A "sociedade" colonial: unidade e diversidade na Am�rica Portuguesa *
Rodrigo Elias Caetano Gomes
1. O "modelo social" do Antigo Regime
Certa feita, um professor, daqueles que hoje em dia raramente surgem, disse durante uma aula de Hist�ria: �a mudan�a no vocabul�rio indica mudan�a na sociedade�. � primeira vista, pode parecer uma afirma��o �bvia, sobretudo quando proferida em meio a historiadores. Por�m ela encerra elementos que, se n�o observados meticulosamente pelo profissional da Hist�ria, podem se voltar contra o seu of�cio. E o principal destes elementos � a historicidade, ou seja, a especificidade do objeto em suas delimita��es espaciais e temporais; a dificuldade em reduzir determinadas �realidades� hist�ricas a esquemas ou conceitos que s�o a elas externos.
Dentro desta orienta��o procuraremos tratar aqui, de forma sum�ria, de alguns elementos constitutivos daquilo que costumamos chamar � talvez em desacordo com o que prop�s o professor acima � sociedade colonial da Am�rica portuguesa. Assim, devemos primeiramente tra�ar algumas linhas gerais acerca dos padr�es norteadores desta sociedade � ou desta parte do corpo m�stico, como veremos adiante � com o objetivo de situarmos em termos s�cio-culturais o tema em quest�o, procurando n�o utilizar categorias estranhas a este.
Devemos falar, portanto, em Antigo Regime � express�o que, ali�s, n�o era utilizada durante o per�odo em que floresciam os Estados modernos da Cristandade ocidental, entre os s�culos XV e XVIII �, que � o tecido onde se d�o as rela��es definidoras dos grupos sociais sobre os quais ora nos debru�amos. Em um regime onde a norma n�o � o direito, mas sim o privil�gio, onde n�o importa a classe, mas a qualidade, onde a igualdade ainda n�o tinha tomado o lugar da hierarquia, a organiza��o se dava, ao menos em termos te�ricos, atrav�s da divis�o dos grupos em tr�s estados, divis�o esta que tem origem em uma simplifica��o te�rica pela qual passa a Cristandade no s�culo XI, onde a sociedade medieval � dividida entre os que oram, os que guerream e os que trabalham.
Assim sendo, a triparti��o que a sociedade ocidental da Modernidade herda da teologia pol�tica medieval consiste das seguintes ordens, a saber, o clero, a nobreza e o povo, unificados pela cabe�a que � o rei, prova irrefut�vel da hierarquiza��o antropom�rfica desta sociedade. Desta forma, o rei surge enquanto promovedor da justi�a e propagador da religi�o, fins ante aos quais n�o se lhe pode antepor nenhum constrangimento, nisto consistindo o seu poder absoluto � respeitando o monarca, os privil�gios e a lei, agindo sempre como manda o costume. Da� a natureza contratual do poder durante a �poca Moderna, cujo grande exemplo est� no juramento do rei frente ao seu povo, sendo grande ind�cio desta matriz jurisdicionalista o que proferiu D. Jo�o II, ainda em 1481:
Juramos e prometemos de com a gra�a de Deus vos reger e governar bem e direitamente e vos ministrar inteiramente justi�a, quanto a humana fraqueza permita e de vos guardar vossos privil�gios, gra�as e merc�s, liberdades e franquezas que vos foram dadas e outorgadas por El-Rei meu senhor e padre cuja alma Deus haja e per outros reis passados seus predecessores (Apud MAGALH�ES, 1997, p. 63).
Sem d�vida, sintom�tico.
Complementando a o princ�pio contido na frase do nosso professor � qual recorremos no in�cio do texto, cabe mencionar aqui que nem sempre palavras novas surgem como indicadoras de uma mudan�a na sociedade. O que pode ocorrer tamb�m, e n�o � raro, � a ressemantiza��o de palavras j� conhecidas. Chamamos aten��o a isto agora para mencionar o corpo m�stico, met�fora utilizada na Alta Idade M�dia como representa��o do sacramento da eucaristia, onde o corpo de Cristo era representado na comunh�o, passando no in�cio do s�culo XIII a efetivamente ser o corpo de Cristo, com o dogma da transubstancia��o. (1)
A partir deste momento, principalmente com os escritos de Jo�o de Salisbury, ocorre uma temporaliza��o da met�fora, uma vez que esta passa a ser associada � divis�o trifuncional da Cristandade, que mencionamos anteriormente, dando base te�rica a uma concep��o corporativa da sociedade. Assim, no que diz respeito a uma vis�o secularizada, o rei � j� no alvorecer da �poca Moderna � ser� identificado com a cabe�a deste corpo, sendo os demais setores da sociedade identificados com os membros e, inclusive, com os org�os internos do corpo m�stico. A met�fora, como n�o poderia deixar de ser, � amb�gua. De um lado, evoca a interdepend�ncia entre as partes do corpo social, firmando a no��o corporativa da sociedade e lan�ando as bases para uma posterior formula��o pol�tica de car�ter contratualista.
