Atualizado em 04 de mar�o de 2004
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Ensaios e Artigos

"O asno de ouro": uma an�lise do culto da deusa �sis


Vanessa Auxiliadora Fantacussi

A fonte analisada no presente artigo � a obra O asno de ouro, uma mistura de caracter�sticas de estilos grego, romano e africano do s�culo II d.C. A obra � considerada helen�stica, sendo uma mescla de v�rios mundos: Oriente, Gr�cia, helenismo e literatura latina. O autor, L�cio Apuleio, faz uma cr�tica � sociedade em que vive e descreve algumas cren�as dos romanos.


O t�tulo original da obra � Libri Metamorphoseon, escrita por volta de 160 d.C., sendo a denomina��o Asinus Aureus dada por Santo Agostinho. O asno de ouro � uma s�tira, dividida em onze livros � onze cap�tulos �, onde Apuleio narra as aventuras de L�cio, metamorfoseado em burro, em virtude de um engano. A obra � narrada em primeira pessoa, pelo pr�prio protagonista. Durante uma viagem � Gr�cia, hospeda-se na casa de uma feiticeira e experimenta uma de suas pomadas e se transforma em asno, mas continua com mente humana. Passou por donos sucessivos, servindo a um sacerdote, um moleiro, um jardineiro, um confeiteiro, um cozinheiro, at� que a deusa �sis lhe ensina como retornar � forma humana. Em troca, L�cio deve aceitar ser iniciado nos mist�rios da deusa e tornar-se um sacerdote. A s�tira da obra est� na mitologia pag�, o autor est� profundamente interessado nos cultos de mist�rios, no maravilhoso e no sobrenatural, sendo o cristianismo tamb�m criticado indiretamente, quando descreve com muita ironia os personagens que cultuam apenas um deus. O p�blico alvo do autor s�o os educados e cultos, pois � a sua sociedade que est� sendo ridicularizada.


Para que L�cio voltasse � forma humana, deveria comer algumas rosas, as quais encontra somente ap�s algum tempo, quando j� passou por todas as etapas de aprendizado, ou seja, por toda sua peregrina��o. A rosa tem um grande significado na Antig�idade, designa a perfei��o acabada, uma obra sem defeito. Segundo Lu�s Mucillo (1995), a rosa e sua cor eram os s�mbolos do primeiro grau de regenera��o e de inicia��o aos mist�rios. L�cio somente encontra as rosas no final de sua peregrina��o, logo que volta � forma humana e come�a a ser iniciado no culto de mist�rio da deusa �sis, realmente, a rosa aparece na primeira etapa de sua inicia��o.


A obra caracteriza-se pelas hist�rias e aventuras, juntamente com a religi�o de mist�rios e id�ias plat�nicas, misturando o pitagorismo, o platonismo e as supersti��es. Toda a obra tem o car�ter m�stico, mas o interesse maior est� no livro XI (1) , onde L�cio volta � forma humana com a ajuda da deusa �sis e � iniciado em seu culto, com este cap�tulo, podemos entender um pouco de como era o culto de mist�rio da deusa �sis no Imp�rio Romano. Para isso, utilizo como metodologia, o autor Mikhail Bakhtin (1988). Para este autor, O asno de ouro � considerado como �romance de aventuras e de costumes�. O tempo e espa�o s�o coerentes e conhecidos na obra, L�cio � apresentado metamorfoseado e depois segue todo um caminho de peregrina��o, em forma de asno. Neste per�odo passa por v�rios lugares, todos s�o descritos e conhecidos. A peregrina��o de L�cio simboliza sua prepara��o para ser iniciado no culto de mist�rio. A metamorfose est� ligada � identidade, sendo esta muito importante. O asno � o que melhor expressa as caracter�sticas do personagem, como teimoso e imprudente, o burro tamb�m pode simbolizar o mal e o bem, isso porque o deus Seth, inimigo de �sis e Os�ris, � apresentado como este animal, no Egito eram oferecidos em sacrif�cio ao deus Seth. O lado bom � que asno carrega a divindade nas prociss�es, portanto simboliza o animal que est� protegido pela deusa, assim, o protagonista est� protegido a todo o momento. Nos mist�rios Eleusis, o asno era o animal que carregava as bagagens dos iniciados desde Atenas at� Eleusis, a carga transportada representava o corpo da divina crian�a Dioniso, Apuleio era iniciado neste culto, portanto as peregrina��es do asno L�cio s�o analogias das etapas de inicia��o. No Egito, o asno foi o mais antigo animal dom�stico, este transportava os cereais, que eram associados a Os�ris, o fato de carregar a carga associada ao corpo de Os�ris significa que o animal � o inimigo de �sis, ligado a Seth, que carregou o corpo do marido morto. Al�m disso, o asno � o animal que tem orelhas grandes, por isso ouve muito bem, portanto, sendo um dos objetivos do autor da obra descrever a sociedade romana da �poca em que viveu, o burro � o que melhor pode narrar esta sociedade, mostrando tudo o que ouve dos personagens.


