Sem imprensa - que era proibida -, o Brasil colonial informava-se por meio da rede de correspond�ncias que os homens de neg�cio estabeleciam para fazer as suas transa��es e aumentar seus cabedais. Com isso, os indiv�duos tornaram-se muito mais atentos ao cotidiano e, com as cartas que trocavam, acabaram produzindo, sem o saber, um testemunho precioso dos costumes e da vida social de seu tempo.
O m�rito de J�nia Ferreira Furtado, professora de Hist�ria da Universidade Federal de Minas Gerais, foi resgatar essas informa��es que jaziam nos arquivos e restabelecer os fios da mem�ria para tra�ar um extenso painel sobre como pensavam e agiam os comerciantes do s�culo XVIII que viveram em Minas Gerais, sempre na depend�ncia de suas boas rela��es com a metr�pole.
Para tanto, J�nia Furtado partiu do estudo da correspond�ncia trocada entre Francisco Pinheiro, grande comerciante portugu�s, e seus agentes comerciais nas Minas, entre 1712 e 1744, que Lu�s Lisanti F. j� havia publicado em "Neg�cios Coloniais: Uma Correspond�ncia Comercial do S�culo XVIII", com base em documenta��o do Arquivo do Hospital de S�o Jos�, antigo Hospital Real de Todos os Santos de Lisboa. Em 1994 essa documenta��o foi transferida para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Ao confrontar essas cartas j� publicadas com invent�rios e testamentos localizados no Arquivo P�blico Mineiro, na Casa Borba Gato, anexo do Museu do Ouro de Sabar�, na Casa do Pilar do Museu da Inconfid�ncia, de Ouro Preto, e na Casa Setecentista de Mariana e ainda os invent�rios de bens confiscados de crist�os-novos por Anita Novinsky em Crist�os-Novos na Bahia, J�nia Furtado conseguiu com "Homens de Neg�cios: a Interioriza��o da Metr�pole e do Com�rcio nas Minas Setecentistas" resgatar o perfil perdido desses negociantes, especialmente o modo como agiam e estabeleciam as redes de compadrio que garantiam o sucesso de seus neg�cios.
Francisco Pinheiro, a figura central da documenta��o, era comerciante que sempre viveu em Lisboa e fez do tr�fico de influ�ncia na Corte o motor da fortuna que amealhou. Ainda que fosse analfabeto, manteve farta correspond�ncia - com certeza escrita por outrem - com seus intermedi�rios comerciais, os comiss�rios, que manteve no Norte da Europa, �frica e Brasil. Enriqueceu com os neg�cios coloniais, especialmente durante a febre do ouro e dos diamantes em Minas na primeira metade do s�culo XVIII. Seus comiss�rios eram pessoas de absoluta confian�a, geralmente familiares, que mantinham com ele rela��es de total subservi�ncia.
Na col�nia, onde as rela��es se assentavam na depend�ncia e favorecimento, era vital para quem quisesse ascender socialmente conhecer quem tivesse grande influ�ncia na Corte. Como os cargos administrativos eram fonte segura de rendimento financeiro e, mais que isso, uma forma de garantir a participa��o no poder, os candidatos a homens bons dependiam umbilicalmente daqueles que tinham acesso direto ao rei ou seus ministros ou ao Conselho Ultramarino. Foi dentro desse esp�rito que Francisco Pinheiro arrematou v�rios of�cios para seus agentes. �s vezes, at� adiantava dinheiro para garantir o cargo para o apaniguado, sempre de olho nos rendimentos e nos neg�cios que adviriam daquele posto.
A introdu��o de irm�os, sobrinhos e afilhados nos neg�cios era a maneira que o grande negociante de Lisboa encontrara de ajudar a fam�lia e amigos, promovendo a abertura de oportunidades nas col�nias e, ao mesmo tempo, estendendo a sua rede de influ�ncia e neg�cios. Como as rela��es financeiras eram extremamente pessoais, essa era tamb�m uma forma de garantir a fidelidade necess�ria para que os la�os comerciais fossem cada vez mais fortes. Sem contar que aquele que fraudasse a confian�a do grande comerciante de Lisboa poderia ter definitivamente fechadas todas as portas de ascens�o social.
Como os cargos eram comprados, ficava impl�cito que ao comprador o que interessava era mesmo o rendimento que poderia tirar dele em benef�cio pr�prio. Estabeleciam-se assim redes de corrup��o em que a Coroa sempre sa�a lesada. Por for�a desse esquema, tais cargos muitas vezes ca�am nas m�os de pessoas despreparadas para a fun��o e at� sem tempo para exerc�-los devido aos pr�prios compromissos comerciais, o que significava dificuldades para o funcionamento da m�quina burocr�tica.
Os ouvidores, por exemplo, em tese s� perdiam em poder para os capit�es-generais e governadores, mas quase nada podiam fazer contra esses subordinados, at� porque viviam, muitas vezes, na depend�ncia econ�mica desses comerciantes. Como a sua estada na col�nia era sempre tempor�ria, os ouvidores acabavam aceitando a situa��o sem reclamar, at� porque tinham outras preocupa��es, pois tratavam igualmente de garantir um bom cabedal para levar de volta ao Reino. Assim, era comum que o ouvidor fosse um homem mais pobre do que o seu escriv�o, ainda que mais nobilitado pela import�ncia de seu cargo e por seus estudos em Coimbra.
Autora de outro trabalho fundamental para quem quer compreender o s�culo XVIII mineiro, "O Livro da Capa Verde: A Vida no Distrito Diamantino no Per�odo da Real Extra��o", J�nia Furtado, com seu novo estudo, estabelece tamb�m que os candidatos a comerciantes que chegavam do Reino provinham geralmente do Norte de Portugal, especialmente das regi�es dos rios Minho e Douro. Eram, em sua maioria, solteiros, sem grandes v�nculos familiares. Muitas vezes, n�o chegavam a casar na col�nia, mas quase sempre deixavam extensas proles de filhos bastardos, geralmente com negras, muitas delas alforriadas em testamento.
Esses homens, uma vez nas Gerais, procuravam inserir-se na sociedade local. Depois que enriqueciam e ganhavam alguma proje��o social, tratavam de lutar por cargos administrativos para que se notabilizassem. Ao mesmo tempo, diversificavam seus investimentos em terras, escravos e lavras, sempre em busca de s�mbolos de dignifica��o.
Nem sempre, por�m, esses senhores do grosso trato foram bem vistos. Com sua forma de viver valorizava extremamente o lucro e a usura, costumavam despertar a aten��o da Inquisi��o. Como a maioria era formada por crist�os-novos, tornavam-se vulner�veis �s investidas inquisitoriais. Sem contar que o seu enriquecimento desmedido amea�ava tamb�m a sociedade esclerosada que vivia na metr�pole. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1789, quando grandes comerciantes, descontentes com a forma como passaram a ser tratados pela Coroa, imaginaram a Conjura��o de Minas Gerais. Mas esta � outra hist�ria.