Academia de Letras da Bahia e Assembl�ia Legislati
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412
H� dois personagens da vida pol�tica em fins do s�culo XVIII na Am�rica portuguesa que emergem de maneira diametralmente oposta na Hist�ria. Um deles � o alferes Joaquim Jos� da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), que, em vida, nunca teve grande proje��o, pois, afinal, quando dava os primeiros passos nas articula��es que culminariam com a Inconfid�ncia Mineira, foi detido e condenado � morte por enforcamento.
Um s�culo mais tarde, Tiradentes seria elevado pela propaganda republicana a her�i nacional, m�rtir da p�tria, precursor da independ�ncia, elemento de destaque na forma��o de uma mitologia nacional. Tudo isso, por�m, hoje � discut�vel porque, � �poca de Tiradentes, n�o havia ainda a unidade e a consci�ncia nacional que s� viriam com a presen�a do pr�ncipe regente dom Jo�o, a partir de 1808. Se a conjura��o mineira de 1789, a carioca de 1794 e a baiana de 1798 tivessem dado certo, o Brasil n�o seria o que � hoje, mas sim um territ�rio retalhado em pequenas rep�blicas, como se deu na Am�rica espanhola.
O outro personagem que surge com for�a ao final do s�culo XVIII na Am�rica portuguesa � Cipriano Jos� Barata de Almeida (1762-1838), que, ao contr�rio de Tiradentes, teve uma vida pol�tica �tormentosa e fervente�, como disse dele o romancista Joaquim Manuel de Macedo, despertando iras e paix�es, sendo alvo de idolatrias e violentas persegui��es. At� porque foi um das primeiras lideran�as pol�ticas de amplitude nacional que se forjou no per�odo posterior � Independ�ncia em 1822.
Ao contr�rio de Tiradentes, por�m, Cipriano n�o foi escolhido para ocupar o pante�o de her�is nacionais e, muitas vezes, seu nome passa quase despercebido nos comp�ndios da Hist�ria do Brasil. � deste personagem singular que trata o livro "Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade", ensaio biogr�fico de car�ter hist�rico escrito pelo historiador Marco Morel, doutor em Hist�ria pela Universidade de Paris I (Panth�on-Sorbonne) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Para escrever este livro, que, inicialmente, constituiu sua disserta��o de mestrado em Hist�ria do Brasil defendida em 1990 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Morel pesquisou n�o s� documentos manuscritos no Instituto Hist�rico e Geogr�fico Brasileiro como extensa bibliografia impressa na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e outros arquivos cariocas, inclusive a cole��o de jornais de Cipriano Barata que faz parte do acervo da Funda��o Biblioteca Nacional. Mas � disserta��o acabou por acrescentar novas pesquisas realizadas em arquivos de Salvador, Recife e da Fran�a, retirando, por�m, trechos que lhe pareceram excessivamente datados ou t�picos de uma produ��o acad�mica.
Do jovem Cipriano Barata, o que se conhece � que era filho leg�timo do tenente Raimundo Nunes Barata, nascido no Reino, e de Lu�za Josefa Xavier, natural da Am�rica portuguesa. E que se matriculou no curso de Filosofia na Universidade de Coimbra em 1786, passando para o de Matem�tica e, em seguida, para o de Medicina. Foi contempor�neo de Jos� Bonif�cio de Andrada e Silva, de Jos� Eg�dio Alves de Almeida, futuro secret�rio particular de dom Jo�o VI, de Manuel C�mara de Bittencourt, futuro intendente dos diamantes em Minas Gerais, e de outros nomes que se tornaram famosos na passagem do s�culo XVIII para o XIX. Apesar de sua origem social ser semelhante � de muitos companheiros de universidade, Barata nunca ocuparia cargo na burocracia do Estado.
Pelo contr�rio. Esteve sempre do outro lado, envolvendo-se, a princ�pio, na Conjura��o Baiana de 1798. Lavrador, cirurgi�o, intelectual considerado herege pelo Santo Of�cio, Cipriano Barata, naquele ano, seria denunciado a sua majestade pelo padre Jos� da Fonseca Neves, que o acusava de �publicar suas depravadas paix�es entre os r�sticos povos� de Salvador e arredores. O mesmo padre investiria outra vez contra Barata, �um dos doutores da dita francesia�, e suas acusa��es seriam acatadas em Lisboa. No entanto, o Santo Of�cio, ao saber que Cipriano passara 13 meses na cadeia entre 1798 e 1799, arquivaria o processo.
Depois da participa��o na conjura��o baiana de 1798, o nome de Cipriano Barata volta a ganhar proje��o quase duas d�cadas mais tarde, quando se envolve no movimento conhecido como Rep�blica de 1817. Os rebeldes, desafiando dom Jo�o VI, assumiram o governo em Pernambuco, com a ades�o da Para�ba, Cear� e Rio Grande do Norte, durante dois meses e meio, a partir de 4 de maio. Havia n�tida influ�ncia do ide�rio da Am�rica inglesa independente, republicana e escravista e do liberalismo p�s-Revolu��o Francesa. A rebeli�o de 1817 � combatida e derrotada por tropas que sa�ram da Bahia, ent�o governada por dom Marcos de Noronha e Brito, o oitavo conde dos Arcos. Cipriano seria amea�ado pessoalmente pelo pr�prio conde dos Arcos de ter a cabe�a cortada.
