Atualizado em 02 de novembro de 2003
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Carta de Lisboa


Gilson Gustavo de Paiva Oliveira

Magn�fico Louren�o, meu patr�o. Ap�s as devidas recomenda��es, etc.


A �ltima carta que te escrevi foi da costa da Guin�, de um lugar que se chama Cabo Verde, atrav�s da qual soubeste do in�cio da minha viagem. Com a presente te descreverei brevemente a parte interm�dia e o final da mesma, que � o que agora se seguir�.


Partimos do sobredito Cabo Verde com facilidade e reabastecidos de todo o necess�rio, como �gua, lenha e outras coisas de que precis�vamos para enfrentar o golfo do mar Oceano, a fim de procurarmos novas terras. Navegamos tanto com vento entre sudoeste e sul, que em 64 dias chegamos a uma nova terra, que descobrimos ser terra firme por muitas raz�es que mais adiante se dir�o. Percorremos aquela terra por cerca de oitocentas l�guas em dire��o a uma quarta de sudoeste para poente e achamo-la cheia de habitantes, onde eu vi coisas maravilhosas de Deus e da natureza, pelo que decidi te dar not�cias , como sempre fiz nas outras minhas viagens.


Corremos tanto por estes mares, que entramos na zona t�rrida e ultrapassamos a linha equinocial na parte do austro e do Tr�pico de Capric�rnio, de modo que o p�lo do meridiano se encontrava acima do meu horizonte 50�. Outro tanto era a minha latitude da linha equinocial, pois navegamos nove meses e 27 dias sem ver mais o P�lo �rtico, nem a Ursa Maior e Menor, e, ao contr�rio, me apareceram da parte do meridiano infinitos grupos de estrelas muito claras e belas, que sempre est�o ocultas para os que habitam no setentri�o. A� observei o maravilhoso artif�cio de seus movimentos e de sua grandeza, medindo o di�metro de suas circunfer�ncias e desenhando‑as com figuras geom�tricas. Notei muitos outros movimentos do c�u que seria prolixo descrever-te.


Mas todas as coisas mais importantes que nesta viagem me sucederam eu as recolhi num meu op�sculo, a fim de que, quando estiver em repouso, delas possa me ocupar para deixar alguma fama de mim ap�s a morte.


Tinha a inten��o de te mandar um resumo, mas guarda-o ainda este seren�ssimo rei. Mal mo restitua, isso ser� feito.


Assim, estive na zona dos ant�podas, que pela minha navega��o � a quarta parte do mundo. O ponto mais alto do meu z�nite naquelas partes fazia um �ngulo reto esf�rico com os habitantes do setentri�o que est�o na latitude de 40�. E isto basta.


Vamos � descri��o da terra, dos habitantes, dos animais, das plantas e de outras coisas �teis e comuns, que naqueles lugares encontramos, para a vida humana. Esta terra � muito amena e cheia de in�meras �rvores verdes e muito grandes que jamais perdem as folhas; todas t�m odores suav�ssimos e arom�ticos, produzem muit�ssimos frutos e muitos deles saborosos e salutares para o corpo. Os campos produzem muitas ervas, flores e ra�zes muito suaves e boas. Algumas vezes me maravilhei com os suaves odores das ervas e das flores e com os sabores daqueles frutos e ra�zes, tanto que pensava comigo estar no Para�so terrestre: em meio �queles alimentos, teria acreditado estar pr�ximo dele. Que diremos da quantidade de p�ssaros e de suas plumagens, cores e cantos, de quantas esp�cies e quanta beleza (n�o quero me alongar sobre isto, pois duvido se me dar�o cr�dito)? Quem poder� contar a infinita s�rie de animais silvestres, tanta abund�ncia de le�es, on�as, gatos ‑ n�o de Espanha, mas dos ant�podas ‑ tantos lobos cervais, babu�nos, gatos selvagens de tantas esp�cies e muitas cobras grandes? E vimos tantos outros animais que acho n�o haver espa�o nem na arca de No� para tanta variedade. E tamb�m numerosos porcos selvagens, cabritos-monteses, cervos, cor�as, lebres e coelhos, ao passo que n�o vimos nenhum animal dom�stico.


