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Livro: |
L� vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (s�culo XVIII) |
Autor(es): |
Antonia Aparecida Quint�o |
Editora: |
Annablume / Fapesp |
Ano: |
2002 |
Nº de páginas: |
208 |
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Na historiografia brasileira e tamb�m na portuguesa, ainda s�o raros os trabalhos sobre a vida associativa, embora a historiografia internacional, com o historiador norte-americano Robert Darnton, professor da Universidade de Princeton, � frente, venha oferecendo nos �ltimos tempos v�rios estudos sobre a sociabilidade. Por isso, L� vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (s�culo XVIII), livro de Antonia Aparecida Quint�o, doutora de v�rias universidades privadas de S�o Paulo e pesquisadora do N�cleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb), vem a calhar num momento em que a sociedade brasileira discute a validade de se adotar cotas para afrodescendentes nas universidades p�blicas.
Sem querer discutir os pr�s e os contras da ado��o dessa pol�tica, a verdade � que uma presen�a mais significativa de afrodescendentes nas universidades p�blicas resultar� em maior n�mero de trabalhos voltados para a discuss�o do papel do negro na sociedade brasileira. E, com certeza, trabalhos de excelente qualidade como este da professora Antonia Quint�o, originalmente uma tese de doutorado apresentada em outubro de 1997 ao Departamento de Hist�ria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ci�ncias Humanas da Universidade de S�o Paulo, sob a orienta��o do professor doutor Augustin Wernet.
Neste texto, a autora discute o papel das confrarias de pretos e pardos na Am�rica portuguesa, mostrando que, ao contr�rio do que chegaram a sugerir historiadores mais antigos e ainda marcados por preconceitos, o principal sentido dessas irmandades religiosas foi o de dar dignidade ao negro. Na verdade, como explica a autora em suas conclus�es, ao tornar-se confrade, o negro, escravo ou liberto, encontrava um significado para a sua vida, �na medida em que as confrarias possibilitavam o culto aos mortos, estimulavam a solidariedade, garantiam o enterro de seus membros, amparavam materialmente os mais necessitados, levavam alimentos para os que estivessem doentes ou presos, auxiliavam na compra da carta de alforria e realizavam as festas coletivas que representavam no plano simb�lico os valores da sociedade setecentista � fortemente hierarquizada e discriminadora�.
Ao longo do tempo, as irmandades, com uma ou outra exce��o, nunca foram consideradas como forma de resist�ncia. Por isso, os negros confrades quase sempre foram apresentados de maneira preconceituosa, como se fossem acomodados, passivamente integrados ao sistema escravagista, completamente alheios aos conflitos e tens�es sociais. Em outras palavras: seriam �bons escravos�.
O livro da professora Antonia Quint�o mostra que em cada situa��o hist�rica o homem luta da forma que lhe � poss�vel, provando, com farta documenta��o de arquivo, que as irmandades elaboravam suas estrat�gias no contexto da sociedade escravagista em que estavam inseridas. Um exemplo curioso que a pesquisadora resgatou dos arquivos � o caso do adjunto ou congrega��o dos pretos minas da na��o makii, n�o s� por se tratar de africanos, mas tamb�m pela forte resist�ncia que demonstraram, inclusive mantendo termos de sua l�ngua natal. Trata-se de um manuscrito de 1786 e localizado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que reproduz as tens�es e os conflitos que marcavam as rela��es inter�tnicas: os makii n�o admitiam em sua confraria pessoas pretas de Angola nem crioulos nem cabras ou mesti�os.
A princ�pio, a autora procurou demonstrar que as atividades desenvolvidas por negros e pardos nas irmandades tinham um car�ter de protesto racial, uma vez que faziam parte de uma sociedade marcadamente racista. Em seguida, as fontes consultadas � no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no Arquivo Hist�rico Ultramarino e no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e especialmente os compromissos de irmandades levantados em igrejas do Rio de Janeiro e de Pernambuco � permitiram � historiadora constatar que os negros eram vistos como criminosos, ladr�es, feiticeiros, considerados incapazes, perigosos, suspeitos e, a partir da�, pass�veis de terem seus bens usurpados. O exemplo mais bem acabado da situa��o � que estavam relegadas as classes subalternas, diz a autora, � o da Irmandade do Ros�rio e S�o Benedito do Rio de Janeiro.
�O negro era uma presen�a que incomodava, causava temor e inquieta��o�, conta a autora, lembrando que as suas reivindica��es significavam amea�as e eram vistas como tentativas de desestabiliza��o social. �� certamente dif�cil comprovar que a sociedade brasileira � historicamente racista, pois o Brasil gosta de ser e de se mostrar como um pa�s sem preconceitos, tendo elaborado e incorporado o mito da democracia racial, que permanece incontest�vel justamente por ser mito e apesar dos numerosos exemplos de discrimina��o racial praticados cotidianamente de uma maneira vis�vel e indiscut�vel�, diz.
N�o foi uma tarefa f�cil essa � que Antonia Quint�o se entregou. Pesquisar a hist�ria das classes subalternas e, particularmente, do negro, � sempre uma miss�o �rdua. As dificuldades que surgem s�o as mais inusitadas, como o inc�ndio que em 1967 destruiu a igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Ros�rio e S�o Benedito do Rio de Janeiro, transformando em cinzas documentos fundamentais para o conhecimento da hist�ria da popula��o de escravos e forros nos s�culos XVII e XVIII. Essa mesma trag�dia emudeceu a hist�ria da Irmandade de Santo Elesb�o e Santa Efig�nia, pois boa parte dos documentos estava sob a responsabilidade da Irmandade de Nossa Senhora do Ros�rio e S�o Benedito. Outra igreja carioca que perdeu boa parte de sua documenta��o foi a de Nossa Senhora da Lampadosa, a �poca do alargamento da antiga Rua da Lampadosa, atual Avenida Passos, em 1920.
Por tudo isso, este livro da professora Ant�nia Quint�o �, desde j�, um trabalho imprescind�vel ao historiador que pretende se aventurar nesta seara t�o dif�cil. Seu texto, como foi dito acima, segue uma tend�ncia revisionista da hist�ria, contrapondo-se �s tend�ncias historiogr�ficas tradicionais que associavam a vida em confraria dos negros a um esquema de controle de vigil�ncia organizado pela Igreja e o Estado.
Ao mostrar que as irmandades n�o eram o �antiquilombo� urbano, a autora deixa claro, isso sim, que se tratavam de uma forma de resist�ncia das classes subalternas, na qual se imbricavam elementos da classe dominante. Por isso, justifica a autora, muitas vezes, os pr�prios confrades tinham procedimentos marcados pela contradi��o e ambig�idade.
De fato, se as irmandades n�o chegaram a contestar a ordem estabelecida, com certeza, denunciaram as incoer�ncias e reagiram �s injusti�as de uma sociedade arraigadamente racista, o que a autora mostra por meio da an�lise dos requerimentos e peti��es dessas confrarias que, em �ltima an�lise, sempre tiveram como motiva��o b�sica o desejo de independ�ncia e autonomia.
Adelto Gon�alves
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