A metamorfose significa um aprendizado para L�cio, � um momento de ruptura e de crise, onde o personagem s� voltar� � forma humana quando estiver preparado. Com isso, Bakhtin mostra que o romance apenas quer apresentar o momento de crise, n�o se preocupando em dar uma biografia do personagem. L�cio tem tr�s imagens: L�cio antes da metamorfose, L�cio em forma de asno e L�cio em forma humana j� purificado.


L�cio Apuleio, autor da obra, nasceu em Madaura, na Arg�lia, na �poca do imperador Adriano, vivendo entre os anos 152 a 170 d.C. Foi educado em Cartago e Atenas, onde se aperfei�oou na filosofia, sendo advogado em Roma.


Apuleio viajava muito, em uma de suas viagens estabeleceu-se na casa de um amigo em Oea, desposando sua m�e, Em�lia Prudentila. Por se casar com uma vi�va rica, foi acusado de conquist�-la por artes m�gicas. O processo ocorreu por volta do ano 158, Apuleio defendeu-se e foi absorvido, tal processo est� descrito em sua obra Apologia.


O autor foi orador, novelista, fil�sofo popular m�stico, possu�a cargos pol�ticos e sagrados nas religi�es de mist�rios, sendo um dos mais brilhantes liter�rios da �poca dos Antoninos. Seu conhecimento filos�fico e suas inicia��es em cultos de mist�rios, adquiridos ao longo de suas viagens, s�o expressas na obra O asno de ouro.


Na �poca dos Antoninos, no s�culo II, surge uma nova tend�ncia para a ret�rica africana, denominada �africista�. Era uma mistura de caracter�sticas do africano e do Imp�rio Romano, sendo L�cio Apuleio um dos maiores representantes.


O s�culo dos Antoninos foi um per�odo de expans�o, onde o Imp�rio Romano afirmou unidade e coes�o. A obra O asno de ouro revela o homem deste tempo, o qual est� preocupado com a investiga��o acerca das experi�ncias m�gicas; a religi�o e a filosofia foram substitu�das por uma mescla religioso-filos�fica, contendo aspectos pitag�ricos e plat�nicos, juntamente com supersti��es e ritos orientalizantes.


Os romanos sentem a necessidade de uma religi�o espiritual, � neste per�odo que entram em contato com as religi�es orientais. Os mist�rios greco-orientais deram um senso de espiritualidade superior, colocando o homem em contato direto com a divindade e pensando a vida do al�m-t�mulo.


O culto da deusa �sis tornou-se popular em Roma no fim da Rep�blica. �sis � a deusa eg�pcia que, por ter recomposto o corpo do marido, Os�ris, e ter-lhe dado nova vida, ganhou a fama de poderosa. Em Roma, seu sucesso se deve ao fato de seu culto ter sido o primeiro com car�ter de salva��o pessoal, ajudando os homens a suportar as dificuldades do cotidiano e prometendo uma vida de felicidade ap�s a morte. O culto da deusa era predominantemente, n�o exclusivamente, feminino. Em Roma, o Senado foi contra o culto da deusa �sis por v�rias gera��es, sendo o altar da deusa destru�do muitas vezes. Sob Cal�gula, foi erguido o grande templo da deusa, no Campus Martius.


