Os desafios da destrui��o e conserva��o do patrim�nio cultural no Brasil * |
Pedro Paulo A. Funari
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Os desafios da destrui��o e conserva��o do patrim�nio cultural no Brasil s�o, provavelmente, pouco conhecidos do p�blico acad�mico portugu�s e este artigo visa apresentar alguns aspectos dessas quest�es aos estudiosos lusitanos. Antes de discutir a experi�ncia brasileira, cabe explorar os diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de �patrim�nio cultural�. As l�nguas rom�nicas usam termos derivadas do latim patrimonium para se referir � �propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma heran�a�. Os alem�es usam Denkmalpflege, �o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar�, enquanto o ingl�s adotou heritage, na origem restrita ��quilo que foi ou pode ser herdado� mas que, pelo mesmo processo de generaliza��o que afetou as l�nguas rom�nicas e seu uso dos derivados de patrimonium, tamb�m passou a ser usado como uma refer�ncia aos monumentos herdados das gera��es anteriores. Em todas estas express�es, h� sempre uma refer�ncia � lembran�a, moneo (em latim, �levar a pensar�, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alem�o, denken significa �pensar�) e aos antepassados, impl�citos na �heran�a�. Ao lado destes termos subjetivos e afetivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, h�, tamb�m, uma defini��o mais econ�mica e jur�dica, �propriedade cultural�, comum nas l�nguas rom�nicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma �propriedade�. Como a pr�pria defini��o de �propriedade� � pol�tica, �a propriedade cultural � sempre uma quest�o pol�tica, n�o te�rica�, ressaltava Carandini (1979, p.234).
H� n�o muito tempo, Joachim Hermann (1989, p.36) sugeriu que �uma consci�ncia hist�rica � estreitamente relacionada com os monumentos arqueol�gicos e arquitet�nicos e que tais monumentos constituem importantes marcos na transmiss�o do conhecimento, da compreens�o e da consci�ncia hist�rica�. N�o h� identidade sem mem�ria, como diz uma can��o catal�: �aqueles que perdem suas origens, perdem sua identidade tamb�m�(BALLART, 1997, p.43). Os monumentos hist�ricos e os restos arqueol�gicos s�o importantes portadores de mensagens e, por sua pr�pria natureza como cultura material, s�o usados pelos atores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferen�a �tnica. Dever�amos, entretanto, procurar encarar estes artefatos como socialmente constru�dos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e ahist�ricos, inspiradores, pois, de reflex�es, mais do que de admira��o (POTTER, [s.d.]). Uma abordagem antropol�gica do pr�prio patrim�nio cultural ajuda a desmascarar a manipula��o do passado (HAAS, 1996). A experi�ncia brasileira, a esse respeito, � muito clara: a manipula��o oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do patrim�nio, �, de forma constante, reinterpretada pelo povo. Como resumiu Ant�nio Augusto Arantes (1990, p.4): �o patrim�nio brasileiro preservado oficialmente mostra um pa�s distante e estrangeiro, apenas acess�vel por um lado, n�o fosse o fato de que os grupos sociais o reelaboram de maneira simb�lica�. Esses estratos s�o os exclu�dos do poder e, assim, da preserva��o do patrim�nio.
No Brasil, houve, sempre, uma falta de interesse, por parte dos arque�logos, em interagir com a sociedade em geral - como � o caso, na verdade, alhures na Am�rica Latina, como nota Gnecco (1995, p.19) - e o patrim�nio foi deixado para �escritores, arquitetos e artistas, os verdadeiros descobridores do patrim�nio cultural no Brasil, n�o historiadores ou arque�logos� (FUNARI, 1995). A preserva��o dos edif�cios de igrejas coloniais poderia ser considerado, no Brasil e no resto da Am�rica Latina (GARC�A, 1995, p.42), como o mais antigo manejo patrimonial. � interessante notar que a import�ncia da Igreja Cat�lica na coloniza��o ib�rica do Novo Mundo explica a escolha estrat�gica de se preservar esses edif�cios, sejam templos constru�dos sobre os restos de estruturas ind�genas (cf. o exemplo maia, em ALFONSO; GARC�A, [s.d.], p.5), sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na Am�rica portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes exce��es, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos �ltimos cem anos, de �progresso�, n�o por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclama��o da Rep�blica, em 1889, �ordem e progresso�. Desde ent�o, o pa�s tem buscado a modernidade e qualquer edif�cio moderno � considerado melhor do que um antigo. Houve muitas raz�es para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Bras�lia, em 1960, mas, quaisquer que tenham sido os motivos econ�micos, sociais ou geopol�ticos, apenas foi poss�vel porque havia um estado d�alma favor�vel � modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira n�o deveria ser os edif�cios hist�ricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade modern�ssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu patrim�nio, em benef�cio de uma cidade sem passado (FUNARI, a sair).
