Troca de amores e favores: senhores e escravos no Maranh�o setecentista
 

Kelcilene Rose Silva
 


1. Introdu��o

Zambi, meu rei, se foi, mas vai voltar
em cada negrinho que chorar!
Zambi, meu pai, Zambi, meu rei,
�ltima prece que rezou
foi da beleza de viver!
Olorum er�.


Arena conta: Zumbi
Vin�cius de Morais(1)


Os documentos transcritos e analisados para efeito deste trabalho consistem um �corpus� de oitenta e um testamentos que fazem parte do Livro de Testamentos (1763-1779) e Livro de Testamentos (1800), treze div�rcios, tr�s Justifica��es de Sev�cias, um Auto de Justifica��o e um Feito C�vel. Esta documenta��o faz parte do Arquivo da Arquidiocese de S�o Lu�s e est� hoje sob administra��o do Arquivo P�blico do Estado do Maranh�o.


Em tais documentos resolvemos privilegiar passagens que se referiam � escravid�o em seus diversos aspectos; procuramos, por meio de leituras e an�lises, compreender e resgatar tra�o das rela��es entre escravos e senhores no cotidiano da sociedade maranhense setecentista.


Adotamos crit�rios que v�m sendo utilizados pelo Grupo de Pesquisa que integramos, consistentes em que se privilegie uma vis�o �de dentro� da col�nia, e n�o uma obtida a partir de documentos destinados � metr�pole, hoje conservados em Portugal. Do mesmo modo, esfor�amo-nos para que as leituras de fontes secund�rias interferissem na nossa vis�o e conclus�es apenas como subs�dios, e ap�s a id�ia b�sica sobre o objeto j� haver sido por n�s concebida a partir dos documentos transcritos. Entendemos que os trabalhos anteriores que abordam o per�odo e o tema j� est�o realizados e j� tiveram suas conseq��ncias; n�o nos cabe repis�-los. J� os documentos com que contamos, rec�m transcritos em sua maioria, n�o foram utilizados pela historiografia tradicional; cabe-nos, portanto, quase como um dever, explor�-los ao m�ximo, como originais.


Partimos de que, enquanto na economia a�ucareira nordestina agroexportadora os padr�es sociais t�m, desde sua origem, a marca da subordina��o ao interesse da pol�tica mercantilista reinol, havia um certo descaso da Coroa para com o atual nordeste ocidental, cuja exist�ncia devia-se, n�o a um projeto de explora��o econ�mica e sim � raz�es geopol�ticas consistentes em evitar invas�es estrangeiras. Na falta de produtos importados, uma produ��o �informal� organiza-se para suprir as necessidades da popula��o e, como n�o gerava proventos para a Metr�pole, desfrutava relativa independ�ncia quanto �s suas pol�ticas. Assim, esta regi�o p�de conhecer um longo per�odo pautado por alguma autonomia e din�mica pr�prias.


Para os objetivos de um historiador, esta situa��o � privilegiada, pois uma sociabilidade que estivesse se configurando espontaneamente com base nessa atividade econ�mica p�de ter aparecido com maior nitidez no Maranh�o que no nordeste oriental, centro da col�nia, pois ali estaria mascarada por informa��es destinadas � Metr�pole. Neste quadro, supomos serem vis�veis nesta Capitania padr�es sociais que poderiam estar mesmo generalizados na col�nia mas em outras regi�es n�o teriam visibilidade. Com a cria��o da Companhia de Com�rcio do Gr�o-Par� e Maranh�o esta situa��o se altera.


Pode-se dizer que o Maranh�o ao longo s�culo XVIII, apresenta duas conjunturas diferentes: anterior e posterior �s mudan�as administrativas promovidas pelo Marqu�s de Pombal, entre elas a instala��o, em 1757, da Companhia de Com�rcio do Gr�o-Par� e Maranh�o. Pretendem alguns historiadores, como Jer�nimo de Viveiros, que foi respons�vel pela entrada da m�o-de-obra escrava africana, e que esta s� adquiriu peso significativo com o financiamento pela Companhia e a elimina��o da concorr�ncia de preadores de �ndios pela lei de 1755, que aboliu a escravid�o ind�gena. Mas n�o � isto que se pode constatar nos documentos transcritos e analisados; pelo contr�rio, neles percebe-se claramente a presen�a de africanos na Capitania, bem antes de 1757. Ali�s, se tais fontes s�o representativas, o contingente de escravos negros era superior ao ind�gena na primeira metade desse s�culo.


Embora n�o possamos chegar idoneamente � afirma��es como a precedente, sem d�vida se v� nos documentos que durante algum per�odo a escravid�o ind�gena coexistiu com a africana pelo menos na mesma dimens�o. Ali�s, o fato n�o era totalmente ignorado; M�rio Meireles, em sua Hist�ria do Maranh�o, n�o atribui a introdu��o dos africanos � implanta��o da Companhia; menciona not�cias de navios negreiros pelo menos a partir de 1671. H� ind�cios de que grande leva de escravos africanos j� havia entrado no Maranh�o j� na segunda metade do s�culo XVII. Sugerimos que a Companhia veio na verdade submeter a monop�lio a importa��o j� existente de escravos africanos, e disciplinar a agricultura para que atendesse aos interesses da metr�pole.


Assim, durante muito tempo, desde a chegada dos escravos africanos at� meados do s�c. XVIII, a rela��o entre senhores e escravos n�o foi pressionada pelo imperativo de produtividade, como no nordeste oriental; desenvolve-se pautada por solidariedade, v�nculos afetivos, contratos e conflitos.