Segundo Walter Burkert (1987), as religi�es de mist�rios s�o de origem, estilo e esp�rito orientais. Os mist�rios s�o cerim�nias de inicia��o, s�o cultos onde a admiss�o e a participa��o dependem de algum ritual pessoal, sendo a magia uma das principais ra�zes dos mist�rios. Nos mist�rios de �sis, a deusa assegura ao iniciado prolongar-lhe a vida al�m do termo fixado pelo destino e lhe dar uma nova vida. A deusa �sis foi muito bem aceita no Imp�rio Romano, desde o Egito era ligada � magia, portanto no culto de mist�rio ela cabe perfeitamente, al�m disso, a maior parte dos seguidores da deusa s�o mulheres, que se identificam com a deusa na magia e nas quest�es de fertilidade.


�sis e seu esposo Os�ris tinham grande prest�gio no Egito, por isso a deusa tamb�m teve sucesso em Roma. �sis, na mitologia eg�pcia, era a esposa-irm� de Os�ris, juntos reinavam e difundiam a paz. Certo dia, Os�ris viaja para levar a paz pelo mundo, quando volta, � morto pelo irm�o Seth, que o esconde. �sis sai � procura do marido, quando o encontra, esconde seu corpo em um p�ntano. Seth estava ca�ando quando encontrou o corpo de Os�ris, ent�o, furioso, o parte em quatorze peda�os e espalha-os pelo Egito. �sis, novamente, sai � procura e encontra treze peda�os, os quais une e forma a primeira m�mia. �sis tamb�m � fecundada pelo marido morto e nasce H�rus, que ir� combater Seth. O resultado foi a divis�o do Egito entre o Alto e o Baixo Egito, para Seth e H�rus. Por ter restitu�do a vida do marido morto, �sis tem como fun��o primordial curar os enfermos. A ressurrei��o de Os�ris simboliza a renova��o vegetal, assim, �sis � tamb�m a deusa agr�ria e da fertilidade, assim como a m�e universal.


Os adoradores de �sis em Roma imitavam a deusa, batendo no peito e gritando por Os�ris, mas explodindo de j�bilo quando o deus � reencontrado. O templo era a morada dos deuses, os sacerdotes tinham que ser puros, por isso raspavam a cabe�a e suas fun��es eram: lavagem das est�tuas, transporte da divindade em prociss�es, oferendas rituais de alimentos e bebidas, instala��o da presen�a divina na est�tua, etc. Assim, em Roma, os mist�rios de �sis eram prolongamentos das cerim�nias eg�pcias. Apuleio ([s.d], p.192) mostra parte de um ritual � deusa,


[..] o anci�o me conduziu logo at� a porta do imponente edif�cio, onde, depois de ter celebrado, na forma consagrada, o rito de abertura do templo, cumpriu o sacrif�cio matinal. Tirou de um recesso do fundo do santu�rio livros em que estavam tra�ados caracteres desconhecidos. Alguns eram figuras de animais de toda a esp�cie, express�o abreviada de f�rmulas lit�rgicas.


Os mist�rios de �sis e Ser�pis � identificado ao deus Os�ris � comportavam festas p�blicas, um culto di�rio e ritos secretos. Os sacerdotes de �sis sabem o que fazer porque s�o avisados pela deusa em sonho.


Durante a inicia��o ao culto de mist�rio, recomenda-se a abstin�ncia por dez dias de comer carne e de beber vinho,


[...] toda gente recomendou-me que me abstivesse durante dez dias seguidos dos prazeres da mesa, que n�o comesse carne de nenhum animal nem bebesse vinho, abstin�ncia que observei com religioso respeito (APULEIO, [s.d], p.192).


