Em 1358, o reino da Fran�a foi palco de uma violenta guerra social entre as ordens, a Jacquerie, uma subleva��o camponesa que, apesar de ter durado somente um m�s, foi de uma incr�vel brutalidade, com igual resposta por parte dos nobres � a sociedade de ordens baseava-se num princ�pio de desigualdade, pr�prio da estrutura do cosmo. Implicava uma hierarquia, que, por sua vez, estruturava-se conforme a doutrina do corpo m�stico, adaptado � realeza (o rei, a cabe�a, e as ordens, os membros).
O Estado era pensado como um organismo vivo. N�o era a riqueza que conferia o escal�o social e a dignidade e sim a posse de uma dignidade, que determinava a seu detentor as fontes de rendimentos, o poder sobre outros homens. Ela era obtida de diversas maneiras (por exemplo, por hereditariedade nobili�rquica ou por um determinado servi�o prestado ao rei). Em suma, era uma sociedade de s�mbolos (trajes ou adornos especiais) e de privil�gios (DURAND, [s/d], p.531).
O Grande Terror da Jacquerie (e sua repress�o) exprimiu com intenso vigor o estado de tens�o latente entre as ordens naquela metade do s�culo XIV � as principais fontes para a Jacquerie s�o: Chronique des r�gnes de Jean II et de Charles V (Delachenal, 1910-1920, IV vols.), Chronique of Jean de Venette (Newhall, 1953), Chronique de Jean de Bel (Viard e D�prez, 1904-1905, II vols.) e as Cr�nicas de Jean Froissart (1988).
Este artigo trata da Jacquerie na vis�o do cronista Jean Froissart (c. 1337-1410), um momento raro em que a voz do campon�s se fez presente na documenta��o medieval. De fato, o problema da natureza das fontes medievais, seu car�ter claramente omisso em rela��o a este grupo social, inibe uma an�lise mais profunda sobre os sentimentos dos camponeses em rela��o a seus senhores.
Como o objetivo deste artigo � a Jacquerie, n�o tratarei da evolu��o e imbricamento das condi��es sociais da massa camponesa (os servos � servi, o escravo do s�culo IX, o colono e vil�o dos s�culos XI e XII). Tampouco comentarei as especificidades dos casos franc�s e alem�o (BLOCH, 1987, p.268-287). Trabalharei, nas palavras de Marc Bloch, com a �oposi��o primordial� da sociedade medieval (e adotada mais tarde por Georges Duby): senhores e camponeses.
Os estudos arqueol�gicos n�o fornecem dados significativos dos modos de pensar e sentir daquele estrato social, o maior de todos, a base material que alicer�ou as sociedades medievais durante toda a sua exist�ncia � uma proje��o bastante cautelosa afirma que no s�culo XIII eles seriam cerca de 69% da popula��o europ�ia (GEREMEK, 1986, p.71). Para Jacques Le Goff, eles seriam 90% da popula��o europ�ia (LE GOFF, 1998, p.109).
Sabemos com relativa seguran�a as formas de trabalho na terra (DUBY, 1987-1988), as fomes, os direitos dos senhores (DUBY, 1990, p.11-41), os deveres dos camponeses (FOURQUIN, 1987, p.166-175), as persist�ncias pag�s � ver, por exemplo, S�o Ces�rio de Arles (470-543) em seu �Serm�o para uma par�quia rural� (LAULAND, 1998, p.42-48). Podemos at� mesmo reconstituir a estrutura de uma casa camponesa (NICHOLAS, 1999, p.174-177), sua alimenta��o, mas sobre a natureza dos sentimentos do campon�s em rela��o � sua condi��o servil, temos pouca informa��o. Esta dificuldade deve ser ressaltada: os sil�ncios da documenta��o. � o historiador catando as migalhas documentais � procura de informa��es sobre seu tema.
No entanto, esta omiss�o das fontes n�o deve nos enganar, pois � toda a��o segue-se uma rea��o. Ser explorado provoca resist�ncias (por vezes passivas, silenciosas), tumultos, deser��es, fugas para as florestas � especialmente a partir do s�culo XII (FOURQUIN, 1987, p.168), viol�ncias espor�dicas � por exemplo, �[...]a surda guerrilha dos roubos nas terras do senhor [...] do inc�ndio das suas colheitas.� (LE GOFF, 1984, v.II, p.61).
