Raz�o, realidade, praticidade, ci�ncia. Por uma vis�o de mundo estreitamente ligada ao Renascimento, fortemente presente nos s�culos XV e XVI, o homem dos seiscentos v� o desenrolar da contra-reforma e do absolutismo oferecer a reconquista por parte da Igreja de esferas antes dominadas pelo ide�rio renascentista. � denota��o renascentista op�e-se a conota��o religiosa com sua pluralidade de significados impelindo o pensamento ao abstrato e ao invis�vel.
Situado em tal ambiente de conflito entre a exalta��o do real palp�vel renascentista e a contempla��o da perpetuidade espiritual religiosa, o barroco mostra-se como uma constante refer�ncia ao conflito e � conten��o de impulsos carnais e espirituais. De um lado, uma s�rie de coloca��es e pensamentos aludidos � vida pr�tica, de outro, mecanismos religiosos que, por meio de certa avilta��o � mat�ria e ao palp�vel, tornam o cotidiano voltado para si mesmo algo pecaminoso desencadeador de dr�sticas conseq��ncias espirituais impelindo os fi�is a desejarem p�r suas almas �no verdadeiro caminho da salva��o�(1) indicado pela igreja.
A utiliza��o, nas artes pl�sticas, de linhas indecisas em uma diagonalidade perturbadora e da forte presen�a de claro-escuros como contraste entre opostos evidencia tal conflito de modo impl�cito, mas ainda assim inquietante. Expandindo o pensamento aristot�lico(ARIST�TELES, 1993) a uma vis�o art�stica mais abrangente, vemos tais caracter�sticas est�ticas como forma de elimina��o de sentimentos e agonias reprimidas por meio de uma catarse fundada em uma inquietude fortemente presente no �mago da cultura barroca. Tal como podemos perceber na estrutura liter�ria a recorr�ncia a jogos de palavras como os acr�sticos e a estruturas paradoxais baseadas no uso de ant�teses que exprimem uma atmosfera conflituosa na manifesta��o liter�ria, a arte apresenta um modo de, sen�o evidenciar o conflito entre f� e raz�o, elimin�-lo de forma cat�rtica. O paradoxo entre o racional e sua funcionalidade e o temor religioso ao racionalismo por meio do pecado, coloca o pensamento e a pr�tica religiosa dos seiscentos sobre uma linha divis�ria entre a condena��o e a vida eterna. Este espa�o ag�nico, como colocado por Affonso �vila(�VILA, 1970), produz um constante jogo poliss�mico na conduta religiosa imprimindo nos rituais um car�ter especial � an�lise hist�rica. � dissemina��o do temor ao purgat�rio por meio de condutas que t�m como fun��o primeira colocar a �alma no caminho da salva��o desejando como verdadeiro christ�o morrer�(2), uniu-se a express�o da imensa pluralidade sem�ntica do pensamento barroco por meio do uso simb�lico da forma, da cor, da palavra, da id�ia, do ritmo e da melodia.
Entre tais simbolismos constr�i-se, ao longo do s�culo XVII, uma rede de met�foras cotidianas vivenciadas durante a era barroca. Susanna Peters(PETERS, 1970), ao discorrer sobre o in�cio da literatura seiscentista, caracteriza a vis�o de mundo como um teatro e da vida como um roteiro a ser encenado como algo comum e inerente ao pensar art�stico. Estaria, portanto, tal vis�o intimamente ligada aos ritos fortemente presentes na cultura barroca colonial brasileira por meio do recurso a uma forte simbologia que traria consigo uma vis�o teatral e mecan�stica do mundo regulamentada pelos costumes culturais e religiosos. A ornamenta��o presente n�o apenas nas artes como tamb�m em objetos de uso cotidiano explicita uma tend�ncia ao tratamento da vida como um palco a ser adornado de significados e de ritos teatrais espec�ficos.
Se o barroco contribui para tal direcionamento da catarse, a morte se mostra como algo peculiar: ao ter a dicotomia entre f� e raz�o transformada em conflito por meio do temor � puni��o post mortem de pecados, � nela que os ritos se acentuam e se mostram como elementos decisivos no decorrer do espet�culo da vida por constituir seu desfecho.
Notas
(1)Testamento de Marcellino de Camargo. In: Invent�rios e testamento�, Arquivo p�blico de S. Paulo, v. 22, p. 483.
(2)Testamento de Miguel Leite de Carvalho. In: Invent�rios e testamentos, Arquivo p�blico de S. Paulo, v.22, p. 63.