O nome L�cio significa �peixe�, este � relacionado ao sagrado. Ao peixe � atribu�do o nascimento e a restaura��o, por se reproduzir rapidamente e com muitos ovos, � s�mbolo da vida e fecundidade. No Egito, o peixe fresco ou seco, era consumido pelo povo, mas proibido aos sacerdotes. A peregrina��o de L�cio, ou seja, do �peixe�, mostra seu caminho para o renascimento, a inicia��o tem este car�ter, deixar a vida para renascer em uma nova vida espiritual. Sendo a peregrina��o de L�cio etapas para sua purifica��o, em certo momento, L�cio compra peixes para o jantar, encontrando seu amigo P�tias, este destr�i sua compra, dizendo que foi roubado no pre�o pago pelos peixes, privando L�cio de seu jantar, assim, durante o aprendizado, L�cio j� n�o poderia comer os peixes.


Na noite da inicia��o, a massa de fi�is honra-o com presentes diversos, em seguida, vestido com o manto de linho, � conduzido pelo sacerdote para a capela mais retirada do santu�rio. O sacerdote que inicia o personagem no culto chama-se Mitra, mesmo nome da divindade indoiraquiana, que significa �intermedi�rio�, este realmente � o intermedi�rio entre L�cio e a divindade.


L�cio, que estava na forma de um asno, � salvo pela deusa �sis. A deusa aparece na obra como a guia de L�cio, que o conduz para a purifica��o, � ela quem lhe aparece em sonho e indica o caminho a seguir, assim, L�cio volta � forma humana, mas deve ser iniciado nos mist�rios de �sis e servi-la por toda a vida. A deusa �sis muda o destino do personagem, era assim que os romanos acreditavam. Quando a deusa aparece em sonho para L�cio, ela diz:


Venho a ti, L�cio, comovida por tuas preces, eu, m�e da Natureza inteira, dirigente de todos os elementos, origem e princ�pio dos s�culos, divindade suprema, rainha dos Manes, primeira entre os habitantes do C�u, modelo uniforme dos deuses e das deusas. Os cimos luminosos do C�u, os sopros salutares do mar, os sil�ncios desolados dos infernos, sou eu quem governa tudo isso, � minha vontade. Pot�ncia �nica, o mundo inteiro me venera sob formas numerosas, com ritos diversos, sob m�ltiplos nomes (APULEIO, [s.d], p.182).


A vida de L�cio como asno � uma vida de aprendizagem, por isso passa por v�rias dificuldades, principalmente castigos f�sicos, no final do romance, j� sob a forma humana, L�cio deixa a vida ruim e vai para a boa, ou seja, volta a ser humano, � iniciado nos mist�rios de �sis e tem a prote��o pelo resto da vida. O nome do personagem da obra � L�cio, mesmo nome do autor, L�cio Apuleio, por isso se discute se o nome do autor � realmente L�cio ou este � confundido com o personagem, al�m disso, sendo o pr�prio autor iniciado no culto de mist�rio da deusa �sis, o romance pode ser identificada � sua pr�pria vida. O autor tamb�m � iniciado em outros cultos de mist�rios, por isso encontramos em algumas etapas da peregrina��o do asno como similares �s etapas de rituais de inicia��o aos cultos, principalmente ao culto de Mitra e Eleusis.



Bibliografia

APULEIO, L�cio. O asno de ouro. Trad. Ruth Guimar�es. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d].

BAKHTIN, Mikhail. Quest�es de Literatura e de Est�tica. S�o Paulo: Editora Unesp, 1988.

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D�ONOFRIO, Eliete M. As fant�sticas viagens de L�cio. O maravilhoso e o m�tico em Apuleio. In: Itiner�rios. Araraquara: Universidade Estadual Paulista, 8:77-84, 1995.

D�ONOFRIO, Salvatore. Os motivos da s�tira romana. Mar�lia: Faculdade de Filosofia, Ci�ncias e Letras de Mar�lia, 1968.

FINKELPEARL, Ellen. The judgment of Lucius: Apuleius, Metamorphoses 10.29-34. In: Classical antiquity. USA: University of California Press, v. 10, n� 2, 1991.

MUCILLO, Lu�s. O mito de �sis no Asno de ouro. In: Cerrados. Revista do curso de p�s-gradua��o em literatura. Bras�lia: Universidade de Bras�lia, 4: 80-95, 1995.

PARATORE, Ettore. Hist�ria da literatura latina. Lisboa: Funda��o Calouste Gulbenkian, 1983.

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