Livro: Ser m�dico no Brasil
Autor(es): Andr� Pereira Neto
Editora: Fiocruz
Ano: 2001
Nº de páginas: 231

Para entender e apreciar o valor de "Ser M�dico no Brasil: o presente no passado", que Andr� Fria Neto apresenta como resultado elaborado de sua tese de doutorado em Sa�de Coletiva, � necess�rio fazer uma retrospectiva, ainda que sum�ria e for�osamente superficial, da evolu��o recente da pesquisa s�cio hist�rica neste campo.


O pr�prio campo da sa�de coletiva, ali�s, � recente como �rea de conhecimento e sua g�nese mal chega a computar quatro d�cadas. Mas uma demarca��o aproximadamente exata � situar a origem da pesquisa s�cio hist�rica nos anos setentas, com trabalhos inaugurais tamb�m resultantes de teses de doutorado.


Um dado inicial importante a assinalar na produ��o dessa d�cada � a centralidade do Estado na constitui��o dos objetos de estudo. A natureza, estrutura e hist�ria do Estado capitalista, suas �leis� e caracter�sticas fundamentais, seu papel no desenvolvimento econ�mico, no da sociedade civil e das institui��es, suas pol�ticas e a repercuss�o no processo sa�de/doen�a das popula��es definiam os n�cleos b�sicos de preocupa��o das pesquisas sociais em sa�de.


� verdade que esta preocupa��o era dominante em todas as disciplinas do campo das ci�ncias sociais (hist�ria, pol�tica, sociologia, economia, e at� certo ponto, na pr�pria antropologia) e n�o se pode dizer que era uma caracter�stica t�pica dos estudos brasileiros. Ela simplesmente denotava a hegemonia de um esquema te�rico explicativo nas ci�ncias sociais na �poca, de tend�ncia hist�rico estrutural, englobando os estudos marxistas, weberianos ou aqueles, numerosos, resultantes da combina��o de ambas escolas de pensamento social.


Os estudos sobre atores sociais ou pol�ticos no processo de forma��o ou do desenvolvimento em curso do Estado capitalista (�an�lises de conjuntura�), abundantes no per�odo tanto no Brasil como na Europa (Fran�a, It�lia e Alemanha) s�o tentativas, muitas vezes bem sucedidas, de conciliar a teoria weberiana da a��o social com o determinismo estrutural do pensamento marxista. Tais estudos dominaram a produ��o de pesquisas sociais na d�cada de setenta.


Em que pese sua imensa contribui��o para o entendimento da estrutura capitalista de produ��o e de poder, as pesquisas s�cio hist�ricas estruturalistas, mesmo aquelas com vi�s nacionalista, tinham um limite epistemol�gico s�rio para o reconhecimento das institui��es como n�cleos espec�ficos de poder, bem como o dos atores institucionais ou de sujeitos individuais, grupais e corporativos e seu importante papel na origem, constitui��o, reprodu��o e/ou manuten��o do Estado.


Tinham, al�m disto, uma grande dificuldade quanto ao reconhecimento do papel do evento e do eventual nas transforma��es hist�ricas, uma vez que a singularidade do acontecimento � muito dif�cil de ser apreendida em �leis�.


A s�ntese de atores, eventos e estruturas no plano hist�rico � um trabalho reconhecidamente dif�cil de ser conduzido no plano te�rico e, sobretudo, metodol�gico. Andr� o faz, entretanto, com compet�ncia e brilhantismo no seu livro quando alia disciplinas do campo social, como a hist�ria, a sociologia e a pol�tica no desenvolvimento de seu complexo objeto de estudo, que justamente tenta sintetizar indiv�duos, com suas biografias, atores profissionais, institucionais, elite, ordem pol�tica e conjuntura num evento singular: um congresso m�dico.


Os estudos estruturais dos anos 70 - e primeira metade dos oitenta, para ser mais fiel aos fatos - tendiam a desconhecer tamb�m a import�ncia das contradi��es institucionais e dos conflitos internos ao Estado, a resist�ncia da sociedade civil a normas e pol�ticas institucionais, bem como a pr�pria instabilidade das pol�ticas estatais, deixando de lado uma complexa diversidade s�cio pol�tica importante para se ter uma vis�o mais adequada da conjuntura - e portanto, de modo mediato, da pr�pria estrutura s�cio pol�tica. Com isto acabava-se tendo a vis�o monol�tica de um leviat� em rela��o ao capitalismo, e a domina��o do Estado capitalista aparecia quase como um destino, se exclu�da a salva��o revolucion�ria.


Neste contexto te�rico tornava-se dif�cil a aceita��o de estudos s�cio hist�ricos como este, de Andr� Pereira Neto, que se dispusessem a tematizar institui��es e atores institucionais espec�ficos, lutas ou conflitos institucionais e o papel das institui��es e seus atores na g�nese, reprodu��o ou supera��o da ordem social e pol�tica capitalista no Brasil. Essas categorias, ali�s, n�o eram utilizadas no esquema anal�tico do pensamento hist�rico estrutural, mais afeito �s categorias do marxismo cl�ssico, como infra estrutura e super estrutura, ideologia, contradi��o, determina��o (ou determina��o em �ltima inst�ncia), classe social, Estado, domina��o, aliena��o, conflito e luta de classes.


