O culto a Odin entre os vikings: uma an�lise iconogr�fica da estela de Hammar I
Johnni Langer
1. A runestone de Hammar I
Atualmente no meio acad�mico especializado em literatura escandinava, alguns dos mais renomados pesquisadores est�o debatendo a relatividade das fontes islandesas e manuscritos redigidos durante o s�culo XII (BYOCK, 2001, p.292-338; DUBOIS, 1999, p.173-207). Escritos por crist�os, geralmente trazem alguns preconceitos, anacronismos e problemas para compreendermos a verdadeira sociedade dos guerreiros vikings (1). Como fazer para encontrar a religiosidade original dos antigos pag�os? Como compreender a cosmologia pr�-crist� dos n�rdicos sem recorrer �s fontes muitas vezes influenciadas por elementos advindos do referencial hebraico e b�blico? Acreditamos que n�o se podem relegar as fontes tradiconais para o esquecimento, mas encontrar meios alternativos de investiga��o. Um deles � a an�lise de monumentos megal�ticos erigidos na Escandin�via durante a Era Viking, com grandes e interessantes possibilidades de estudos.
A principal fonte pela qual investigamos nosso presente artigo � o monumento p�treo de Hammar I, descoberto na par�quia de L�rbro, norte da ilha de Gotland (b�ltico sueco), tamb�m chamada de runestone(2) de L�rbro-stora Hammars. � um bloco de pedra c�lcarea, de aproximadamente 3 m de altura, com formato de cogumelo f�lico (3) e datado do s�culo VIII-IX d.C. (ODEN, 2002). Atualmente est� exposta em um jardim no Museu Hist�rico Nacional de Estocolmo, Su�cia. Pelo fato de retratar imagens relacionadas com religi�o e cotidiano dos povos escandinavos, � totalmente pertinente consider�-la uma fonte prim�ria para a civiliza��o n�rdica medieval. E com uma grande vantagem: todas as fontes escritas a partir do s�culo XII d.C., base principal para os estudos modernos, foram redigidas por crist�os, comprometendo de certa forma a interpreta��o da religiosidade paganista, anterior ao advento do cristianismo. Esculpida por pessoa(s) especializada(s) na f� n�rdica, a runestone de Hammar I � um documento visual sem precedente para entendermos a verdadeira sociedade Viking. At� hoje, essa runestone � um dos monumentos megal�ticos com vest�gios de pinturas mais bem preservados do norte europeu. Desconhecemos qualquer tentativa de an�lise detalhada deste documento p�treo (4).
Por que Hammar I foi esculpida e pintada? A tradi��o de monumentos comemorativos na ilha de Gotland remonta ao s�culo V d.C., tendo continuado at� o final da Era Viking. � uma pr�tica quase que exclusiva desta ilha, n�o se verificando em outras regi�es de influ�ncia n�rdica (5). Fora de Gotland, as runestones s�o abundantes e ricas em inscri��es r�nicas, mas carentes de imagens (GRAHAM-CAMPBEL, 1997, p.46-47). De modo geral, as runestones foram utilizadas na civiliza��o Viking como memoriais, comemora��o da morte de uma grande personalidade, como glorifica��o pessoal, fins propagand�sticos, circunst�ncias da morte de alguma figura hist�rica, registros familiares, possess�es e heran�a geneal�gica (PAGE, 2000, p. 43, 46-47, 50-51) (6).
Seguindo nossa interpreta��o, verificaremos que as estelas r�nicas de Gotland constituem um registro religioso e mitol�gico intencional, confirmado pelos especialistas mais recentes: �Ces pierres fonctionnent comme des �tableaux�, � l�instar des verri�res de nos cath�drales, et devaient parler � leurs contemporains� (BOYER, 1997, p.124). No caso de Hammar I, todo o bloco � um memorial esculpido para homenagear uma personalidade muito importante desta comunidade � talvez um guerreiro famoso, um nobre ou um rei, descrever simbolicamente sua morte em alguma batalha, seu renascimento no mundo sobrenatural n�rdico e registrar eventos cotidianos que estiveram relacionados com rituais e simbolismos para concretizar essa passagem (7). Com o objetivo de n�o confundir com outros mortos retratados nesta runestone, denominados esse em especial de o eleito.
A runestone foi dividida em 6 cenas distintas, separadas por uma ou mais linhas horizontais (foto 1). Cada uma destas cenas ser� analisada separadamente, recebendo uma titula��o espec�fica de nossa autoria, come�ando da mais inferior at� a cena no extremo superior da rocha. Essa sequ�ncia foi escolhida por seguir os eventos registrados em ordem cronol�gica e simb�lica.
