Atualizado em 18 de mar�o de 2004
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Livros

Livro: A Hist�ria vigiada
Autor(es): Marc Ferro
Editora: Martins Fontes
Ano: 1989
Nº de páginas: 157



Em "A Hist�ria vigiada", Marc Ferro preocupa-se em analisar, em primeiro lugar, os modos de produ��o (sic) das obras hist�ricas e os v�nculos que existem entre os focos de produ��o e as caracter�sticas dos tipos de hist�ria que eles secretam. Parte da premissa de que o homem moderno est� exposto a conhecimentos de cunho hist�rico por diferentes meios. Al�m do ensino e da literatura, h� a televis�o e o cinema, que ele analisa na parte intitulada "Existe uma vis�o cinematogr�fica da hist�ria?". Esta facilidade de acesso a informa��es faz pensar sobre as utiliza��es pol�ticas da hist�ria e sobre as rea��es, na procura por uma hist�ria aut�noma, que o autor defende na segunda parte do texto.


A primeira parte do livro, "Os focos da consci�ncia hist�rica", trata justamente da forma como uma hist�ria institucional � produzida a partir de focos distintos, que elaboram discursos diferentes. � importante para Ferro demonstrar o quanto a hist�ria � forjada pelos centros de produ��o de conhecimento, que ele denomina como focos. Sua an�lise da fun��o do historiador e de seu m�tier, servindo a interesses de grupos e de institui��es, de que a maior � o Estado-na��o, � abrangente. Por exemplo, a manipula��o das informa��es sobre a Als�cia-Lorena e sobre a incorpora��o de pequenos territ�rios pela Fran�a, sempre se omitindo as hist�rias regionais � emblem�tica. Ferro compara-a � pr�tica sovi�tica. Idas e vindas territoriais e demogr�ficas, como as dos poloneses e dos arm�nios e a cuidadosa omiss�o de fatos relevantes pela historiografia indiana s�o analisadas. Neste �ltimo caso, um pa�s de um bilh�o de habitantes vale-se de sua produ��o historiogr�fica para assegurar que as institui��es democr�ticas de feitio ocidental ali vigentes disting�em-no de seus vizinhos, sem mencionar que sua ado��o era a �nica maneira de dar - e manter - o governo � maioria hindu�sta, h� s�culos submetida a uma minoria mu�ulmana.


Ali�s, tamb�m os povos do Isl�, praticantes da religi�o que mais cresce no mundo, s�o minuciosamente comentados. Afinal, persas, eg�pcios e turcos n�o s�o �rabes e sua produ��o hist�rica procura escamotear suas diferen�as, referindo-se ao mesmo pano de fundo religioso. Sequer referem-se � forma como se relacionaram com os negros africanos, levados � escravid�o, castra��o e morte.


Igualmente � interessante ver que fatos hist�ricos relevantes para a hist�ria institucional de um lado determinado s�o por vezes, irrelevantes, para outro, como � o caso da batalha de Poitiers, invocada como essencial � forma��o nacional francesa, mas minimizada em algumas regi�es daquele mesmo pa�s e simplesmente ignorada pelos mu�ulmanos, o lado derrotado, mas que se preocupa com uma infinidade de outras batalhas. Maior ignor�ncia, totalmente ideologizada, � aquela associada � presun��o de aus�ncia de hist�ria nos povos dominados por uma cultura que, usualmente, � t�o-somente tecnologicamente mais avan�ada.


Esta hist�ria institucional enche-se de sil�ncios, que tamb�m s�o hist�ria e levam a rea��es, que comp�em contra-hist�rias, �s vezes formadoras de novas hist�rias institucionais, quando passam a um status diferente. Reagindo � discrimina��o, popula��es invis�veis para a hist�ria oficial elaboram suas vers�es de acontecimentos conhecidos apenas parcialmente. A contra-hist�ria aparece. Pode ser pelo sil�ncio, caso dos judeus, por muito tempo sem um foco, seja o Estado, um territ�rio, sejam institui��es. Pode ser a rea��o contra a vulgata, literatura e express�es comuns, que atuaram como corrente de transmiss�o dos valores institucionalizados, dos povos colonizadores, pelos colonizados. Surge da� uma � batalha pela narrativa�, como a feita pelos negros dos EUA, quando puderam reagir � posi��o sempre extremamente secund�ria em que foram encaixados nas interpreta��es da historiografia norte-americana.


Na extinta URSS, cuja estrutura pol�tica peculiar confundia o Partido Comunista com o Estado e engessou a an�lise marxista (embora houvesse pesquisas sobre um novo marxismo, n�o citadas por Ferro, n�o s� no Leste Europeu, mas tamb�m na Let�nia, a que ele faz alguma refer�ncia) n�o foi diferente, sendo ali�s, a fonte dos casos de deturpa��o hist�rica mais citados, em raz�o da Guerra Fria. Omiss�es, discrimina��o de opini�es divergentes, desaparecimento de personagens, ali foram acontecimentos corriqueiros. Os pr�prios acontecimentos poderiam ser n�o-acontecimentos. A Revolu��o de 1905, vista corretamente por L�nin, como observou Ferro, como pre�mbulo do que viria em 1917, foi entendida diferentemente, conforme a origem da an�lise, oscilando entre v�rios graus de relev�ncia e atribu�da a diversas influ�ncias.


