Steiner e os Arquivos do �den |
Adelto Gon�alves
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George Steiner, um dos pensadores mais l�cidos da atualidade, num ensaio intitulado �Os arquivos do �den�, que consta de Nenhuma paix�o desperdi�ada (Rio de Janeiro, Record, 2001), diz da obsess�o dos norte-americanos de procurar reunir em seus museus e bibliotecas o maior n�mero poss�vel de documentos que digam respeito � hist�ria da esp�cie humana. E o fazem sem pesar o terr�vel fato de que o dinheiro gasto por um museu na compra de um Picasso seja suficiente para matar a fome de centenas de milhares de seres humanos, o que � aceito por todos sem o menor constrangimento.
Diz Steiner que essa obsess�o norte-americana, de uma maneira enlouquecida, leva em conta a possibilidade de a bomba de n�utrons (que destr�i as pessoas mas preserva museus, bibliotecas, arquivos, livrarias) vir a ser a arma fatal do intelecto. Em outras palavras: dane-se o mundo, desde que se salvem os documentos que registram a hist�ria da esp�cie e, naturalmente, alguns eleitos norte-americanos que possam escapar da hecatombe.
Com isso, l� se est�o indo tamb�m os documentos dos nossos arquivos. Ainda h� poucos dias, os jornais de S�o Paulo noticiaram que a pol�cia havia desbaratado uma quadrilha de estudantes de biblioteconomia que estavam a desviar documentos de arquivos para vend�-los no mercado negro. A que ponto chegamos: as nossas faculdades, sem saber, est�o formando refinados ladr�es de arquivos, pessoas capazes de avaliar a import�ncia de um documento que, para a maioria, n�o passaria de papel velho.
Como se sabe, o desvirtuamento desses estudantes � que deveriam ser, isso sim, os futuros guardi�es da documenta��o da na��o� surge das possibilidades de grandes ganhos num mercado que n�o tem nada de inocente � o dos sebos ou alfarrabistas. E, entre aqueles que estimulam esse mercado, est�o sempre intelectuais norte-americanos que, bem fornidos por recursos que lhes p�em � disposi��o as institui��es para as quais trabalham, v�m ao Brasil ou v�o a Portugal dispostos a dar uma bolada de d�lares por documentos de nossa Hist�ria. Depois, escrevem livros, conseguem com que algum figur�o de nossas universidades escreva um pref�cio e ainda s�o convidados para toda a sorte de rapap�s.
A bem da verdade, n�o s�o s� intelectuais norte-americanos. Quantas vezes, n�o visitamos exposi��es de acervos de magnatas bibli�filos e ficamos com a pulga atr�s da orelha? Afinal, muitos daqueles documentos que est�o agora na posse desses endinheirados colecionadores n�o teriam pertencido, algum dia, a arquivos p�blicos? N�o vamos dizer que esses colecionadores cometeram algum il�cito penal, longe disso, mas onde compraram tais documentos? Certamente, no chamado mercado negro dos alfarrabistas.
Algu�m com o esp�rito do conselheiro Ac�cio haveria de dizer: antes assim, pois pelo menos alguns documentos ficam em nossas terras. Caso contr�rio, n�o estar� longe o dia em que os historiadores luso-brasileiros, se quiserem escrever sobre fatos de nossa Hist�ria, ter�o de pesquisar em arquivos das universidades norte-americanas, pois para l� est�o indo os nossos documentos.
Talvez esse dia j� tenha chegado, pois n�o h� um grande historiador que n�o tenha recebido bolsa para ficar uma temporada numa universidade norte-americana. Para que? Ora, para ler livros raros e fontes prim�rias de nossa Hist�ria. Pois � l� que est�o os Arquivos do �den.
Steiner alerta, por�m, para um pormenor que, �s vezes, passa despercebido: os curadores norte-americanos compram, restauram, exibem as artes na Europa, mas a civiliza��o norte-americana n�o cria um grande pintor. Mais: os fil�sofos norte-americanos traduzem, editam, comentam e ensinam Heidegger, Wittgenstein ou Sartre, mas n�o criam uma metaf�sica importante.
Marx, Freud ou mesmo L�vi-Strauss s�o intelectuais que a cultura norte-americana nunca seria capaz de produzir. E, no entanto, nunca uma na��o no mundo atingiu o n�vel de prosperidade econ�mica que os Estados Unidos alcan�aram, enquanto a Europa esteve por duas vezes � beira do desastre no s�culo passado, se � que n�o viveu mesmo o desastre.
� por isso que Steiner aposta que, pelo menos em algumas �reas relevantes, a Am�rica, como diz sem perceber que abaixo do Rio Grande a Am�rica continua, n�o dever� dar t�o cedo contribui��es de primeira linha. Essas �reas, com certeza, s�o aquelas ligadas ao pensamento porque, em �reas como economia e tecnologia, n�o s�o poucas as universidades norte-americanas que exibem entre seus professores e ex-professores v�rios ganhadores do Pr�mio Nobel.
Mas � preciso ver, como diz Steiner, que a explos�o de excel�ncia que se deu nas ci�ncias puras e naturais � principalmente na f�sica � nos Estados Unidos entre 1938 e a d�cada de 1970 � conseq��ncia direta da persegui��o nazista e fascista, lembrando que essa pol�tica tresloucada levou para a Am�rica a comunidade mais bem aquinhoada, intelectualmente, desde a Atenas do s�culo cinco e o Renascimento em Floren�a: a classe m�dia judaica p�s-gueto da R�ssia, da Europa Central, da Alemanha e da It�lia. Quem se der ao trabalho de ler com aten��o os nomes dos norte-americanos ganhadores do Pr�mio Nobel vai descobrir que a maioria tem as suas origens ligadas � di�spora centro-europ�ia.
Imagine-se que n�o tivesse havido a chegada da intelligentsia judaica. Imagine-se que n�o tivessem existido os g�nios de Leningrado, Praga, Budapeste, Viena e Frankfurt na cultura norte-americana das �ltimas d�cadas. Imagine-se isso, e o que sobra da cultura americana? � pergunta Steiner. O que suceder� se n�o houver uma nova di�spora de excel�ncia?
Ele lembra que a pr�pria id�ia de uma intelligentsia, de uma minoria constitu�da por uma elite infectada pela lepra do pensamento abstrato, � radicalmente estranha �s circunst�ncias existenciais na Am�rica, preocupada apenas com o vil metal, comportamento que se alastra por osmose a toda a Am�rica hispano-portuguesa, como constatamos no dia-a-dia.
Por isso, para Steiner, n�o � nos �centros de cria��o liter�ria�, nas �oficinas de poesia�, nas colmeias financiadas por funda��es em meio aos esplendores do Colorado, da costa do Pac�fico ou nos bosques da Nova Inglaterra que devemos procurar o que h� de mais irresist�vel e de maior alcance nas artes e nas id�ias. Mas sim nos est�dios, nos caf�s, no semin�rios, na editoras, nos conjuntos de m�sica de c�mara e nos teatros itinerantes da Crac�via e de Budapeste, de Praga e Dresden.
Esses lugares, diz o pensador, s�o um manancial de talento, de ades�o incondicional aos riscos e fun��es da arte e do pensamento original, que vai suprir as gera��es do futuro. � bom dar ouvidos a Steiner. E olhar mais para a Europa Central e menos para Hollywood.
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