Nos Testamentos aparecem quest�es relacionadas �s alforrias. Em que circunst�ncias as recebiam os escravos? Que distin��o havia para que estes em alguns momentos fossem herdeiros e noutros figurassem como bens legados? Percebeu-se que senhores, na imin�ncia da morte e desejando p�r suas �almas no caminho da salva��o�, tornavam-se benevolentes com escravos, mostrando, ao menos na apar�ncia, que camadas sociais t�o diferentes conviviam de forma harm�nica. Esbo�a-se nos testamentos o perfil de um contrato n�o verbal, com expectativas rec�procas, entre senhores e seus escravos. Pouco se v� de conflitos nestes documentos; os fatos s�o apresentados como se houvesse uma harmonia familiar entre senhores e escravos, fortemente marcada por um afeto rec�proco que envolve desde consang�inidade at� concubinatos, passando por reconhecimentos por servi�os prestados, assist�ncia na velhice, etc. Tal v�nculo afetivo, por mais sincero que seja - e sem d�vida o �, nos testamentos - a rigor mal disfar�a o interesse material de obter do escravo um m�ximo de servi�os ou rendimentos, e do senhor a predile��o, privil�gios e prote��o.


Os Div�rcios e Justifica��es de Sev�cias desfazem a apar�ncia de contrato, e tornam n�tida a estrutura de conflito que ela disfar�ava. Al�m de demarcarem costumes e valores da sociedade colonial - muito mais vis�veis na situa��o de conflito - muitas vezes retratam escravos como piv� de separa��o conjugal dos seus senhores, tomando partido de um dos c�njuges, buscando dissuadi-los de homic�dios (em um caso) ou simplesmente como concubinas, na maioria dos casos, sujeitando-se a tornar-se simultaneamente objeto de zelos por parte de um e de m�goas por parte de outro dos c�njuges. Dois casos registram uma verdadeira subvers�o da hierarquia entre escravas e senhoras, em que as primeiras tornam-se concubinas dos senhores ou a mando destes empunham relhos para chicotear as senhoras. Aparecem �ndios, pardos, negros forros e brancos testemunhando de acordo com o que viram ou ouviram, contra ou a favor do senhor ou senhora em lit�gio.


Ainda nestes documentos percebe-se toda a din�mica da sociedade, em que um � vizinho do outro, pessoas se encontram para contar casos numa �log�a� ou num armaz�m, participam de casamento para poder desfrutar da alegria conduzida por uma �assembl�ia de m�sica�, escutam discuss�es de vizinhos do quintal de suas casas, ou seja, fatos corriqueiros que mexem com a sociedade, h�bitos que t�m dia e lugar marcados, como a �noite da ilumina��o da Ponte da Alf�ndega�, e retratados por aqueles que vivenciaram seus momentos.


J� as s�ries �Auto de Justifica��o� e �Feito C�vel� trazem assuntos dos mais variados: no primeiro, o requerente/justificante da causa pretende justificar desde batismo, legitima��o de paternidade, estado civil at� maus tratos, etc. enfim, pretende-se justificar/provar algo em ju�zo. O segundo tipo de documento trata de querelas judiciais em que se pretende uma senten�a � parte condenada: envolve presta��o de contas por n�o cumprimento de disposi��es testament�rias por parte dos testamenteiros, queixa de agress�o, cartas de cr�dito e assina��o (cobran�a de d�bitos), etc. tudo fazia parte do cotidiano da �poca e assim era denunciado. Transcrevemos e analisamos apenas um documento de cada, representativos por tratar-se de escravos que de moto pr�prio estavam recorrendo � justi�a.


Concebemos, ent�o, tr�s cap�tulos. No primeiro �Gozando de sua inteira e real liberdade� - procuramos abordar a referida estrutura de contrato. A pessoa do escravo � apresentada, nas verbas testament�rias de seu senhor, ora como bem legado, ora como recebedor de bens ou alforria; se por momentos aparece como �coisa� ou �bem semovente� por outro � visto como sujeito, capaz de negociar n�o s� com senhores mas tamb�m com os demais membros da sociedade. Ser� principalmente demarcado aqui o restrito espa�o hist�rico para o contrato, em que tentaremos entender e discutir as limita��es impostas aos forros para que gozem de suas liberdades da maneira que quiserem. Tentaremos tamb�m analisar ind�cios de conte�do familiar ou v�nculo afetivo nas rela��es entre escravos e senhores, como elemento definidor da concess�o de alforrias.


O segundo cap�tulo, sob o t�tulo de �Tratando-a como sua vil escrava� vai referir-se �s situa��es de conflito existentes entre senhores e escravos; se por um lado traz os maus tratos que estes �ltimos sofriam por outro mostram, algumas vezes, uma invers�o dos pap�is sociais que foram outrora definidos pela sociedade escravista. Tentaremos discutir de que forma os maus tratos e a viol�ncia podem ser entendidos no contexto em que ocorrem. � uma esp�cie da ruptura do contrato existente no cap�tulo anterior.


No terceiro cap�tulo, �Tal qualidade de gente�, tenta-se apreender a alforria como Rito de Passagem, recompor o universo de lutas do ex-escravo, de que forma este vai ser (re)incorporado como forro � sociedade escravista que o produziu. Trataremos tamb�m dos estigmas que ele carrega em virtude de sua �ra�a�, seu passado e suas origens.


Seguem, portanto, os resultados.



Notas

(1) Nas tr�s vezes em que foi recorrido como ep�grafe, aparece integralmente a letra desta m�sica da MPB da d�cada de 30. Alteramos ligeiramente a ordem dos versos para melhor contextualizar entre os cap�tulos.





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