A hist�ria institucional � definida, assim, como um �discurso ativo sobre a hist�ria�. Evolui, usando novas fontes, mas freq�entemente atendendo a projetos que lhe s�o externos.


O cont�gio ideol�gico foi a caracter�stica marcante do processo de constru��o da hist�ria e apenas nossa �poca p�de de fato detect�-lo e procurar escapar dele (embora apenas os historiadores marxistas afirmem sua filia��o ideol�gica). � com a constitui��o dos trabalhos publicados na revista Annales que se busca a imunidade ao cont�gio e o abandono das concep��es teleol�gicas vigentes. Curiosamente, esta escola, por sua preocupa��o com aspectos econ�micos, com a dura��o (curta dura��o, ou tempo do indiv�duo, m�dia dura��o, ou tempo das conjunturas, longa dura��o, tempo das estruturas e longu�ssima dura��o, ou tempo da geohist�ria) atraiu o pensamento marxista. Contudo, o distanciamento entre os conceitos de dura��o e os de base e superestrutura levaria mais tarde a um rompimento, comentado mais abaixo.


Nos "Agradecimentos", o autor revela que a id�ia para a obra lhe veio ao preparar uma hist�ria da medicina, o que explica as diversas analogias, presentes ao longo do texto, entre hist�ria, pol�tica e medicina. Com efeito, a compara��o de uma medicina geral, com as muitas especializa��es do campo m�dico e a hist�ria experimental, que se fragmentou em infinitos �estudos de caso� � interessante.


No que se refere � narrativa hist�rica, Ferro mostra que se situa no centro do processo da hist�ria geral, mas fornece suas fontes, sem legitimar suas escolhas. Macroacontecimentos e microacontecimentos, representados pela Revolu��o de 1905 na R�ssia e por um processo de roubo de alcachofras, em Genebra, em 1743 (apresentado entre os anexos, ao fim do livro) atestam que grandes acontecimentos podem receber interpreta��es d�spares e que pequenos acontecimentos podem dizer muito de uma �poca, de uma cultura.


Pode-se ver, neste �ltimo caso, o que h� de permanente no processo desencadeado, o que hoje seria intelig�vel (a quest�o da propriedade privada, que leva � indiferen�a com rela��o � puni��o e ao objeto que a deflagrou, as circunst�ncias agravantes e a ignor�ncia do direito) e o que deixou de s�-lo (o rigor excessivo de uma �poca fortemente influenciada por valores morais).


Guinzburg e le Roy Ladurie est�o entre os autores que invertem a trajet�ria da hist�ria tradicional, que parte dos grandes eventos, escolhendo um fato insignificante, por�m bem localizado, para analisar mecanismos sociais. O primeiro � autor do c�lebre "O queijo e os vermes", baseado em autos da Santa Inquisi��o referentes a um queijeiro italiano medieval que prop�s a Cria��o a partir da putrefa��o. Muito do ide�rio de toda uma �poca � apresentado a partir de um acontecimento aparentemente secund�rio.


Ferro declara que a parte central de sua obra � a segunda ("Clio, entre o dr. Marx e o dr. Knock") quando, justamente, defende uma hist�ria aut�noma. Considera que, como uma consci�ncia hist�rica n�o � partilhada por todos os grupos sociais e pol�ticos, esta n�o � a hist�ria. Muitos autores procuraram argumentos irrefut�veis que lhes permitissem a autonomia diante das institui��es de sua �poca. Isto porque a hist�ria n�o deveria limitar-se �s representa��es. N�o � um projeto novo, por�m, e Ferro apresenta a hip�tese de que processos similares ocorreram em disciplinas diferentes, incluindo a pesquisa m�dica, as ci�ncias sociais e a reflex�o pol�tica. A partir da�, Ferro questiona a pr�pria profiss�o de historiador e, tamb�m, profissionais das outras �reas citadas. Relativiza-as, pois poderiam ter sido institu�das de maneira diferente daquelas que conhecemos. � nesta parte que predominam as analogias com a ci�ncia m�dica, explica��o para o t�tulo �Clio entre o dr. Marx e o dr. Knock� (personagem de Jules Romains que decide se o paciente que atende est� ou n�o doente).


As rela��es entre m�dicos e pol�ticos modificaram-se com o tempo e se inverteram, tornando-se os m�dicos caudat�rios de decis�es dos pol�ticos. Chega-se no s�culo XX a um passo al�m: na R�ssia stalinista, decide-se que a pol�tica n�o tem sentido, o que era uma decis�o pol�tica. J� que o Partido correspondia �s leis do desenvolvimento hist�rico, n�o haveria porque discordar dele, nem a ele caberia reprimir os dissidentes, que n�o eram opositores pol�ticos, eram desequilibrados, a serem tratados em hospitais psiqui�tricos.