Notas
(1) Viking: Old Norse. Termo adotado tradicionalmente a partir do s�culo XVIII para designar todas as culturas de origem germ�nica que habitavam a Escandin�via entre os s�culos VIII e XII de nossa era. No per�odo, estas culturas n�o se auto-identificavam com essa express�o, que na verdade designava somente os escandinavos que se aventuravam pelo mar em busca de com�rcio pac�fico, coloniza��o, ou mais genericamente, pilhagens e saques na Europa continental. Apesar de vasta pol�mica sobre a origem e o significado da terminologia, recentemente o especialista Jesse Byock demonstrou a perspectiva que acabamos de enunciar (BYOCK, 2001, p.11-13). Para uma discuss�o historiogr�fica dessa quest�o ver: BR�NDSTED, s.d., p.31-34.
(2) Runestone � Ingl�s moderno. Monumento megal�tico dos povos escandinavos, geralmente constitu�do por um menir (bloco de rocha erigido verticalmente) podendo conter inscri��es r�nicas do alfabeto Futhark, petr�glifos (gravuras esculpidas), desenhos e pinturas. As imagens geralmente s�o passagens da mitologia n�rdica, s�mbolos religiosos e algumas vezes cenas do cotidiano, eventos militares ou simples efeitos art�sticos. Conf. LANGER, 2003b; PAGE, 2000, p.43-59; GRAHAM-CAMPBELL, 1997, p.102-105. As runestones de Gotland s�o consideradas os exemplos mais sofisticados e importantes tanto da arte Viking como de registros iconogr�ficos do pensamento pag�o n�rdico. Conf. ODEN, 2002. Para uma defini��o conceitual, art�stica e hist�rica das estelas ou monumentos p�treos de Gotland ver BOYER, 1997, p.123-124.
(3) O formato f�lico dos menires, estelas ou runestones de Gotland � uma continuidade direta dos antigos cultos do megalitismo europeu, que enfatizavam a sexualidade/fertilidade da natureza e da terra. Sobre esse assunto ver: ORENS, 1978; BOYER, 1997, p.122-124.
(4) Segundo o especialista sueco Preben S�rensen, neste monumento p�treo �these features have not yet been satisfactorily explained� (S�RENSEN, 1999, p.207). Anteriormente, o arque�logo Holger Arbman, em curta nota, criou a hip�tese de que Hammar I representaria cenas de um poema her�ico perdido: �O her�i Hild � raptado, v�tima de uma vingan�a, deixando a fam�lia ao abandono� (ARBMAN, 1967 p.209). Este pesquisador n�o apresentou nenhuma evid�ncia concreta ou an�lise estruturada para apoiarmos essa sua hip�tese. As principais metodologias utilizadas para a nossa an�lise foram retiradas de - 1: T�cnicas de interpreta��o iconogr�fica espec�ficas para monumentos, objetos arqueol�gicos e imagens da Escandin�via, fornecidas pelo historiador franc�s R�gis Boyer em sua obra H�ros et dieux du Nord: guide iconographique (Pierres de Gotland) (BOYER, 1997); 2: T�cnicas de interpreta��o epigr�fica espec�ficas para monumentos megal�ticos n�rdicos, fornecidos pelo runologista brit�nico Raymond Ian Page em seu livro Runes (Runes and the Vikings) (PAGE, 2000; p.3): T�cnicas de interpreta��o iconogr�fica de monumentos megal�ticos Vikings desenvolvidos em nossas pesquisas anteriores, especialmente para estelas da ilha de Gotland (LANGER, 2003b); 4: T�cnicas de an�lise em arte pr�-hist�rica sul-brasileira, especialmente petr�glifos (gravuras), desenvolvida em nossas pesquisas anteriores (LANGER & SOUZA, 2002); 5: T�cnicas de an�lise em arte pr�-hist�rica e megal�tica da Europa (LEROI-GOURHAN, 1985).
(5) A ilha b�ltica de Gotland � considerada culturalmente diferenciada do resto da Su�cia e Escandin�via, por suas j�ias, tesouros e principalmente, as runestones. Possu�a uma linguagem escandinava pr�pria (gutnisk) e uma saga pr�pria (Guta Saga). Conf. GRAHAM-CAMPBELL, 1997, p.46-47; BOYER, 1997, p.123. Antes da Era Viking, as pedras decoradas ou esculpidas eram desconhecidas fora de Gotland � temos evid�ncias de runestones escandinavas portando apenas inscri��es com o alfabeto r�nico Elder Futhark, no per�odo anterior ao s�culo IX d.C. As runestones de Gotland durante a era Viking tamb�m consistem em documentos epigr�ficos �nicos. Para nossos trabalhos iconogr�ficos, utilizamos as fotografias dispon�veis do Museu Hist�rico de Visby (L�nsmuseet p� Gotland): http://www.gotmus.i.se/1engelska/1.htm Outro recurso importante foi o site Arild Hauge�s Runes http://www.arild-hauge.com/eindex.htm, com excelentes reprodu��es. Foram descobertos ao todo 400 runestones em Gotland, sendo a maioria dos monumentos p�treos levados para conserva��o no Museu Hist�rico de Visby (Gotland), Museu �ao ar livre� de Bunge (Gotland) e Museu de Antiguidades de Estocolmo (Su�cia).