Talvez o exemplo mais claro dessa luta contra a lembran�a materializada seja S�o Paulo, essa megal�pole, cujo crescimento n�o encontra paralelos. Ainda que fundada em 1554, continuou a ser uma cidadezinha at� fins dos s�culo XIX, at� tornar-se, nestes �ltimos cem anos, a maior cidade do hemisf�rio sul. Nesse processo, restos antigos sofreram constantes degrada��es ideol�gicas e f�sicas, sendo constru�dos novos edif�cios para criar uma cidade completamente nova. Os edif�cios hist�ricos, se assim se pode falar, s�o a Catedral e o Parque Modernista do Ibirapuera, planejado por Niemeyer, ambos inaugurados em 1954 para comemorar os quatrocentos anos da cidade. Os principais pr�dios p�blicos, como o Pal�cio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado de S�o Paulo ou o Pal�cio Nove de Julho, que abriga a Assembl�ia Legislativa do Estado, s�o, tamb�m, muito recentes e a mais importante avenida, a Paulista, fundada em fins do s�culo XIX como um basti�o de mans�es aristocr�ticas, foi totalmente remodelada na d�cada de 1970. Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Patrim�nio da Humanidade, a modernidade est� sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont (1998, p.3) descreve esta situa��o com palavras fortes: �A dist�ncia entre as autoridades e o povo � a mesma daquela entre a sociedade civil e o passado, devido � falta de informa��o, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo para sua pr�pria sobreviv�ncia. Quem s�o os maiores inimigos da preserva��o dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar, a pr�pria administra��o municipal, n�o afetada pelos problemas sociais e ignorante das quest�es culturais em geral mas, �s vezes, os moradores tamb�m, inconscientes da import�ncia dos monumentos, contribuem para a deforma��o do quadro urbano. Novas janelas, antenas parab�licas, garagens, telhados e casas inteiras bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade moderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, como � o caso de tantas delas�.
� f�cil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso � infraestrutura moderna mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edif�cios medievais podem ser completamente reaparelhados, sem danificar os pr�dios, n�o haveria porque n�o faz�-lo no Brasil. Outra amea�a ao patrim�nio arqueol�gico das cidades coloniais � o roubo, j� que os ladr�es s�o muito atuantes, havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais coloniais (ROCHA, 1997; cf. um caso semelhante na Rep�blica Tcheca, CALABRESI, 1998). Um problema mais prosaico � a deteriora��o dos monumentos devido � falta de manuten��o e abrigo, mesmo no interior de edif�cios (LIRA, 1997; SEBASTI�O, 1998). Estes tr�s perigos para a manuten��o dos bens culturais, aparentemente n�o relacionados, revelam uma causa subjacente comum: a aliena��o da popula��o, o div�rcio entre o povo e as autoridades, a dist�ncia que separa as preocupa��es corriqueiras e o ethos e pol�ticas oficiais. Houve uma �pol�tica de patrim�nio que preservou a casa-grande, as igrejas barrocas, os fortes militares, as c�maras e cadeias como as refer�ncias para a constru��o de nossa identidade hist�rica e cultural e que relegou ao esquecimento as senzalas, as favelas e os bairros oper�rios� (FERNANDES, 1993, p.275).