Nas democracias ocidentais, o descr�dito do parlamentarismo ap�s a I Guerra Mundial levou a situa��o semelhante, em sua ess�ncia. A legitimidade amea�ada das institui��es parlamentares levou a que buscassem apoio em t�cnicos, principalmente economistas. Conclui-se que o poder, nos dois lados, passou a decidir sobre tudo, apoiado em uma base t�cnica.


Marc Ferro, ao abordar a cria��o dos Annales, em 1929, mostra, ent�o, que a ado��o dos crit�rios econ�micos e demogr�ficos nos trabalhos de pesquisa hist�rica, com vistas a uma nova hist�ria, fora do �mbito da hist�ria pol�tica, n�o foi casual. A hist�ria econ�mica e a an�lise da organiza��o das sociedades marcam um novo encontro com a economia, atendendo a uma expectativa existente na �poca, e n�o apenas na Fran�a.


A posse pelos historiadores de documentos oficiais era, at� ent�o, o que dava sentido a seus trabalhos, a sua escolha de determinados fatos merecedores de aten��o e � defini��o de cronologias. Registre-se que h� tantas cronologias quanto focos que as produzem. O enfoque estritamente pol�tico foi combatido e Annales tamb�m se chocou com o marxismo, visto como outra forma de hist�ria oficial, em que o Estado era substitu�do pelo Partido. Tamb�m renegaram Durkheim, a quem Ferro atribui uma ascend�ncia n�o admitida pelos historiadores da revista, mas que pensava o fato social em si, sem ver a sociedade como justaposi��o de indiv�duos, nem uma ordem social em si mesma. A refer�ncia de Ferro � filia��o durkheimaniana deve-se � sua proposi��o de observa��o, compara��o e correla��es, para que as ci�ncias sociais transformassem a observa��o em experimenta��o. A hist�ria fez isto, passando dos fen�menos vis�veis aos invis�veis (mecanismos econ�micos, mentalidades) e confrontando-os com o discurso da sociedade.


Fernand Braudel � o principal agente desta mudan�a e Ferro fala em uma �revolu��o braudeliana�, que aplicou � hist�ria m�todos das ci�ncias da natureza e das ci�ncias humanas, estendendo o campo do historiador � economia e � geografia e abandonando a hist�ria-narrativa, em proveito de um referencial �nico, a dura��o (�primeira sistematiza��o em hist�ria). Braudel procurou estudar os capitalismos, mas a escola dos Annales diversificou-se, cobrindo objetos antes n�o considerados que, em breve, passariam a ter, eles mesmos, hist�ria. Os fen�menos foram desestruturados e os fatos sociais e hist�ricos tornaram-se �coisas�, passando a hist�ria a ser o estudo das rela��es entre elas.


Pouco a pouco, a hist�ria experimental tornou-se quantitativa. Ferro observa que os �novos fatos hist�ricos� criados pelo historiador equivaliam �s �novas doen�as� definidas pelos m�dicos, que �n�o tinham exist�ncia em si�. Aponta tamb�m como esse posicionamento acabou levando a uma esp�cie de revolta, pois podia estar sendo institu�da uma realidade diferente da vivida. Os modelos criaram fatos hist�ricos novos, distantes da pr�tica de mem�ria das sociedades. Registra um paralelismo com os m�dicos: os pacientes acham que o m�dico preocupa-se mais com o diagn�stico do que com eles mesmos. Michel de Certeau e A. Besan�on s�o apontados como primeiros cr�ticos destas quest�es, enquanto Foucault procurou confrontar os m�ltiplos discursos emanados das diferentes inst�ncias da sociedade, para restituir as suas pr�ticas. Tal desconstru��o, por�m, relativiza de tal forma o papel do historiador, que parece querer �fazer da pr�pria sociedade sua pr�pria fazedora de hist�ria�.


As defici�ncias da hist�ria aut�noma igualmente foram apontadas no texto, enfatizando-se que ela n�o fala sobre seu pr�prio projeto, dificultando a percep��o de suas diferen�as frente � hist�ria tradicional (p. 105 e 106).


O conhecimento da hist�ria, tratado no final do livro, � apresentado como cada vez mais complexo. Ferro considera que, al�m da consci�ncia atual da fal�ncia das ideologias, o que leva a um questionamento n�o s� do conte�do do ensino de hist�ria, mas tamb�m de seu sentido, multiplicaram-se os focos emissores do discurso hist�rico (antes os Estados, os opositores, os povos colonizados, agora regi�es, ou as mulheres). A relativiza��o da hist�ria, hoje igualmente apresentada pelos meios de comunica��o, coloca novos problemas.


A afirma��o final, de que, ao se relegarem fatos hist�ricos da forma��o da Fran�a moderna, por serem considerados sup�rfluos, faz-se com que a media, controlada em sua maior parte por capitais americanos, imponha o conhecimento sobre a hist�ria dos EUA � muito significativa. H� multiplicidade de focos; h� tamb�m muitos discursos de conte�do hist�rico; h� por tr�s de tudo, como percebeu Foucault, a quest�o do poder. Possivelmente, esta �ltima nota � a maior ironia do livro.



Fernando Roberto de Freitas Almeida


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