No s�culo XVIII, Portugal teve nas m�os de dom Jo�o V e em dom Jos� I dois reinados que contribu�ram de maneira decisiva para elevar as artes gr�ficas a um n�vel compar�vel aos das na��es mais desenvolvidas da Europa. Foi com dom Jo�o V que a tipografia, depois de atingir o apogeu na primeira metade do s�culo XVI, ressurgiu, alcan�ando um esplendor para o qual muito concorreu a cria��o da Academia Real de Hist�ria Portuguesa, em 1720. Essa fase de reflorescimento das artes gr�ficas encerra-se entre a morte do rei em 1750 e o terremoto de 1755, que colocou o Reino quase de pernas para o ar.
Outro per�odo de renascimento das artes gr�ficas come�a sob o reinado de dom Jos� I, provavelmente inspirado pelo ministro Sebasti�o Jos� de Carvalho e Melo, o futuro Marqu�s de Pombal, com a cria��o de Impress�o R�gia e da Primeira Aula de Gravura, a cargo do professor Joaquim Carneiro da Silva, que formou artistas que elevaram esta arte a um grau nunca antes alcan�ado. Com a sa�da do mestre, a atividade entrou em decl�nio, ressurgindo em 1802 com a chegada do florentino Francesco Giuseppe Eligio Bartolozzi, que, entre outras obras, fez a famosa gravura com a ef�gie de Bocage com base no retrato pintado por Henrique Jos� da Silva.
Por aqui se v� que esta foi uma �poca fundamental para o avan�o do saber, das id�ias e dos modos de vida social em Portugal. � no s�culo XVIII que, praticamente, tudo teve origem. E, por tr�s de todo esse movimento, n�o h� d�vidas de que estavam os livreiros, agentes decisivos para a evolu��o cultural. � dos livreiros do s�culo XVIII que trata este livro de Manuela D. Domingos, investigadora da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Formado, na maior parte, por textos que j� haviam sa�do � luz separadamente, "Livreiros de Setecentos" traz de in�dito apenas o �ltimo cap�tulo, �Jorge Rey, livreiro e coleccionador�, conclu�do no �mbito do Projecto Pr�xis XXI da FCSH/BN �Guia de fontes arquiv�sticas e bibliogr�ficas para a hist�ria do livro em Portugal (s�culos 16-18)�. O primeiro cap�tulo, �Colporteurs ou livreiros? Acerca do com�rcio livreiro em Lisboa, 1727-1754�, foi publicado na Revista da Biblioteca Nacional, de janeiro-junho de 1991; o segundo, �Mercado livreiro no s�culo 18: mecanismos e agentes�, na revista Barata, Lisboa, de agosto-outubro de 1995; e o terceiro, �Contratos e sociedades de um livreiro de Setecentos: Jo�o Baptista Reycend�, tamb�m na Revista da Biblioteca Nacional, de janeiro-dezembro de 1995.
Livro escrito por quem tem por of�cio vasculhar e catalogar livros e documentos raros, Livreiros de Setecentos impressiona pela maneira criteriosa como sua autora levantou n�o s� arquivos notariais como outros fundos, especialmente processos judiciais, para erguer um painel do panorama livreiro em Portugal no s�culo XVIII, rastreando especialmente os passos de um grupo de livreiros procedentes da regi�o de Turim ou, de maneira mais geral, da regi�o montanhosa encravada entre a Fran�a e It�lia, mais especificamente da pequena localidade de Monestier de Brian�on (Altos Alpes), no Delfinado.
Como observa Manuela D. Domingos, a vinda desse grupo tem in�cio ainda no s�culo XVII, ao tempo em que o Conde da Ericeira colocava em pr�tica uma pol�tica de fomento industrial acompanhada pela difus�o das id�ias reformistas de Duarte Ribeiro de Macedo. De destacar nesse grupo, � a chegada de Pedro Faure, em data ainda desconhecida, que viria a se tornar dono de uma livraria importante e iniciador de uma "dinastia" que iria prolongar-se, em linha directa, at� 1875: os Bertrand.