Vamos aos animais racionais. Achamos toda a terra habitada por gente nua, tanto os homens como as mulheres, sem cobrir suas vergonhas. S�o de corpo bem feito e proporcionado, de cor branca e cabelos longos e negros, pouca ou nenhuma barba.


Muito me cansei para entender sua vida e costumes, porque comi e dormi entre eles 27 dias, e o que deles soube � o seguinte:


N�o t�m nem lei nem f� alguma, vivem segundo a natureza, n�o conhecem a imortalidade da alma. N�o possuem consigo bens pr�prios, pois tudo � comum. N�o t�m fronteiras de reinos ou prov�ncias; n�o t�m rei, nem obedecem a ningu�m: cada qual � senhor de si mesmo.


N�o administram justi�a, que para eles n�o � necess�ria, porque em seu meio n�o reina a cobi�a. Habitam em comum em casas muito grandes feitas � maneira de cabanas e, para gente � n�o possui ferro nem qualquer outro metal, suas cabanas ou casas podem se dizer miraculosas, pois que vi casas com duzentos passos de comprimento e trinta de largura, sendo constru�das artisticamente; numa dessas casas estavam quinhentas ou seiscentas pessoas.


Dormem em redes tecidas de algod�o, deitados em c�u aberto, sem qualquer coberta. Comem sentados no ch�o; as suas comidas s�o muitas ra�zes, ervas e frutas muito saborosas, peixes sem limite, grande abund�ncia de frutos do mar, ouri�os, caranguejos, ostras, lagostas, camar�es e muitos outros produtos do mar. A carne que comem, sobretudo a comum, � carne humana, do modo que ser� descrito. Quando podem obter outra carne, quer de animais quer de aves, comem-na. Mas capturam poucos animais porque n�o t�m c�es e aquela terra � muito densa de bosques, que est�o cheios de feras cru�is e, por isso, n�o costumam aventurar-se na floresta a n�o ser com muita gente.


Os homens t�m por h�bito furar os l�bios e as faces, colocando depois nos buracos ossos ou pedras, e n�o se julgue que s�o pequenas. A maioria deles tem pelo menos tr�s furos (e alguns sete, e outros nove), nos quais introduzem pedras de alabastro verde e branco, que t�m meio palmo de comprimento e a grossura de uma ameixa catal�, o que parece coisa fora do natural. Dizem que fazem isso para aparentarem ser mais ferozes. Em suma, � coisa bestial.


Os seus casamentos n�o s�o com uma mulher s�, mas com as que quiserem e sem muitas cerim�nias, pois conhecemos um homem que tinha dez mulheres. S�o ciumentos, e se acontecer que uma mulher lhes seja infiel, castigam-na, espancam-na e mandam-na embora, deixando-a.


S�o gente muito fecunda. N�o t�m herdeiros porque n�o possuem bens pr�prios. Quando os seus filhos, isto �, as mo�as, est�o em idade de procriar, o primeiro que as inicia deve ser, fora o pai, o parente mais pr�ximo que tenham. Depois, assim iniciadas, fazem-nas casar.


As suas mulheres n�o fazem nenhuma cerim�nia durante os partos, como as nossas, e comem de tudo; mal deram � luz, v�o nesse mesmo dia para o campo para se lavarem.


S�o indiv�duos que vivem muitos anos, pois, segundo seus c�lculos, conhecemos muitos homens que t�m at� quatro qualidades de netos.


N�o sabem contar os dias, n�o sabem nem os meses nem os anos, exceto dividir o tempo por meses lunares. Quando querem indicar alguma coisa e o seu tempo, p�em uma pedra para cada lua. Encontrei um homem dos mais velhos que me mostrou por sinais com pedras ter vivido 1.700 meses lunares, o que me parece serem 132 anos, contando treze meses lunares por ano.