A advert�ncia, por�m, n�o teria qualquer efeito. A presen�a de Cipriano haveria de crescer ainda mais no per�odo de quatro anos que vai da not�cia do Movimento Constitucionalista do Porto no Brasil em fins de 1820 at� a derrota da Confedera��o do Equador (fins de 1824). Segundo Marco Morel, esse per�odo n�o � s� da Independ�ncia em 1822, mas marca um tempo que serviu de verdadeiro laborat�rio de experi�ncias pol�ticas diversificadas, com a manifesta��o de atores pol�ticos at� ent�o sem espa�o para express�o.
Os republicanos de 1817 estavam na cadeia quando a not�cia do Movimento do Porto espalhou-se na Am�rica portuguesa. A partir da�, as for�as sociais come�aram a se levantar: capit�es-generais foram substitu�dos por juntas mistas, com a predomin�ncia dos �europeus nascidos no Brasil�. A primeira capitania a aderir ao Movimento do Porto foi a do Gr�o-Par� e, depois, a da Bahia, onde o conde da Palma, nomeado por dom Jo�o VI, mostrando-se contr�rio a qualquer medida liberalizante, acirrara os �nimos dos republicanos. O que queriam os republicanos? O fim do absolutismo mon�rquico, com a sua substitui��o por um �governo constitucional representativo�, mas sem a queda da monarquia.
No dia 21 de setembro de 1821, como conta Morel, Cipriano Barata foi eleito deputado em Salvador e, depois de quase tr�s d�cadas, voltava a Portugal, agora para participar das Cortes Constituintes. Em pouco tempo, entrou em atrito com os deputados eleitos por Portugal. Para ele, se os portugueses eram contra a independ�ncia do Brasil e liberais ao mesmo tempo, cabia condenar-lhes o aspecto �recolonizador� e n�o o liberalismo que buscava destruir a velha ordem absolutista.
Em Lisboa, ao final de agosto de 1822, Cipriano recebeu a not�cia de que, a 3 de junho, dom Pedro convocara uma Assembl�ia Geral Constituinte e Legislativa no Brasil, paralela, portanto, �s Cortes de Lisboa. Era j� a independ�ncia, perceberam Cipriano e um grupo minorit�rio de parlamentares brasileiros em Lisboa, j� que havia outros que n�o aceitavam a separa��o.
No dia 19 de setembro, houve uma reuni�o tumultuada. O deputado Fernandes Tom�s, um dos l�deres do Movimento do Porto, fizera um discurso em que dizia: �Passe l� muito bem, senhor Brasil!�. Ao que Cipriano respondeu: �Adeus, senhor Portugal, passe por c� muito bem - adeus [...] Fiquem os portugueses no seu Portugal e os brasileiros no seu Brasil�. Era a ruptura. Em seguida, Cipriano e outros seis deputados que assumiram essa posi��o trataram de organizar uma fuga clandestina, em meio a press�es a que assinassem a Constitui��o do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Sem passaportes, os sete fugitivos zarparam no navio ingl�s Duke of Malbourough, com destino ao porto brit�nico de Falmouth.
A independ�ncia alcan�ou Cipriano j� sexagen�rio, mas ainda combativo. De volta ao Brasil, n�o iria para a Bahia, � �poca em guerra civil com as tropas do general Madeira, que era contr�rio � separa��o. Iria para Recife. Logo, por meio de jornais ef�meros ou panfletos, travaria muitas pol�micas com Jos� Bonif�cio e Jos� da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, arautos do absolutismo mon�rquico. Nem o agora imperador dom Pedro escaparia da pena de Cipriano Barata e seu jornal, O Sentinela da Liberdade, que mudaria de localidade � medida que o seu autor mudava de lugar.
Logo o panflet�rio seria preso e levado para a Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, a 4 de dezembro de 1823. No calabou�o, n�o teria a oportunidade de participar diretamente da Confedera��o do Equador, articula��o que englobou sete prov�ncias e mobilizou milhares de homens armados. No entanto, antes, em Pernambuco fora respons�vel, ao lado de frei Caneca, pela efervesc�ncia que levaria a regi�o � guerra civil. Passaria quase todo o chamado Primeiro Reinado na cadeia, sem deixar de escrever, sempre que podia, o Sentinela.
Mas nem a pris�o foi capaz de calar este homem combativo: em 1831, Diogo Feij�, ministro da Justi�a, o chamaria de maneira velada de �anarquista�, ao determinar a repress�o ao motim na Ilha das Cobras no qual Cipriano fora acusado de estar envolvido. O curioso � que Feij� como deputado participara com Cipriano das Cortes de Lisboa. De novembro de 1823 a novembro de 1835, o panflet�rio ficaria apenas pouco mais de um ano fora da pris�o. Ao ser libertado, volta para Pernambuco, de onde logo se muda com a fam�lia para a Para�ba. Recebe, ent�o, um convite do presidente da prov�ncia do Rio Grande do Norte para residir em Natal, povoa��o pequena e pobre do Nordeste brasileiro, onde terminaria seus dias quase no anonimato.
Injustamente esquecido pela propaganda republicana do final do s�culo XIX e in�cio do XX, ao contr�rio do Tiradentes, Cipriano Barata, com este livro de Marco Morel, ganha, finalmente, a biografia que lhe faltava, depois que Lu�s da C�mara Cascudo (1938) e H�lio Viana (1946) escreveram perfis em que n�o conseguiram evitar os pruridos conservadores que tinham em rela��o ao biografado. Independente de qualquer matiz ideol�gico, Cipriano Barata foi int�rprete de uma na��o a que observou num momento de sua hist�ria e da qual se sentiu solid�rio at� o final. Um her�i de seu tempo.