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Livro: Oliver Cromwell: uma vida
Autora: Antonia Fraser
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 738
Cromwell, al�m do bem e do mal

Wilson Coutinho

Os irlandeses cat�licos o detestam, porque quando em guerra em suas terras n�o teve d� nem piedade em massacr�-los. Freud o admirava. Deu a um dos seus filhos o seu nome porque na Inglaterra Oliver Cromwell, o l�der da revolu��o de 1648, deixou os judeus livres. Lorde Protetor - seu �ltimo t�tulo, que na pr�tica equivalia em poder ao de um rei absolutista - foi amado e odiado na mesma medida e paix�o. Regicida, p�s no cepo a cabe�a de seu rei, Carlos I. Ditador, fechou a C�mara dos Comuns, junto com um punhado de fi�is soldados. Com ele, a aristocr�tica e esnobe C�mara dos Lordes deixou de existir.
Para muitos de seus detratores foi um insens�vel iconoclasta. Queimando imagens religiosas e arrasando templos cat�licos, alguns deles preciosas obras de arte. Proibiu a m�sica nas missas e ostenta��o de riqueza em suas cerim�nias. Para muitos, deixou toda a cidade de Londres t�o sombria quanto o beco, onde Jack, o Estripador, tempos depois atacaria suas v�timas, deixando os habitantes da cidade amedrontados em casa.
Para muitos outros, o republicano Cromwell deu � Inglaterra a modernidade do poder constitucional. Com a Restaura��o, o rei viu-se diante do problema de reinar, mas n�o governar. Deus e Diabo na terra do T�misa, morreu tranq�ilamente em sua cama em 1658, aos 59 anos, v�tima das conseq��ncias da mal�ria, adquirida nos lamacentos campos de batalha. J� o seu cad�ver, com o reinado de Carlos II, o filho do rei decepado, teve um l�gubre destino.
Dois anos depois de sua morte, o Parlamento exumou o corpo do ditador e julgou o cad�ver. Foi considerado culpado. Puseram seus restos mortais na forca, cortaram-lhe a cabe�a com oito golpes, arrancaram-lhe os dedos das m�os, dos p�s e uma orelha. Sua cabe�a ficou decompondo-se num poste de carvalho durante 24 anos. A lenda narra que foi parar nas m�os de um ator, que recitou com ela o mon�logo de "Hamlet", de Shakespeare. Esteve nos arm�rios de um antiqu�rio e hoje, sup�e-se, repousa num lugar mantido com sigilo em Sidney Sussex College, em Cambridge, onde Cromwell estudou. O resto do seu corpo tem destino ignorado.
Quem conta estas hist�rias � Lady Antonia Fraser, casada com o dramaturgo Harold Pinter, famosa nos anos Thatcher por organizar festinhas com intuito de arrecadar fundos para campanhas contra a Dama de Ferro. Lady Fraser pode ser da "esquerda festiva". �, por�m, historiadora de alta erudi��o. O seu "Oliver Cromwell" n�o se resume a um livro de anedotas. Expande-se em pesquisas de documentos, examina a complexa Hist�ria do per�odo - a primeira revolu��o moderna no mundo antecipando a Francesa - explica os motivos da guerra civil, os dilemas jur�dicos do julgamento do Rei, legalmente sempre problem�ticos. Mary Stuart, por exemplo, foi decapitada n�o como desafiadora do trono da Inglaterra, mas rainha da Esc�cia. A consci�ncia da durona Elisabeth I, mesmo assim, pesou o tempo todo.
Lady Fraser, como se fosse uma estrategista militar, monta as batalhas vencidas e perdidas pelo revolucion�rio e procura desvendar a complexa personalidade do homem que at� hoje � uma esp�cie de navalha apontada para a garganta da monarquia. O almirante Nelson, o vencedor da batalha de Trafalgar, paira num alto pedestal no Centro de Londres. Cromwell � mais popular por aparecer como um fantasma numa taverna, onde alega-se que seu cad�ver ficou um tempo antes de ser jogado no T�misa.