Por�m, de outro lado, refor�a a concep��o hierarquizante da monarquia, visto que o rei guiava o restante do corpo por meio da aliena��o do poder in habitu deste em favor daquele. No caso que aqui nos interessa, a matriz lusitana, parece que esta �ltima concep��o prevaleceu ao menos at� 1640, com a Restaura��o Portuguesa, onde a matriz contratualista surge com grande for�a no cen�rio pol�tico lusitano.
� importante tamb�m notarmos que a sociedade que se desenvolve sob este regime � essencialmente uma sociedade de corte, onde os padr�es culturais influenciam e s�o influenciados por um grupo que est� pr�ximo da cabe�a do reino. Em Portugal, temos ainda uma peculiaridade, da qual nos d� uma pista Diogo Ramada Curto: a catolicidade. Para Curto, mais do que uma sociedade de corte, a sociedade portuguesa � quanto ao modelo de organiza��o � � uma sociedade de capelas, onde, na pr�pria corte, a capela real assume lugar de relevado destaque (CURTO, 1997, p. 113-114). Corte ou capela, o que importa � que os valores baseados na honra � virtude eminentemente cavalheiresca oriunda do medievo ocidental � ir�o nortear grande parte dos sentimentos e a��es nos tr�s ou quatro s�culos da Modernidade.
Dentro de um sistema como este, como poderia funcionar um mecanismo de poder autolegitimador? De que forma os conflitos latentes s�o encaminhados? As respostas para estas perguntas, se � que existem, devem ser longas. Mas podemos mencionar alguns mecanismos que corroboram com a imagem que estamos a construir, al�m de estarem de acordo com o princ�pio geral formulado pelo nosso professor no in�cio do texto, o princ�pio da historicidade dos termos. D�divas, merc�s, perd�es e negocia��es. � Diogo R. Curto que nos aponta, novamente, este caminho (CURTO, 1997, p. 120-121). Estas �trocas sociais consideradas pol�ticas� s�o arroladas por ele, e s�o percebidas de forma generalizada na sociedade lusitana no in�cio do per�odo moderno, de forma que tanto o rei como um cavaleiro gastam imensas quantias para presentearem um ao outro, ou tanto o rei como um alto funcion�rio da administra��o concedem perd�es � um a criminosos, outro a devedores �, assim como as merc�s funcionam quase como moeda em troca de favores a certa altura do s�culo XVI.
Assim sendo devemos considerar que, ao estudarmos a Am�rica portuguesa em qualquer das suas facetas, precisamos estar atentos para o fato de que estamos nos relacionando � � claro, considerando-se os limites da documenta��o � com uma sociedade que tem os seus padr�es ditados ou diretamente influenciados pelas normas sociais, pol�ticas, econ�micas e culturais predominantes na Europa neste per�odo. Com isto n�o estamos descartando a influ�ncia e at� mesmo a preponder�ncia de outras matrizes culturais, como as origin�rias de grupos amer�ndios ou africanos, mas estamos dizendo que o estudo das formas sociais encontradas na Am�rica portuguesa devem levar em considera��o a apropria��o dos padr�es do Antigo Regime europeu pelos demais padr�es e vice-versa, assim como deve considerar o contexto cultural da produ��o dos documentos que a n�s chegaram � resultado da burocratiza��o empreendida pelo Estado moderno, fei��o que f�ra do Antigo Regime.
