Atualizado em 21 de mar�o de 2004
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Ensaios e Artigos

A import�ncia do trigo nas rela��es Brasil-Argentina


Fernando Roberto de Freitas Almeida

Adequadamente, a integra��o regional que Brasil e Argentina perseguiram em diversos momentos de sua hist�ria, e que se tornou poss�vel ap�s 1985, come�ou com o trigo, com o Protocolo n� 2, assinado pelos ex-presidentes Sarney e Alfons�n. Al�m de s�mbolo do alimento nas culturas ocidentais, foi o produto que mais marcou o relacionamento comercial entre os dois pa�ses. O fato de a Argentina ter sido a maior vendedora para o Brasil a maior parte do s�culo XX teve enorme repercuss�o sobre os comportamentos de ambos, em situa��es diversas. O peso das transa��es do cereal garantiria a cada um deles presen�a de destaque das pautas respectivas de exporta��o e importa��o, o que freq�entemente impediu que tentativas de terceiros pa�ses de desestabilizar a regi�o, at� mesmo levando-os � guerra (como aconteceu em 1942), fossem frustradas.


A maneira como as opera��es argentino-brasileiras com o trigo expressaram sempre o contexto hist�rico sul-americano e internacional foi analisada em trabalho de pesquisa apresentado � Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em dezembro de 2001. Chama-se Do Gr�o ao P�o: o Trigo nas Rela��es entre o Brasil e a Argentina. Tratou-se ali de mostrar como as for�as profundas (conceito de dois estudiosos franceses, Renouvin e Duroselle), aquelas que se originam de fatores hist�ricos, econ�micos, culturais, geogr�ficos, demogr�ficos e outros atuaram no envolvimento das duas maiores economias sul-americanas.


Evidentemente, por serem pa�ses perif�ricos, tamb�m se teve de analisar os interesse dos EUA na regi�o. Afinal, as Am�ricas t�m como pot�ncia regional justamente a maior pot�ncia mundial e propostas como a da forma��o da �rea de Livre Com�rcio das Am�ricas s�o, de fato, muito antigas. Parece que alguns pa�ses do continente est�o-se esquecendo de porque, em outras ocasi�es, a proposta norte-americana foi recusada.


Interessa-nos a Argentina. Historicamente, ela vinculou-se profundamente ao Imp�rio Brit�nico, tornando-se uma col�nia informal, com a venda de carne e trigo para os ingleses. Era um celeiro privilegiado para o Imp�rio e, devido a isto, foi o pa�s que mais se beneficiou com a globaliza��o que ocorreu entre 1870 e 1930. Em 1914, o pa�s tinha 7,9 milh�es de habitantes e Buenos Aires 1,5 milh�o, 1/3 dos habitantes do pa�s tinha nascido no exterior e 80% da popula��o era de imigrantes e descendentes, que haviam chegado desde 1850. Sua renda per capita era igual � da Alemanha e dos Pa�ses Baixos e superior � da Espanha, It�lia, Su�cia e Su��a. Exceto centros comerciais como B�lgica e Holanda, ningu�m importava mais artigos per capita do que a Argentina e seu com�rcio exterior era maior do que o do Canad� e 1/4 do dos EUA. Surgiu, na �poca, na Fran�a, a express�o �rico como um fazendeiro argentino�.


Como isto aconteceu? Em grande medida, as condi��es naturais ajudaram, mas a era de ouro come�ou em 1880. Alguns anos antes, Sarmiento, presidente e senador, obcecado pela moderniza��o do pa�s com investimentos ingleses em ferrovias, tel�grafos, portos e frigor�ficos, e um reforma educacional, que garantiu educa��o para todos, havia dito que �nos dev�amos ser os Estados Unidos�. A seguir a vit�ria da Uni�o C�vica Radical, o primeiro partido de classe m�dia das Am�ricas, criado em 1891, na elei��o de 1916, garantiu as reformas pol�ticas de que o pa�s precisava. At� 1930, tudo foi bem. Ent�o, uma revolu��o restaurou o conservadorismo, enquanto, no Brasil, a Revolu��o de 1930 fazia o oposto, iniciando um ciclo de industrializa��o. Paralelamente, o Brasil tinha maiores rela��es econ�micas com os EUA, seu maior comprador de caf�, mas mantinha uma pol�tica de busca de um equil�brio pragm�tico entre pot�ncias europ�ias e os americanos.


