�Para quem n�o tenha a alma pequena e vil,
a experi�ncia da Hist�ria � de uma grandeza que nos aniquila.� Henri-Iren�e Marrou
No primeiro semestre de 2003 lecionei para uma turma de Hist�ria da UFES, turma de primeiro semestre, rec�m-egressa do vestibular. Rotina de trabalho, a n�o ser pelo fato de os alunos terem ficado praticamente todo o semestre se perguntando para que servia a Hist�ria. Uma grande crise de identidade. Inicialmente eu achei aquilo tudo uma tremenda perda de tempo, mas da surpresa passei ao espanto, pois sempre imaginei que esse tipo de pergunta era feito ou por gente que n�o gosta de Hist�ria � e esse n�o deveria ser o caso deles, pois haviam prestado vestibular para Hist�ria � ou por gente que n�o conhece a Hist�ria, como o rapazinho do livro de Marc Bloch, que pergunta ao pai historiador para que serve a Hist�ria (BLOCH, 1997: 75).
Da sala de aula o tema passou para os corredores dos �mexericos da Candinha�. E como todo bom papo de corredor, a coisa toda cresceu, provavelmente com as distor��es de �quem conta um conto, aumenta um ponto�. Ent�o o Centro Acad�mico dos estudantes de Hist�ria me convidou para dar a palestra de abertura do semestre seguinte, para a nova turma de calouros (da turma da noite). Pois muitos n�o haviam gostado de minha resposta (que pragmaticamente a Hist�ria n�o servia para nada, era uma forma de reflex�o que deveria causar prazer e frui��o ao historiador). Alguns dos alunos (de outros per�odos, especialmente) queriam me p�r � prova, contestar, criticar gratuitamente, nessa postura t�pica da juventude dos 20 (por acaso acham que eu n�o lembro da minha?).
Bem, na noite de 27 de novembro de 2003, dividi a mesa com a Professora Jussara Luzia Leite (do Depto. de Did�tica e Pr�tica de Ensino) e com o Professor Luiz Antonio Gomes Pinto (contratado do Depto. de Hist�ria). O t�tulo da mesa era exatamente esse: �Para que serve a Hist�ria?� Seriam tr�s depoimentos, logicamente distintos � o convite fora feito aos professores exatamente pelos alunos saberem que havia uma razo�vel diferen�a te�rica/metodol�gica entre os tr�s, ou pelo menos entre um e outros dois.
Meu espanto aumentou ainda mais. Eu teria agora que responder a essa pergunta dentro do pr�prio curso de Hist�ria! Bem, o motivo dessa reda��o � esse mesmo: deixar registrado minha perplexidade com essa atual �crise� alheia (n�o minha) e dar meu depoimento do que disse, aprofundando um pouco os temas que tratei naquela noite, o que � a Hist�ria e para que ela serve.
Minha mulher n�o gosta de Hist�ria. Nunca leu um livro de um historiador � muito menos os meus (�textos de historiadores s�o chatos!�). De vez em quando me perguntava para que servia a Hist�ria, e principalmente por que eu gastava tanto tempo (e dinheiro) comprando e lendo tantos livros, muitos sobre o mesmo assunto, ocupando tanto espa�o em casa (hoje ela n�o me pergunta mais, afinal pagamos nossas contas gra�as a Hist�ria...). Divertia-me muito ver uma opini�o t�o diferente da minha. Sempre gostei de conversar com pessoas que tinham id�ias diferentes. Isso me fazia crescer � e caso n�o mudasse, fortalecia minhas pr�prias id�ias. Ao mesmo tempo ela, sem o perceber, fazia-me refletir regularmente sobre esse meu of�cio, esse meu imenso e inesgot�vel prazer que se tornou profiss�o e meio de vida. Eu sempre respondia a ela que eu gostava de Hist�ria, e que a gente deve sempre fazer o que gosta. Sempre. E ela n�o se convencia. Claro, n�o gosta.
Quando eu era professor do que se chama hoje Ensino Fundamental, muitas vezes tinha que responder a essa pergunta para as crian�as. Costumava brincar com os alunos da quinta s�rie � a primeira s�rie que tinha um professor espec�fico para a disciplina Hist�ria � devolvendo outra pergunta: �Por que voc�s gostam tanto dos dinossauros?� Como eu, eles n�o sabiam a resposta, apenas diziam que gostavam dos dinossauros, que compravam aqueles bonecos e brincavam com eles. Claro, quando a gente gosta de algo, n�o pergunta porqu� gosta, apenas gosta (a menos que a pessoa seja uma grande chata e fique regularmente questionando o que ama). E mais: eles tamb�m gostavam � e muito � dos temas da Hist�ria Medieval, das hist�rias do Rei Artur (com seus cavaleiros e suas guerras, castelos e monstros horripilantes), de Robin Hood, das bruxas, das fadas e feiticeiras, das guerras e das cruzadas, dos torneios dos cavaleiros (entre elas, as crian�as, como os p�s-adolescentes em crise, s�o muito cru�is), das pir�mides e dos camelos, enfim, de tudo o que era diferente de seus ambientes.