Uma conseq��ncia importante do contexto citado, em termos anal�ticos, foi o empobrecimento quantitativo e qualitativo de estudos verdadeiramente s�cio hist�ricos no campo da sa�de durante mais de uma d�cada. O que desejo mencionar aqui s�o os estudos em que a Hist�ria como disciplina tem sua import�ncia metodol�gica e anal�tica reconhecida e a Sociologia (ou a Pol�tica) fornece um fio condutor de hip�teses verdadeiramente investig�veis, suscet�veis de provocar �descobertas�, isto �, contribuir para trazer novos fatos e novas quest�es te�ricas n�o s� ao objeto em investiga��o como ao campo das disciplinas que promovem o estudo. � o caso da tese ora lan�ada em livro.


Nos anos oitenta, sobretudo na segunda metade da d�cada, a situa��o da pesquisa s�cio hist�rica no campo da sa�de passa por uma transforma��o auspiciosa. Surge na FIOCRUZ a Casa de Oswaldo Cruz, que se encarregar� de pesquisas hist�rico institucionais no campo das ci�ncias ligadas � sa�de, e que trabalhar� basicamente com a hist�ria como disciplina �m�e� de seus estudos. O desenvolvimento de pesquisas s�cio hist�ricas em sa�de � indiretamente beneficiado por esse surgimento, tanto no Rio de Janeiro como em outros estados do pa�s. Andr� Faria Neto, como historiador de origem, integraria em seguida o time de pesquisadores da �Casa�, como ele se refere com carinho.


Al�m deste fato, auspicioso, ratifico, outros acontecimentos favoreceram o deslanchar da pesquisa s�cio hist�rica no final dos anos oitenta e durante toda a d�cada de noventa: o desenvolvimento de pesquisas s�cio antropol�gicas na �rea de sa�de, motivadas por quest�es at� ent�o n�o t�o impactantes na vida social, tais como: as novas epidemias (a AIDS aparece, neste contexto, como um �cone), o ressurgimento de antigas epidemias e endemias, a viol�ncia como um fato social assustador, a quest�o dos g�neros (sobretudo a quest�o da sa�de da mulher), a quest�o da crian�a e do adolescente, al�m da quest�o atual do poder das bioci�ncias, da �tica em rela��o � vida humana (a bio�tica), da perda qualidade de vida, da pobreza e do sofrimento das popula��es no capitalismo globalizado.


Esse conjunto de investiga��es realizados nos mais diversos centros do pa�s fez expandir a quest�o da pesquisa social em sa�de para muito al�m das fronteiras do Estado como objeto privilegiado de estudo, situa��o do momento anterior. Al�m disto, a hist�ria em desenvolvimento nas pesquisas do campo da sa�de, hist�ria de institui��es, de atores, de saberes e de pr�ticas em sa�de, encontrou desde o in�cio, e encontra ainda, muita afinidade com os estudos s�cio antropol�gicos. N�o sendo uma hist�ria macro estrutural, voltada para o Estado e suas quest�es centrais, consegue aliar-se a disciplinas com objetos de estudo ligados � vida cotidiana de pessoas e institui��es, a pr�ticas, h�bitos, costumes e representa��es sociais em g�nese, desenvolvimento, transforma��o e extin��o.


Em suma, as quest�es mais ligadas � cultura e seu universo n�o est�o exclu�das das preocupa��es dos estudos s�cio hist�ricos atuais em sa�de, muito pelo contr�rio. As quest�es pol�ticas tematizadas nos estudos s�cio pol�ticos em sa�de, por sua vez, levam em considera��o as institui��es, os atores envolvidos com as mesmas, e pr�pria cultura institucional como objeto de an�lise, favorecendo uma percep��o s�cio cultural do Estado. Categorias como pr�ticas e representa��es, antes limitadas � antropologia, e por vezes � sociologia (como a de Pierre Bourdieu) t�m livre passagem em estudos pol�ticos no campo da sa�de, que aliam tais categorias �s de atores institucionais, interesses (de atores), cultura institucional, etc. na an�lise de pol�ticas p�blicas e do Estado.


Dessa grande transforma��o interna ao campo beneficiou-se o estudo de Andr� Pereira Neto, que pode transitar com desenvoltura entre o macro e o micro n�vel do poder institucional, entre a vida cotidiana e a ordem republicana em constru��o, entre conjuntura e estrutura, entre profiss�o e elite, entre indiv�duo e classe social, entre arrog�ncia pessoal e estilo profissional, entre autoridade cient�fica e poder pol�tico. Do mais singular, que s�o indiv�duos reunidos em um evento profissional, ao mais global, que � a ordem pol�tica brasileira em um dos seus momentos conjunturais mais significativos, Andr� mostra o tecido da trama do poder pol�tico e simb�lico dos m�dicos na sociedade brasileira, com seus arautos, seus defensores entusiastas ou retra�dos, seus projetos, ricos em sua diversidade ilustrativa da composi��o da profiss�o m�dica naquele momento.


Resta dizer que o autor realiza essa verdadeira fa�anha com estilo flu�do e elegante, fazendo de sua narrativa de historiador um texto agrad�vel de se ler, leve, embora vigoroso, fazendo-nos crer que uma �hist�ria� est� sendo contada.



Madel T. Luiz




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