Cluny: Jerusal�m celeste encarnada
 

Ricardo da Costa
 


1. O tempo de guerreiros e camponeses

Imagine um mundo com poucos homens. Pouqu�ssimos. E pobres. Paup�rrimos. Vazios imensos entre um povoado e outro. Florestas, p�ntanos e brejos ainda entre um campo cultivado e outro. Nesse espa�o ocidental europeu de cidades esvaziadas e penetradas pelo verde - sinal de abandono e recuo - h� mil anos a natureza ainda resistia: os homens mal dominavam a terra. Muitos trabalhavam o solo com suas pr�prias m�os. As ferramentas eram poucas, a maioria de madeira ainda. As fam�lias, a maioria de camponeses - mas tamb�m de escravos - viviam em cho�as. Trabalhavam unidas e a duras penas para retirar sua subsist�ncia. De cada gr�o colhiam dois, no m�ximo tr�s (DUBY, 1979, p.13).


Mesmo assim, parte da colheita ia para seu protetor, seu senhor, seu amo, aquele que os protegia dos ataques, da viol�ncia, da guerra. Ele deveria conservar a paz. No entanto, ele mesmo era o senhor da guerra. Paradoxo, n�o? Pois tinha um cavalo, uma espada, sabia matar. Sua fam�lia tinha uma hist�ria que remontava a algum rei ancestral e viril. Era uma linhagem. Ele morava em uma fortifica��o, uma fortaleza de madeira - j� existiam alguns castelos de pedra, mas eram raros.


Assim, cada vez mais, a partir do s�culo XI, os camponeses viviam ao redor dessa pali�ada, resid�ncia simples e sem requinte, prontos para entrar nela caso houvesse alguma agress�o. Essa fortifica��o era um p�lo de atra��o, como as guarni��es romanas dos s�culos III-IV. Cada vez mais os pobres buscavam essa prote��o: o habitat concentrou-se. Esse processo foi denominado de encelulamento pelos historiadores (DUBY, 1992, p.60).


O senhor tinha o direito de julgar. Vigiar e punir. Mas n�o sabia trabalhar os campos: dependia, portanto, daqueles miser�veis sujos que viviam em suas terras. Suas? Sim e n�o. A terra abundava, os homens n�o. Havia ent�o uma rela��o de depend�ncia: buscando uma palavra para definir essa teia social, os historiadores chamaram esse entrela�amento nas rela��es entre os homens de reciprocidade. Os rurais estavam ali h� muito tempo: foram fixados na terra desde o s�culo IV, quando ainda existia o Imp�rio Romano do Ocidente. Assim, n�o podiam ser expulsos. A terra ent�o era compartilhada.


Mas n�o pense que o senhor quisesse expuls�-los. Pelo contr�rio, dependia deles para sobreviver. Afinal, como saber os ciclos da natureza, os momentos de plantio e colheita, as formas de limpeza e preparo da terra? Sem eles, certamente o senhor da guerra morreria de fome. Nesse ambiente hostil, os pr�prios trabalhadores rurais consideravam os impostos entregues como um presente. Uma oferenda, um reconhecimento quase espont�neo dos protegidos. Compensava a seguran�a que o senhor oferecia (DUBY, 1999, p.116). Dar e receber. Oferecer e retribuir. Em tempos de pen�ria, o senhor abria seus celeiros, alimentava-os. Sinal de confian�a. E necessidade.






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