A autora localizou na Gazeta de Lisboa que, desde 1727, Faure tinha loja de estampas, em seu nome, � Cordoaria Velha: e que, em 1736, vivia ao Conde de S.Tiago, talvez j� dedicado ao com�rcio livreiro. Faure casa-se com Magdalena Bunnardel Brunier, natural de Monestier de Brian�on, que lhe daria duas filhas: uma, que levou o nome da m�e, casaria com Jo�o Jos� Bertrand, e outra, Caterina, com Martinho Bertrand. Os Bertrands tamb�m eram origin�rios de Monestier de Brian�on.
Manuela D. Domingos mostra ainda que os livreiros estrangeiros (franceses, genebrinos etc) foram tamb�m os agentes de liga��o com o mercado internacional do livro, seguindo os tra�os dos centros de edi��o europeus, fazendo com que Lisboa, tal como C�dis, funcionasse como verdadeira plataforma girat�ria para seus produtos alcan�arem as Am�ricas.
Avan�ando no s�culo XIX, Manuela D. Domingos tra�a tamb�m o perfil de outro livreiro famoso, Jo�o Baptista Reycend, estabelecido em Lisboa desde 1756. Passado quase meio s�culo de seu estabelecimento em Portugal, Reycend ainda era visto como �franc�s�, acusado de �pedreiro-livre�, ou amigo deles, freq�entador de reuni�es conspirat�rias pr�ximas do usurpador, o general Junot. Ainda que invocasse sua condi��o de turin�s, Reycend n�o conseguiu evitar o seq�estro de seus bens, uma pequena casa e quintal comprados em Camarate, nos anos de 1780, e sua livraria, fato que se deu em 1810, meio ano depois de ele, preventivamente, ter se ausentado para Londres.
De Jorge Rey, Manuela D. Domingos tamb�m tra�a um perfil biogr�fico, valendo-se de uma peti��o em que o livreiro, em fevereiro de 1809, suplica a gra�a da naturaliza��o como portugu�s para n�o ser alcan�ado pelas ordens de expuls�o dada aos franceses. Nessa peti��o, Rey, quase no fim da vida, exp�e aspira��es, desejos e realiza��es profissionais e culturais de toda uma vida passada em Portugal, considerando-se portugu�s, conhecendo e relacionando-se com as principais pessoas de seu tempo.
Com base nos documentos arrolados pela autora, v�-se que Jorge Rey chega a Lisboa, em data pr�xima ao terremoto de 1755, para trabalhar na casa do cunhado, Jo�o Jos� Bertrand, que, por morte da primeira mulher - uma das filhas de Pedro Faure -, casara-se em segundas n�pcias com Maria Clara Rey, na terra de origem comum, Monestier de Brian�on. Vivendo e trabalhando com o cunhado, Jorge Rey logo monta neg�cio pr�prio, estabelecendo sociedade com Jos� Agostinho Borel, mercador de livros, tamb�m dos Altos Alpes.
Jorge Rey n�o casaria nem teria herdeiros e, por volta de 1765, mandaria vir de Monestier um sobrinho, Pedro Jos� Rey, que haveria de se iniciar nos neg�cios com o tio. Em 1776-1777, com o sobrinho, Rey rumaria para outra atividade comercial, investindo na abertura de uma f�brica de atanados em Odemira, aproveitando-se de isen��es e privil�gios concedidos pela Coroa. Por raz�es de doen�a, a aventura de Rey em Odemira seria curta e, em 1799, estava de volta a Lisboa, vendendo sua cota no estabelecimento fabril � irm� e sobrinhos, a Vi�va Bertrand & Filhos, a mais famosa casa de livros de Portugal ao seu tempo.
Rey n�o voltaria ao com�rcio de livros, mas continuaria a dedicar-se � cultura como colecionador apaixonado pela Hist�ria Natural, mantendo um museu de conchas que teria sido teria perdido (espoliado ou destru�do) � turbulenta �poca das invas�es francesas.
Fundado solidamente em investiga��es documentadas, este livro de Manuela D. Domingos � n�o s� uma fascinante viagem ao incipiente mundo livreiro da Lisboa do s�culo XVIII como o ponto de partida de um programa mais vasto de pesquisas que inclui outros projetos que, fatalmente, ir�o promover uma renova��o da hist�ria do livro em Portugal. Sem deixar tamb�m de constituir um importante instrumento de trabalho para outros pesquisadores.