Livro: O Mal sobre a Terra: uma hist�ria do terremoto de Lisboa
Autor(es): Mary del Priore
Editora: Topbooks
Ano: 2003
Nº de páginas: 324

O terremoto que na manh� de Todos os Santos de 1� de novembro de 1755 deixou Lisboa de ponta-cabe�a j� mereceu an�lises memor�veis de autores portugueses, franceses e ingleses ao longo destes dois s�culos e meio que nos separam desse fato �nico da hist�ria da Europa Ocidental. Por que, ent�o, uma historiadora brasileira se abala a reescrever a hist�ria desse terremoto, pedindo passagem a Joaquim Ver�ssimo Serr�o, Ant�nio Manuel Hespanha, Jorge Borges de Macedo, Eduardo Louren�o, Jos�-Augusto Fran�a, Fernando Castelo-Branco, Rui Bebiano e outros, como diz na introdu��o de seu livro?


Porque a Hist�ria est� a� mesmo para ser reescrita, pois cada gera��o, como se sabe, tem uma vis�o particular dos fatos. Ainda que os documentos sejam os mesmos, a interpreta��o sempre varia. E o fato de a historiadora ser brasileira pouco muda, pois a hist�ria de que trata � comum a Portugal e Brasil, n�o tivesse o ouro brasileiro ajudado a recuperar a Lisboa destru�da. Faz assim uma leitura brasileira dos acontecimentos.



Ao munir-se de muita erudi��o e leitura, Mary del Priore, doutora em Hist�ria e ex-professora de Hist�ria do Brasil da Universidade de S�o Paulo e da Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio de Janeiro, escreveu �O Mal sobre a Terra: uma hist�ria do terremoto de Lisboa�, instigante ensaio de hist�ria social em que procura descobrir o que esse fato representou para aqueles que o sofreram. E, assim, compreender tamb�m alguns aspectos da sociedade portuguesa.



Mary del Priore lembra que o desastre do 1� de novembro de 1755 colocou a f� dos portugueses contra a parede, pois deixara destru�da uma cidade cristian�ssima que tinha espalhado a f� pelo mundo pag�o. Deus, omnipotente e misericordioso, tratara justos e pecadores do mesmo jeito. Como explicar tal paradoxo?, questiona a historiadora.


Para os padres da Companhia de Jesus, foi a oportunidade de espelhar em seus serm�es que a cat�strofe era um castigo divino contra os pecados dos crist�os. Passou a circular, ent�o, um papel intitulado �Ju�zo da Verdadeira Causa do Terremoto�, de autoria do jesu�ta Gabriel Malagrida, que acabara de voltar do Brasil com a fama de santo.



Segundo o religioso, Lisboa atra�ra a f�ria divina porque as esposas de Cristo haviam quebrado �suas clausuras�, fazendo da cidade uma �Babil�nia de incontrol�vel confus�o�. Para Malagrida, Deus estava gravemente irado pelos pecados de todo o Reino e muito mais de Lisboa.



Muita tinta j� se gastou sobre epis�dio. E, com justi�a, muitos se levantaram contra a selvageria que foi a imola��o do padre na fogueira. Mas quem l� os documentos da �poca v� que o ministro de D. Jos�, Sebasti�o Jos� de Carvalho e Melo, o futuro marqu�s de Pombal, ficou numa situa��o insustent�vel diante do desafio que representavam as invectivas de Malagrida. Quem ler as distribes do padre s� pode imaginar que se tratava de um louco, um desvairado, um suicida, que, diante das circunst�ncias da �poca, buscava o seu pr�prio sacrif�cio.



Mary del Priore, de maneira percuciente, lembra algumas teses de Carvalho e Melo, especialmente aquela segundo a qual Portugal teria sido uma na��o poderosa e culta at� a chegada da Companhia de Jesus. A partir de ent�o, o obscurantismo teria se abatido sobre a universidade, as letras e as id�ias. As intrigas e o fanatismo teriam alimentado o envio de D. Sebasti�o � �frica, as alian�as com os espanh�is no reinado de Filipe II, a desgra�a em que caiu Francisco de Lucena durante a Restaura��o e o conflito da C�ria com o Santo Of�cio no reinado de D. Pedro II. Mais para frente, como observa a autora, a tentativa de regic�dio contra D. Jos� se encarregaria de engordar a lista de queixas contra os jesu�tas.



O que parece incontest�vel � que havia mesmo uma campanha em curso contra o ministro de D. Jos� movido pela Companhia de Jesus e o panfleto de Malagrida surgia como um ariete apontado contra o governo. Como observa a historiadora, o messianismo na voz do velho jesu�ta expressava uma resist�ncia alarmada contra a transforma��o cultural e social do pa�s. Era a voz do atraso que se levantava. Diante disso, a rea��o contra Malagrida representou a pr�pria sobreviv�ncia de Carvalho e Melo � frente do governo.



Contrariando boa parte da historiografia moderna, Mary del Priore defende que, apesar de toda a proemin�ncia dada a Carvalho e Melo no trabalho de recupera��o de Lisboa, o papel de D. Jos� n�o pode ser de todo descartado, mostrando que o filho de D. Jo�o V n�o foi um inepto � merc� de um primeiro-ministro desp�tico. Ali�s, D. Jos�, a exemplo de D. Jo�o VI, foi v�tima do republicanismo exacerbado de muitos historiadores do final do s�culo XIX para os quais tudo de ruim devia ser debitado � monarquia.



N�o � s� de D. Jos� e seu ministro que trata o livro que Mary del Priore escreveu numa linguagem f�cil que se aproxima � do romance policial, capaz de prender a aten��o do leitor at� a �ltima linha. Vai muito al�m em sua interpreta��o dos m�ltiplos significados do sismo a partir de depoimentos de sobreviventes, desde o conhecido testemunho de Jacome Ratton at� os de brit�nicos que tamb�m sofreram na pele o drama.



Na introdu��o, a historiadora j� se arma contra poss�veis cr�ticas ao seu trabalho, lembrando a famosa frase de C�mara Cascudo: �Sei dos recenseadores de omiss�es, mais atentos ao que falta do que verificadores do que existe�. Mesmo correndo o risco de vestir a carapu�a, em nome da verdade, por�m, � preciso que se diga que a autora limitou sua pesquisa, praticamente, a livros impressos - alguns raros, do s�culo XVIII.



As �nicas fontes manuscritas citadas s�o alguns documentos que constam do acervo do Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro, do Rio de Janeiro, dos Archives du Minist�re des Affaires �trang�res, de Paris, ou do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Sente-se, por isso, a aus�ncia de manuscritos da Torre do Tombo, da Biblioteca do Pal�cio da Ajuda e da Biblioteca P�blica de �vora, onde, por exemplo, est�o os pap�is de frei Manuel do Cen�culo. Nada disso, por�m, compromete a grandeza da obra.



Adelto Gon�alves




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