(6) �The rune-stones are often memorials, commemorating the great dead and frequently those who died far from their lands [...] and some were put in sheer self-glory, as acts of propaganda [...] Rune-stones commemorating the dead are more common than those put up by the living to themselves. A good repute after death was important to Norse belief, and the rune-stones were one way of ensuring this. Yet there may have been another reason for putting up such stones. It was important to publisch a man�s death, particulary if he was of the property-owning class and had met his end away from home. Someone had to claim the state; the rune-stone, proclaiming a death to the world, could be the authority. This may be why so many rune-stones in public places, at meeting-fields, by main road sides and so on. They are public documents, like death, place of burial, major events in the life of the dead man, relationship to the living, ownership of an state, etc. In so doing they record the pattern of the Viking Age, at any rate a some � apparently the better-off � Vikings saw it [...] There are other social acts recorded on these memorials: building a s�luh�s, a hostel for wayfarrers in the wild, or establishing a thing-place, an open-air meeting place where the community could hold its court. Such a thing-place would be designated by standing marker stones, and among these could be the rune-stones recording the founder�s family and possessions. It is perhaps this with legal meetings that explains the strong element of pride in place and inheritance that some rune-stones show [...] It was a complicated story and needed recording so that nobody could challenge a future right to hold property. Other stones in the neighbourhood mention this family and confirm the pattern of inheritance [...] Other stones have similar genealogical material, accompanied by statements of inheritance. But the family was not the only institution that bonded Viking society together, and rune-stones sometimes define other relationships� (PAGE, 2000, p.43, 46-47, 50-51, grifo original do autor).
(7) Mesmo sem termos realizado um an�lise in loco deste monumento p�treo, consideramos por meio de an�lise fotogr�ficas que todas as imagens da runestone de Hammar I foram realizadas na mesma �poca e pertencem ao mesmo contexto cultural, devido principalmente aos seguintes fatores: 1 � o estilo art�stico de todo o monumento, tanto nos enfeites laterais quanto nos detalhes de cada cena, pertencem a uma mesma abordagem estil�stica; 2 � a t�cnica de confe��o de cada imagem obedece a um mesmo padr�o de talhamento. Percebemos que em algumas runestones Vikings, como a de Snoldelev (Dinamarca), possuem imagens esculpidas de �pocas diferentes (levando-se em conta a largura, profundidade e efeito dos sulcos das gravuras de Snoldelev, consideramos: uma roda com cruz � a mais antiga, quase impercept�vel, com sulcos e bordas leves, talvez do per�odo pr�-Viking; um triskelion de chifres e inscri��es r�nicas do estilo Futhark Rama Longa bem definidas, pertencentes ao per�odo Viking; uma su�stica com tra�os finos, de origem claramente p�s-medieval). Para imagem desta runestone ver: http://home.no.net/ahrunes/de-rune-snoldelev-picture.jpg Em nossos estudos emp�ricos efetuados nos s�tios arqueol�gicos sul-brasileiros da Caverna do Alem�o (Porto Uni�o, SC), Morro das Tocas (Uni�o da Vit�ria, PR) e Pedra Fincada (Cruz Machado, PR), todos com a presen�a de arte pr�-hist�rica (gravuras na rocha), pudemos verificar os processos de confec��o de v�rios estilos e �pocas diferentes, muitas vezes num mesmo local (LANGER & SOUZA, 2002).
(8) Ted Spiegel � considerado um dos melhores fot�grafos especializados em monumentos arqueol�gicos, hist�ricos e culturais da Era Viking. Entre seus diversos trabalhos, citamos todas as fotografias para a reportagem �The Vikings�, na revista National Geographic (vol. 137, n. 4, 1970) e �No rumo dos Vikings� (Revista Geogr�fica Universal, n. 13, 1975) e as fotografias �Jeufosse�, �Fyrkat�, �Gokstad Ship�, �Excavatin in Dublin� em SAWYER, 1999, p.15, 175, 191, 206, 255; e outras em GRAHAM-CAMPBELL, 2001, p.105, 108, 162-3, 172-3, 198.