Para o povo, h�, pois, um sentimento de aliena��o, como se sua pr�pria cultura n�o fosse, de modo algum, relevante ou digna de aten��o. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de �sobrados�, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habita��o, como as �casas� e �casebres�, �mocambos� (derivado do quimbundo, mukambu, �fileira�), �senzalas� (locais da escravaria), �favelas� (tug�rios) (REIS; FILHO, 1978, p. 28). O resultado de uma sociedade baseada na escravid�o, desde o in�cio houve sempre dois grupos de pessoas no pa�s, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja mem�ria e monumentos s�o dignos de rever�ncia e preserva��o e os vest�gios esqu�lidos dos subalternos, dignos de desd�m e desprezo. Como enfatizou o grande soci�logo brasileiro, Oct�vio Ianni (1988, p.83), o que se considera patrim�nio � a arquitetura, a m�sica, os quadros, a pintura e tudo o mais associado �s fam�lias aristocr�ticas e � camada superior em geral. A Catedral, freq�entada pela �gente de bem�, deve ser preservada, enquanto a Igreja de S�o Benedito, dos �pretos da terra�, n�o � protegida e �, com freq��ncia, abandonada. Os monumentos considerados como patrim�nio pelas institui��es oficiais, de acordo com Eunice Durham (1984, p.33), s�o aqueles relacionados � �hist�ria das classes dominantes, os monumentos preservados s�o aqueles associados aos feitos e � produ��o cultural dessas classes dominantes. A Hist�ria dos dominados � raramente preservada�.
Devemos concordar com Byrne (1991, p.275) quando afirma que � comum que os grupos dominantes usem seu poder para promover seu pr�prio patrim�nio, minimizando ou mesmo negando a import�ncia dos grupos subordinados, ao forjar uma identidade nacional � sua pr�pria imagem, mas o grau de separa��o entre os setores superiores e inferiores da sociedade n�o �, em geral, t�o marcado quanto no Brasil. Neste contexto, n�o � de surpreender que o povo n�o preste muita aten��o � prote��o cultural, sentida como se fora estrangeira, n�o relacionada � sua realidade. H� uma express�o no portugu�s do Brasil que demonstra, com clareza, esta aliena��o das classes: �eles, que s�o brancos, que se entendam�. Note-se que esta frase � usada tamb�m por brancos para se referirem �s autoridades em geral. A mesma dist�ncia afeta o patrim�nio, pois os edif�cios coloniais s�o considerados como �problema deles, n�o nosso�. Poder�amos dizer, assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destrui��o dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como um tipo de luta n�o apenas por melhores condi��es de vida, mas contra a pr�pria lembran�a do sofrimento secular dos subalternos.
O patrim�nio arqueol�gico stricto sensu poderia deixar de ser afetado por esta falta de interesse na preserva��o da cultura material da elite, na medida em que a arqueologia produz evid�ncia de ind�genas e dos humildes em geral (cf. TRIGGER, 1998, p.16). Entretanto, h� muitos fatores que inibem um engajamento ativo da gente comum na prote��o patrimonial. Em primeiro lugar, h� falta de informa��o e de educa��o formal sobre o tema. Ind�genas, africanos e pobres s�o raramente mencionados nas li��es de Hist�ria e, na maioria das vezes, as poucas refer�ncias s�o negativas, ao serem representados como pregui�osos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcan�ar a civiliza��o. Os �ndios eram considerados ferozes inimigos, dominados por s�culos e isso pleno iure. Em famoso debate, no in�cio do s�culo XX, Von Ihering, ent�o diretor do Museu Paulista, prop�s o exterm�nio dos �ndios Kaingangs que, segundo ele, estavam a atravancar o progresso do pa�s (SCHWARCZ, 1989, p.59) e, mesmo que tenha sido desafiado por outros intelectuais, principalmente do Museu Nacional do Rio de Janeiro, sua atitude era e ainda � muito sintom�tica da baixa estima dos ind�genas, mesmo na academia. Basta lembrar que o material ind�gena proveniente do oeste do Estado de S�o Paulo, coletado h� oitenta anos, � �poca de Von Ihering, apenas agora est� sendo exposto, gra�as a um projeto inovador da Universidade de S�o Paulo (CRUZ, 1997): antes tarde do que nunca!