L�der puritano da Revolu��o, Cromwell achava-se semelhante ao rei Davi, que estava arando as terras, quando foi chamado para lutar. � uma fantasia b�blica. Ele ingressou, jovem, no Parlamento, fazendo parte da ala puritana. Pequeno nobre (os inimigos o chamavam de cervejeiro, pois um ramo de sua fam�lia vendia a bebida), odiava pagar impostos ao rei e detestava seu anglicanismo, temeroso da Coroa fenecer � sombra do Papa. � verdade que n�o foi militar de profiss�o. O que fez, por�m, superou qualquer general formado em escolas. Inventou um ex�rcito, que atacava e defendia-se de forma coesa, novidade no tempo em que uma das galanterias dos oficiais na guerra era, at� nas batalhas, divertir-se com os cavalos. Pareciam participantes de uma prova de hipismo.
Lady Fraser o compara a Napole�o e a Wellington, que derrotou o primeiro em Waterloo. Sua fama n�o foi maior porque, segundo ela, Cromwell lutou apenas no territ�rio brit�nico. Outra novidade do militar puritano foi ter criado um ex�rcito, cujos recrutas seguiam sua doutrina, atacando escoceses e irlandeses, ao c�ntico de vers�culos dos salmos. Pode-se julgar que eram fan�ticos e, se o chefe exigia, impiedosos. Cromwell n�o foi homem de leituras. Segundo um dos seus contempor�neos, sabia "ler os homens", o que talvez fosse natural para um pol�tico que deteve o poder absoluto. S� na apar�ncia seu Governo foi obscurantista. A m�sica, interditada nas missas, vingou nos sal�es e os bailes oferecidos por ele, que passaram a ser disputados. O poeta John Milton, um dos maiores da l�ngua inglesa, autor de o "Para�so perdido", foi seu amigo e partid�rio. Sonhou alto quando imaginou a reforma do ensino, s� atingida neste s�culo na Inglaterra.
Homem contradit�rio, contabilizava para a Provid�ncia suas vit�rias, embora tivesse o bom senso de considerar um bom ex�rcito aquele com botas confort�veis, cobertores e soldos em dia. No poder, embora fosse frugal, n�o abriu m�o dos pal�cios e fez quest�o que o penico real, ornado de veludo vermelho, tamb�m lhe servisse. Botava suas mordomias no custo do simbolismo do cargo. Se o seu ex�rcito foi chamado de "cabe�as redondas" - gente do povo que usava os cabelos cortados para se diferenciar das melenas longas dos cortes�os - Cromwell jamais ousou pedir ao barbeiro que cortasse as suas. Nos seus retratos, al�m do narig�o, t�pico de s�tiras de seus inimigos, sua cabeleira desceu sempre at� os ombros.
Revolu��o que abalou a Europa, seu fundo religioso foi o seu lado "antimoderno", embora o Lorde Protetor aceitasse cren�as como a batista - considerada, na �poca, pr�xima ao anarquismo - e sua f� n�o necessitasse de hierarquias. Deus podia ser um bate-papo com a sua alma. Quando mandou decepar o rei, al�m da gargalhada nervosa, considerou para a paz de sua consci�ncia que fora vontade de Deus.
Como pol�tico revolucion�rio lembra quase todos. Atacou a direita e a esquerda, esta representada pelos diggers, defensores de um tipo de comunismo, pregadores da aboli��o de qualquer forma de propriedade privada. Estadista, p�s a marinha inglesa tinindo, pelo fato de que o pa�s necessitava dos mares. Sonhador, quando deprimido, imaginava-se na Am�rica como qualquer peregrino defensor da liberdade religiosa. Foram procurar descendentes seus l�. Encontram muitos Cromwells negros, ex-escravos que dedicaram esta homenagem � sua curta rep�blica.
Piedoso e impiedoso, Cromwell, pouco conhecido entre n�s, mudou a Inglaterra. Continua um dilema hist�rico para os ingleses. Lady Fraser, mulher de esquerda, escreveu uma monumental e excelente biografia, sem tomar partido, aceitando a ambig�idade hist�rica do grande homem, como � a maneira que seu pa�s costuma ver o l�der, aquele que recusou, no final da vida, a coroa real, mas, como um rei, deixou que o filho, Richard, governasse, como se pretendesse uma dinastia. Estudo importante sobre a revolu��o que julgou, por meio do Parlamento, um rei, fica, tamb�m para os que gostam da mal�cia da Hist�ria, um pouco de li��o sobre os altos e baixos dos andares do servi�o p�blico. O carrasco para decapitar o rei recebeu um pouco mais de dois shillings e seis pence de di�ria. J� para criar o novo selo da Rep�blica, o gravador Thomas Simon, que fora pensionista de Carlos I, embolsou duzentas libras.
O Globo 30/09/2000