. Nenhuma ditadura militar resiste a um presidente que dispensa dois ministros do Ex�rcito.


Antes de assumir, Geisel temia fracassar por n�o se considerar "flex�vel o suficiente" para a fun��o. No fim do mandato, essa se transformaria em sua maior virtude pol�tica. Gra�as a uma retid�o movida a id�ias fixas, Ernesto Geisel assumiria uma "ditadura sem ditador" e viraria "um ditador sem ditadura". Mas isso tamb�m � descoberta de Elio Gaspari.



Marcos S� Corr�a para a Companhia das Letras





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