S�o tamb�m belicosos e muito cru�is entre si. Todas as suas armas e golpes s�o, como diz Petrarca, commessi al vento ("entregues ao vento"), sendo arcos, flechas, lan�as e pedras, e n�o as empregam na luta corpo a corpo, porque andam nus como nasceram. N�o t�m ordem nenhuma em suas guerras, salvo seguirem os conselhos de seus velhos. Quando combatem, matam-se muito cruelmente, e a parte que sai vencedora do campo prov� o sepultamento dos pr�prios mortos, e aos inimigos fazem em peda�os e os comem. Aos que capturam deixam-nos presos e mant�m-nos como escravos em suas casas: se for mulher, dormem com ela; se for homem, fazem-no casar com suas filhas.


Em certas �pocas, quando ficam possu�dos de f�ria diab�lica, convidam os parentes e o povo e p�em-nos diante, isto �, a m�e com todos os filhos que dela t�m e, com certos ritos, os matam a flechadas e os comem. A mesma coisa fazem aos sobreditos escravos e aos filhos que deles nascem. Isto � verdadeiro porque achamos em suas casas carne humana posta ao fumo e com abund�ncia, e compramos deles dez crian�as, meninos e meninas, que estavam destinadas ao sacrif�cio ou, melhor dizendo ao malef�cio. Muito os repreendemos, mas n�o sei se eles se emendar�o.


0 que mais me espantou nessas guerras e crueldade foi que n�o consegui saber deles por que se guerreiam uns aos outros, visto que n�o t�m bens pr�prios nem dom�nio de imp�rios ou reinos e n�o sabem o que seja cobi�a, quer dizer, a riqueza ou a avidez de reinar, o que me parece ser a causa das guerras ou de qualquer a��o revolucion�ria.


Quando lhes pedia que explicassem a causa, n�o sabiam dar outra raz�o sen�o afirmar que desde tempos antigos come�ou entre eles essa maldi��o e que queriam vingar a morte de seus pais antepassados. Assim sendo, � uma coisa brutal, sendo certo que um homem dentre eles me confessou haver tido ocasi�o de comer a carne de mais de duzentos corpos e creio que isto seja verdade, e basta.


Sobre a disposi��o da terra, afirmo que � terra muito amena, temperada e saud�vel, porque durante o tempo em que a percorremos, que foram dez meses, n�o s� nenhum de n�s n�o morreu, como poucos adoeceram.


Como j� disse, eles vivem muito tempo e n�o t�m enfermidade nem pestil�ncia ou mal�ria, e morrem de morte natural ou por causa de sufocamento. Conseq�entemente, os m�dicos teriam ruim perman�ncia em tal lugar.


Porque viajamos para descobrir e com este objetivo partimos de Lisboa, e n�o para obter qualquer proveito, n�o nos demoramos a procurar terra, nem a buscar nenhuma riqueza, de modo que n�o vimos ali coisa de alguma utilidade; n�o que n�o creia que aquela terra produza todo g�nero de riqueza por sua admir�vel situa��o e gra�as ao clima da regi�o onde se encontra.


N�o � de admirar que assim n�o perceb�ssemos toda a vantagem, pois que os seus habitantes n�o d�o qualquer valor nem ao ouro, nem � prata ou outras j�ias, exceto coisas como plumagens e ossos, como j� se disse. Tenho a esperan�a de que, indo-a visitar este seren�ssimo rei, n�o passar�o muitos anos at� chegarem a este reino de Portugal enormes proveitos e rendas. Achamos enorme quantidade de madeira verzina e de �tima qualidade para carregar sem nenhuma despesa quantas naus estejam hoje no mar, como tamb�m canaf�stula. Vimos cristal e infinitos sabores e odores de especiarias e drogas que n�o se conheciam. Os homens do pa�s falam de ouro e de outros metais e drogas miraculosas, mas eu sou seguidor de S�o Tom�: o tempo tudo far�.


A maior parte do tempo o c�u se mostra sereno e ornado de muitas estrelas brilhantes e de todas observei os c�rculos.


Isto �, em breves e resumidas palavras, o que eu vi daquelas partes. Omito muitas coisas que seriam dignas de mem�ria, para evitar a prolixidade, e tamb�m porque as achareis com min�cias na minha Viagem.


Por ora estou aqui em Lisboa, aguardando que o rei dispor� para mim. Praza a Deus que aconte�a o que seja melhor para o Seu santo servi�o e para a salva��o da minha alma.


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