Seguindo ent�o o princ�pio geral contido na frase do nosso espirituoso professor, mencionada h� poucas p�ginas atr�s, ao passarmos para o territ�rio colonial devemos portanto estar atentos �s categorias t�picas do Antigo Regime, n�o lan�ando a priori nossas categoriza��es sobre as forma��es sociais da Am�rica portuguesa, onde n�o encontramos, por exemplo, como elemento definidor a oposi��o entre os que det�m os meios de produ��o e os que det�m apenas sua for�a de trabalho, mas sim entre pe�es e gente de mor qualidade. Dentro desta perspectiva, notamos que as hierarquias s�o marcadas, nestes grupos sociais, pela exterioriza��o ou ritualiza��o, onde formas de tratamento, comportamento, vestu�rio et c�tera assumem uma vers�o vis�vel dos privil�gios, foros e distin��es sociais � que tamb�m se materializavam em isen��es fiscais, favorecimentos jur�dicos e prefer�ncia quando da escolha de membros para cargos na administra��o real, onde a proximidade com o rei � em uma estrutura de poder que � vertical � tamb�m sinaliza distin��o. Desta forma, a principal distin��o jur�dica � expressa nas Ordena��es Manuelinas e confirmada no C�digo Filipino � era em rela��o � presen�a ou n�o da fidalguia, da condi��o de nobreza, que envolvia basicamente tr�s elementos: o pertencimento a um grupo � dada a no��o corporativa desta sociedade �, a rela��o com os chamados �of�cios mec�nicos� � incluindo-se a� desde o carpinteiro at� o comerciante ou dono de loja � e a presen�a ou n�o de linhagem �infecta� � moura, hebr�ia e, posteriormente, negra (cabe ressaltar que estes dois �ltimos itens, a linhagem �mec�nica� ou das �ra�as infectas� foram incorporadas sob a designa��o �defeito de sangue�). Segundo Stuart Schwartz (1988, p.210),
fortuna, dom�nio senhorial, autoridade sobre dependentes, manuten��o e promo��o da linhagem e dedica��o �s armas ou � pol�tica constitu�am os elementos do ideal de nobreza que impregnava a sociedade e se apresentava como a meta a ser atingida.
E este ideal gerava inclusive subdivis�es jur�dicas, principalmente entre aqueles grupos anteriormente designados como �pe�es� da qual se constitu�a em grande parte as popula��es urbanas, como as divis�es entre os aprendizes e mestres, empregados e botic�rios, e todos estes grupos possuindo, na maioria das vezes, escravos, o que mais uma vez aponta para a incorpora��o daqueles ideais. N�o podemos tamb�m nos esquecer de uma das divis�es fundamentais da qual padecera por quase tr�s s�culos a sociedade luso-americana: crist�os-velhos e crist�os-novos. Esta divis�o � particularmente dram�tica, uma vez que estes �ltimos, os decendentes dos judeus batizados � for�a ou de p� em 1497, s�o legalmente discriminados, impedidos de assumir cargos p�blicos, alcan�ar status de nobreza e, o que parece ainda mais dram�tico, sofrem grande persegui��o popular durante, principalmente, os Quinhentos e os Seiscentos. N�o menos importante � a distin��o entre filhos leg�timos e ileg�timos, que poderia gerar problemas sobretudo quando os ileg�timos tentavam galgar cargos militares ou da governan�a, sem falar na preteri��o destes quando das disputas por heran�as.
Por�m, n�o devemos confundir a idealiza��o com a realidade, uma vez que a mobilidade social ocorria tanto em espa�o metropolitano quanto em espa�o colonial. A fidalguia � grau simples de nobreza, �filho de algo� � poderia ser alcan�ada atrav�s de merc� do rei, uma vez que seu postulante tivesse prestado servi�o de relevante import�ncia � monarquia, al�m de ser conseguida tamb�m por outros setores, sendo prova disto a grande promo��o social conseguida desde o s�culo XVI pelos letrados, ou seja, aqueles que passaram pelos col�gios e universidades e que vieram a desempenhar fun��es administrativas no reino. Estes se tornaram uma categoria espec�fica na monarquia, que se diferenciava das categorias inferiores, como a dos oficiais mec�nicos, e seus membros poderiam ser al�ados, n�o era algo raro, � fidalguia. Neste sentido, dada a multiplicidade social e �tnica no espa�o colonial, a possibilidade da mobilidade social ascendente conferia ao mais simples colono, segundo os cronistas daquele per�odo, �ares de grande fidalgo�. Aparece a� com grande for�a o ideal nobili�rquico na sociedade colonial, fundada sobretudo naquela diferen�a que identificou S�rgio Buarque de Holanda entre o aventureiro e o trabalhador.
Notas
* Trabalho realizado com o apoio da FAPERJ - Funda��o Carlos Chagas Filho de Amparo � Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Publicado anteriormente na edi��o n�16 (abril/maio de 2003) da revista virtual Klepsidra.
(1) Todas as informa��es acerca do corpo m�stico est�o baseadas em recente trabalho de William de Souza Martins. As imagens do corpo m�stico nos escritos dos religiosos mendicantes. In: Membros do Corpo M�stico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700 � 1822). Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Hist�ria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Sociais da Universidade de S�o Paulo. S�o Paulo, mimeo, 2001, 2v.