Viol�ncias tamb�m fortuitas que, sob certas circunst�ncias conjunturais, poderiam assumir a forma de uma rebeli�o aberta e desafiadora ao status quo vigente, como foi o caso da Jacquerie.
Naturalmente, al�m do problema das fontes, as circunst�ncias hist�ricas e culturais das rela��es sociais na sociedade medieval serviram de atenuante para a maior parte dos historiadores que tentaram explicar as revoltas camponesas do s�culo XIV. Portanto, a vis�o que defendo aqui � a que a Jacquerie foi uma guerra entre as ordens (e n�o classes) sociais � de maneira nenhuma possui consenso, embora a cr�nica de Froissart passe exatamente esta impress�o, como veremos adiante. Para a impossibilidade da ado��o do conceito de classe para este per�odo, ver Fourquin (1987, p.222-223); para o uso deste conceito na Idade M�dia, ver Jacques Le Goff (1984, v.II).
Feitas estas considera��es preliminares, antes de tratar do depoimento de Jean Froissart sobre a Jacquerie, farei uma breve digress�o sobre algumas passagens de documentos medievais onde o sentimento da condi��o de servo se fez presente. Este ser� o recorte das fontes: qual a sensa��o de viver nas camadas inferiores.
Em outras palavras, onde e de que forma surge no documento a consci�ncia de pertencer a uma ordem subalterna e explorada � isto apesar de todos os direitos que eles tamb�m possu�am � e a estreiteza do contato social que existia entre senhor e servo:
Na realidade, nunca os contatos foram mais estreitos entre as classes ditas dirigentes � neste caso os nobres � e o povo: contatos que a no��o de la�o pessoal facilita, essencial para a sociedade medieval � que as cerim�nias locais, festas religiosas e outras multiplicam, e nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhec�-lo e partilha a sua exist�ncia muito mais estreitamente que nos nossos dias os pequenos burgueses partilham a dos seus criados� (PERNOUD, [s/d], p.47).
Esta consci�ncia de perten�a a um grupo aparece em lampejos cron�sticos, fontes que s�o sempre escritas por gente que n�o pertencia a esta ordem � mais um problema da natureza documental � mas, que mesmo assim, nos mostra que a sociedade medieval n�o era t�o harmoniosa como os textos a princ�pio nos fazem crer. Jacques Le Goff j� assinalou bem o motivo pelo qual as fontes medievais silenciam os antagonismos sociais: o quase monop�lio liter�rio dos cl�rigos at� o s�culo XIII (LE GOFF, 1984, v.II, p.55).
Pierre Bonnassie distingue duas fases na hist�ria das revoltas camponesas da Idade M�dia:
1) do final do s�culo X at� o s�culo XII e
2) s�culos XIV-XV (BONASSIE, 1985, p.127) � na Alta Idade M�dia, a documenta��o simplesmente omite a exist�ncia do campon�s: �n�o h� campon�s nem mundo rural na literatura dos s�culos V e VI� (LE GOFF, 1980, p.121-133). O autor prop�e tr�s motivos:
a) A ideologia da Alta Idade M�dia n�o era favor�vel ao trabalho, privilegiando o modo de vida militar e a vida contemplativa;
b) O peso econ�mico e social do campesinato tornou-se quase nulo
c) A arte torna-se abstrata e o realismo social e humano regride, o que provoca esta aus�ncia do campon�s tamb�m nas representa��es art�sticas do per�odo.
Por sua vez, Georges Duby destaca o motivo comum das revoltas camponesas medievais: a resist�ncia aos impostos (DUBY, 1988, p.213). Para a primeira fase das revoltas, selecionei duas passagens de fontes onde a consci�ncia de perten�a a um grupo oprimido est� presente: uma revolta na Normandia em 996 brutalmente sufocada pelos bar�es e um di�logo fict�cio entre um amo e seu escravo, na Inglaterra anglo-sax� do s�culo X.