Seguiram-se anos de instabilidade pol�tica, at� que um oficial de forma��o anti-liberal, Juan Domingo Per�n chegou ao poder, promovendo o aprofundamento de medidas intervencionistas deixadas por seus antecessores conservadores. Para os trabalhadores, um bom momento, com aumento de seu peso na economia e acesso ao bem-estar que o pa�s havia constru�do. Para o futuro, v�rios problemas. O cen�rio internacional alterou-se profundamente. Os EUA assumiram a hegemonia mundial e tornaram-se um centro de sistema competidor com tudo aquilo que a Argentina produzia e exportava. A Gr�-Bretanha declinou e a Europa foi aos poucos se afastando dos argentinos, principalmente quando deixaram manter uma agricultura muito dispendiosa � base de subs�dios, para produzir o que poderiam adquirir da Argentina. Resultado: pode-se considerar que o pa�s mais favorecido pela primeira globaliza��o, de 1880 a 1930, foi o mais prejudicado na segunda, que dura at� hoje. Como exemplo, pode-se citar que os argentinos eram o segundo maior exportador mundial de cereais em 1913, atr�s apenas da R�ssia (US$ 274,8 milh�es de receita dos russos, versus US$ 234,9 milh�es de nossos vizinhos) e passaram � terceira posi��o em 1953, atr�s dos EUA e do Canad� (com uma diferen�a abissal das receitas: EUA: US$ 1,03 bilh�o; Canad�: US$ 906,8 milh�es; Argentina: US$ 384 milh�es), conforme o trabalho Forty years on foreign trade, citado por Cardoso & Brignoli. (1)


Como resultado das pol�ticas econ�micas dos anos 40 e 50, as safras de cereais da Argentina eram muito inst�veis e o Brasil, ainda mais por desconfiar do projeto peronista de criar uma terceira via de desenvolvimento, nem capitalista nem socialista, acabou por assinar um acordo de compra de trigo com os americanos, sob as regras da Public Law 480 (pagamento em at� quarenta anos, com moeda nacional, de produto dos estoques do governo). Isto acarretou a perda gradual do mercado brasileiro e, a partir da�, muitos se perguntavam como � que pa�ses vizinhos, que poderiam ser complementares neste campo, estavam-se afastando, a ponto de o Brasil, al�m de estatizar a triticultura (Decreto-lei n� 167, de 1967), lan�ar um ambicioso projeto de auto-sufici�ncia em trigo.


A tabela ao lado (participa��o m�dia da Argentina e dos EUA nas importa��es de trigo (1902/13 a 1985/87) em porcentagem) mostra como evoluiu a participa��o de ambos os pa�ses nas importa��es brasileiras do cereal.

V�-se que a presen�a americana n�o cessa de crescer at� a segunda metade da d�cada de 80. No per�odo em quest�o justamente desenvolveu-se o emprego dos alimentos como uma arma eficiente nas rela��es internacionais. Houve, ent�o, aproxima��es e distanciamentos entre os interesses dos grandes Estados, notadamente dos EUA e da URSS, dos Estados perif�ricos e das empresas transnacionais atuantes no com�rcio mundial de cereais. Estas �ltimas s�o not�veis n�o apenas por seu porte, mas tamb�m por terem antecipado, de h� muito, as pr�ticas de descentraliza��o e efici�ncia administrativa que caracteriza as modernas empresas gigantes do mundo da globaliza��o tecnol�gica e financeira.


Atualmente, o abastecimento de trigo parece estar-se comportando dentro de seu padr�o hist�rico. Cerca de 3/4 do produto consumido s�o de proced�ncia estrangeira e, desses, 90% v�m da Argentina. � interessante que o fim do projeto brasileiro de auto-sufici�ncia em trigo acarretou muita perturba��o, com a manuten��o da agricultura empresarial competitiva, mas tamb�m nos primeiros instantes, a perman�ncia de produtores pouco tecnificados, que continuavam contando com o apoio do governo federal.


Transcorridos dezesseis anos dos primeiros protocolos, h� hoje no Brasil a impress�o de que os produtores nacionais podem-se expandir bem mais, ocupando maiores espa�os no mercado interno, como mostra o documento Estrat�gias para a Recupera��o da Triticultura, entregue ao secret�rio nacional de Pol�tica Agr�cola, em meados de janeiro �ltimo, por diversas entidades representativas da agricultura do pa�s. Contudo, os compromissos com a Argentina est�o, de fato, a formar uma unidade econ�mica maior e n�o se poder� esquecer que a complementariedade nesta �rea favorece a instala��o de uma cadeia alimentar binacional, de alto interesse estrat�gico.



Notas
(1) Hist�ria Econ�mica da Am�rica Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1979, 327 p.
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