Os negros, por sua parte, foram considerados como b�rbaros amea�adores ou, como disse, h� pouco, um eminente e renomado historiador brasileiro, Evaldo Cabral de Mello (LEITE, 1996): �N�o � poss�vel negar o que era o Quilombo dos Palmares: era uma rep�blica negra, foi destru�da e eu prefiro, para ser franco, que assim tenha sido. Por uma raz�o muito simples. Se Palmares tivesse sobrevivido, ter�amos no Brasil um Bantust�o, um Estado independente e sem sentido�. Assim, um importante historiador ainda se sente amea�ado pelos negros e parece mirar-se em Cat�o: delenda Palmares! Ser capaz de dizer tais disparates ex cathedra revela muito sobre a doutrina��o, cheia de preconceitos que, de uma outra ou de outra maneira, acaba por atingir o pr�prio povo (FUNARI, 1996A, p.150 et passim).
Por fim, mas n�o menos importante, h� uma falta de comunica��o entre o mundo acad�mico, em particular a comunidade arqueol�gica, e o povo. Os arque�logos deveriam agir com a comunidade, n�o para ela (R�SSIO, 1984, p.60), dando ao povo uma melhor compreens�o do passado e do mundo (HUDSON, 1994, p.55). Para atingir esses objetivos, pesquisas de largo f�lego n�o deveriam levar � divers�o (DURRANS 1992: 13), mas � integra��o de processos, como � o resgate de edif�cios hist�ricos e a escava��o de s�tios arqueol�gicos, e produtos, como a publica��o do trabalho cient�fico por meio de diferentes m�dias (MERRIMAN, 1996, p.382). Um bom exemplo � o destino de um s�tio arqueol�gico particularmente importante no Brasil: o quilombo do s�culo XVII, conhecido como Palmares. Desde a d�cada de 1970, come�ou-se a suspeitar que o famoso quilombo, que resistiu por quase um s�culo ao sistema escravista, se localizava no interior do Estado de Alagoas, na Serra da Barriga. Ativistas negros encontraram restos de superf�cie na colina e conseguiram, depois de uma campanha sem precedentes, fazer com que as autoridades declarassem a �rea patrim�nio nacional, em 1985. Contudo, devido ao pouco caso do establishment arqueol�gico, controlado por for�as conservadoras ligados ao regime militar (FUNARI, 1995b, p.238-245), o s�tio ficou nas m�os das autoridades locais. O resultado foi o uso de tratores para nivelar uma parte importante do s�tio, o que permitiu que as autoridades promovessem festas e, desta forma, conseguissem o apoio eleitoral.
No in�cio da d�cada de 1990, quando o trabalho arqueol�gico come�ou na Serra, um dos principais objetivos foi atuar com a comunidade local e com os ativistas negros, de modo que se pudesse compreender o s�tio e sua import�ncia e se pudesse almejar, para o lugar, mais do que o destino de local de festas. O poder obtido por aqueles que est�o, normalmente, exclu�dos dos processos de decis�o (JONEs, 1993, p.203) seria apenas poss�vel por meio da divulga��o cient�fica e na m�dia da pesquisa arqueol�gica. Nos �ltimos anos, os arque�logos encarregados do estudo do s�tio, Charles E. Orser Jr. (1992;1993;1994;1996) e este autor (FUNARI, 1991; 1994a; 1995a; 1995c; 1996a; 1996b; 1996c; 1996e; 1996f; ORSER; FUNARI, 1992) publicaram tr�s livros, integral ou parcialmente, dedicados a Palmares, mais de dez artigos cient�ficos em revistas acad�micas brasileiras e estrangeiras, assim como Scott Allen (1997; 1999) produziu um mestrado e um doutorado sobre o s�tio, al�m de estudo de Michael Rowlands (1999), a partir do mesmo s�tio. Al�m disso, diversos artigos em revistas e jornais, tanto no Brasil como no exterior, foram publicados. � prov�vel que isto n�o seja suficiente para mudar, de forma radical, a atitude subjetiva dos brasileiros comuns para com essas evid�ncias humildes de um quilombo, pois o contexto mais amplo no Brasil n�o seria alterado por uma atividade acad�mica isolada, mas, mesmo assim, muito mais gente, agora, sabe da exist�ncia do s�tio e de sua poss�vel import�ncia.