Atualmente leio � noite as hist�rias de Asterix & Obelix para meus filhos. Tenho a cole��o completa dessa hist�ria em quadrinhos francesa desde os meus quinze anos. E eles adoram, seus olhos ficam vivos e brilhantes como p�rolas. Eu fa�o isso n�o s� para exercitar a pr�tica de contar hist�rias e deleitar uma �audi�ncia� � acredito que o historiador, antes de tudo, tem que saber muito bem contar uma hist�ria � mas tamb�m para que eles um dia tenham o gosto pela leitura, para que eles aprendam palavras novas, para que eles saibam a exist�ncia de lugares diferentes, de pessoas diferentes, para que eles percebam que existe o tempo, que ele � muito, muito extenso e faz com que muitas coisas mudem e outras permane�am ou sejam parecidas com algumas outras que ficaram para tr�s. Por fim, leio para eles para que, no futuro, eles n�o me perguntem para que serve a Hist�ria! J� chega a minha mulher e meia d�zia de ex-alunos em crise existencial. Meus filhos saber�o que, no m�nimo, ela serve para divertir. E muito. Surpreso leitor? N�o deveria, pois desde Marc Bloch sabemos que a hist�ria, no m�nimo, diverte (BLOCH, 1997: 77). E essa � uma important�ssima fun��o social: dar prazer, divertir, agradar, satisfazer, fruir, causar deleite. Claro, � �bvio: quando estamos felizes e satisfeitos com o que fazemos, somos mais generosos, mais compreensivos, mais afetuosos, enfim, mais humanos.
Quando ingressei na Universidade, em 1981, na Universidade Santa �rsula, me disseram que est�vamos estudando Hist�ria para depois conscientizar as massas e fazer a revolu��o socialista. Eu pensava que havia ingressado no curso � expressamente contra a vontade de minha fam�lia � porque gostava de Hist�ria e de saber o que aconteceu no passado da humanidade. Mas naquele ambiente acad�mico n�o havia espa�o para esse tipo de sentimento. Eu tamb�m n�o podia ser feliz: estudar a Hist�ria para conhecer o passado n�o era suficiente, eu devia estar insatisfeito com a realidade atual para querer transform�-la. Em resumo: eu devia ser um chato. Al�m de muitas outras coisas que depois descobri serem mentiras (como, por exemplo, que a Revolu��o cultural chinesa foi uma coisa maravilhosa e trouxe um grande avan�o tecnol�gico para a China), disseram tamb�m que eu deveria ler um tipo muito espec�fico de livros, pois outros eram alienantes.
Por exemplo, eu fui �disciplinado� a n�o ler de maneira nenhuma a obra Casa Grande & Senzala, j� que Gilberto Freire havia defendido a ditadura e dizia no livro que n�o havia racismo no Brasil. Eu deveria ler Florestan Fernandes (o m�ximo que consegui foi ler seu livro A fun��o social da guerra na sociedade tupinamb�)! Claro que como bom rebelde �p�s-aborrescente�, a primeira coisa que fiz foi devorar secretamente Casa Grande & Senzala. E eu simplesmente adorei o livro. Apesar de seu autor ter apoiado a ditadura, eu percebi que a propaganda contra o livro era mentirosa. Foi assim que fiquei vacinado contra essas centenas de �leitores de orelha� e de resenhas de livros e que nunca leram um livro at� o fim. Isso em 1981 (hoje os �leitores de orelha� cresceram assustadoramente).
Voltando � pergunta da crise, ela deve ser respondida no �mbito da legitimidade. E ela � uma pergunta capciosa, pois antes da resposta ela pressup�e que existe uma multiplicidade de respostas, o que quase elimina a possibilidade da �hist�ria ci�ncia�, ou da �hist�ria, ci�ncia em constru��o� do Professor Ciro Cardoso. Um consolo: como eu, h� tr�s anos atr�s o (grande) historiador (e medievalista) portugu�s Jos� Mattoso foi convidado para proferir uma palestra, e tamb�m no curso de Hist�ria da Universidade de Lisboa (http://www.terravista.pt/AguaAlto/1018/Matoso.html). Coincid�ncia. E embora ele tenha oferecido uma variada gama de explica��es, a maioria bastante plaus�vel e satisfat�ria, ainda hoje os estudantes portugueses de Hist�ria continuam se perguntando para que serve o curso (ver o site Hist�ria para todos, http://www.terravista.pt/AguaAlto/1018/index.html). Ou seja, a crise continua. Pelo menos para os lusitanos e brasileiros, para os chatos que n�o gostam de Hist�ria ou para os que n�o a conhecem.
Ent�o, tentarei responder a essa pergunta, discorrendo um pouco sobre o que disse naquela noite da palestra. Para isso, tratarei antes de alguns aspectos que dizem respeito �quele questionamento.