De fato, quinze anos atr�s, no final do regime militar, Olympio Serra (1984, p.108) prop�s uma interpreta��o ousada de Palmares, como um poss�vel modelo de sociedade n�o-autorit�ria: �deveria ser poss�vel recriar a experi�ncia de uma sociedade pluralista, como era a Rep�blica de Palmares. E se voc� olha esta mais atraente fase da Hist�ria do Brasil, vai ver que, em Palmares, n�o havia apenas negros, mas tamb�m �ndios, judeus, em outras palavras, todos os discriminados pela ordem colonial, todos que eram diferentes�. Alguns anos depois, o trabalho arqueol�gico na Serra da Barriga produziu evid�ncia material que pode substanciar esta abordagem humanista. Palmares deve seu crescimento, sobreviv�ncia e destrui��o ao papel que teve no com�rcio entre a costa e o interior, pois os interesses mercantis e Palmares se opunham �queles da nobreza e dos latifundi�rios, que triunfaram, ao fim, devido � for�a dos grupos nobili�rquicos, em Portugal e na col�nia. A destrui��o desta tend�ncia pluralista explica a persist�ncia de um discurso racista e elitista, j� mencionado, e o trabalho arqueol�gico de resgate da cultura material do quilombo, assim como sua preserva��o como patrim�nio cultural, passa a ter um papel n�o desprez�vel na promo��o de uma consci�ncia cr�tica, dentro e fora do mundo acad�mico.
No Brasil, o cuidado do patrim�nio sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades t�m sido tanto m�opes como ineficazes. Edif�cios de alto estilo arquitet�nico, protegidos por lei, s�o deixados nas m�os do mercado e o com�rcio ilegal de obras de arte � amplamente tolerado. Recentemente, Christie�s vendeu uma obra-prima de Aleijadinho (BLANCO, 1998a; 1998b). A imprensa est� sempre a noticiar a respeito, sem que se fa�a algo a respeito (cf. LEAL, 1998; VERZIGNASSE, 1998; WERNECK, 1998). Arque�logos de boa cepa n�o escondem sua liga��o com antiqu�rios (e.g. LIMA, 1995). A gente comum sente-se alienada tanto em rela��o ao patrim�nio erudito quanto aos humildes vest�gios arqueol�gicos, j� que s�o ensinados a desprezar �ndios, negros, mesti�os, pobres, em outras palavras, a si pr�prios e a seus antepassados. Neste contexto, a tarefa acad�mica a confrontar os arque�logos e aqueles encarregados do patrim�nio, no Brasil, � particularmente complexa e contradit�ria. Devemos lutar para preservar tanto o patrim�nio erudito, como popular, a fim de democratizar a informa��o e a educa��o, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como acad�micos e como cidad�os, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, dever�amos buscar o conhecimento cr�tico sobre nosso patrim�nio comum. E isto n�o � uma tarefa f�cil.
Notas
* Texto publicado em Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Porto, 41, �, 2001, p. 23-32.
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Agradecimentos
Agrade�o a diversos colegas, que contribu�ram de diferentes maneiras, para que este artigo fosse escrito: Scott Allen, Jopep Ballart, Brian Durrans, Juan Manuel Garc�a, Si�n Jones, V�tor Oliveira Jorge, Robert Layton, Charles E. Orser, Jr., Parker Potter, Michael Rowlands, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. A responsabilidade pelas id�ias restringe-se ao autor. Devo mencionar, ainda, os apoios institucionais do Congresso Mundial de Arqueologia, Instituto de Arqueologia (Londres), CNPq, Universidade de Barcelona e Universidade Estadual de Campinas.
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