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Livro: A imagem de Jesus ao longo dos s�culos
Autor: Jaroslav Pelikan
Editora: Cosac & Naify
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 253
Livro analisa como cada �poca idealizou Jesus
Autor reflete sobre o "caleidosc�pio ideol�gico" que se criou em torno do personagem

Maria Hirszman

Se Deus criou o Homem a sua semelhan�a, o Homem tem buscado, ao longo de sua exist�ncia, encontrar a verdadeira representa��o do divino, obtendo muitas vezes um reflexo do momento hist�rico em que se encontra. O livro A imagem de Jesus ao longo dos s�culos, do historiador norte-americano Jaroslav Pelikan, reconstitui essa hist�ria em largas pinceladas e mostra como � rico e diversificado o "caleidosc�pio ideol�gico" que a humanidade criou em torno da figura do filho de Deus.
Uma das caracter�sticas mais atraentes da publica��o � o cuidadoso levantamento iconogr�fico que o acompanha. O casamento entre as imagens filos�ficas, hist�ricas e religiosas de Cristo e as centenas de obras de arte selecionadas para acompanhar o texto � extremamente enriquecedor. Assim como o texto, elas n�o foram organizadas a partir de crit�rios cronol�gicos ou tem�ticos, mas sim da preocupa��o em refor�ar a argumenta��o te�rica.
A obra, que nasceu como curso ministrado por Pelikan na Yale University, foi publicada originalmente em 1985 nos Estados Unidos com apenas uma ilustra��o por cap�tulo. Mas com a ajuda da pesquisadora Judy Metro, que trabalha na National Gallery e que viu como a obra se prestava a esse trabalho de ilustra��o, Pelikan passou dez anos selecionando entre milhares de imagens quais seriam adequadas para sua obra. O resultado foi The Ilustrated Jesus throught the Centuries, lan�ado nos EUA em 1997 e agora traduzido para o portugu�s pela editora Cosac & Naify.
Renomado historiador, Pelikan tem um vasto trabalho sobre a hist�ria das religi�es, notadamente a obra em cinco volumes The Christian Tradition, na verdade a matriz te�rica de A Imagem de Jesus. Segundo ele, este � o "livro que sempre quis escrever"."N�o pude ignorar o impacto da Igreja na cultura, na pol�tica e na arte", afirmou o escritor, em entrevista por telefone, para explicar por que resolveu buscar na filosofia, na literatura, na pintura e em outras formas de express�o cultural e art�stica as v�rias acep��es em torno de Jesus.
N�o � tarefa f�cil resumir a hist�ria de 2 mil anos em apenas 253 p�ginas (metade das quais s�o apenas para ser vistas). H� in�meras refer�ncias que exigem uma certa forma��o b�sica, sem a qual fica dif�cil prosseguir. A decis�o de n�o seguir crit�rios cronol�gicos ou geogr�ficos dificulta um pouco a leitura. Mas mesmo ignorando passagens hist�ricas e religiosas importantes � poss�vel tirar grande prazer dessa leitura.
M�ltiplas facetas - Os t�tulos dos cap�tulos j� evidenciam a estrutura da obra. Em cada um deles � analisado uma faceta de Jesus, colocada em destaque num determinado momento hist�rico. Verdadeiro, humano, mestre, rei s�o alguns dos adjetivos e atributos usados para defini-lo ao longo dos dois �ltimos mil�nios e que carregam consigo uma bagagem de informa��es bem maior do que se poderia supor inicialmente.
O primeiro t�pico do livro n�o poderia deixar de ser O Rabi. A palavra aramaica, que significa mestre, remete � inquestion�vel origem judaica de Jesus e ao fato de "as primeiras tentativas de compreender sua mensagem terem ocorrido no contexto do juda�smo". Nesse contexto, ele � visto como o profeta (chegando a ser identificado pelo isl� como precursor de Maom�), o filho de Deus que o enviou ao mundo e ofereceu em sacrif�cio, como havia feito Abra�o.
Simbolizando essa vis�o do sacrif�cio divino, h� a dram�tica gravura O Sacrif�cio de Isaac, de Lovis Corinth (1920), segundo Rembrandt, que sugere com toda a intensidade o momento em que Deus ret�m a m�o de Abra�o prestes a decapitar o filho. As refer�ncias � origem de Jesus v�o sendo atenuadas com o tempo, para come�ar a ser redescoberto apenas recentemente. "N�o se pode considerar a t�pica de Jesus como Rabi, ignorando a hist�ria subseq�ente da rela��o entre o povo a que Jesus pertencia e o povo que pertence a Jesus", escreve Pelikan.
Elegendo como uma das principais obras do livro a tela A Crucifica��o Amarela, pintada por Marc Chagall em 1943 e na qual Jesus aparece com o pergaminho e usando os filact�lios e as tiras de ora��es judaicas, ele se pergunta: "Teria havido tanto anti-semitismo, tantos pogroms, Auschwitz, se todas as igrejas crist�s e todo lar crist�o houvessem focalizado a devo��o pelas imagens de Maria, n�o s� na qualidade de M�e de Deus e Rainha dos C�us, mas tamb�m na de mo�a judia e Nova M�riam, e reverenciado os �cones de Cristo n�o s� como o Cristo C�smico, mas tamb�m como o Rabi Jesus de Nazar�, o Filho de Davi, que veio redimir um Israel cativo e uma humanidade cativa?"
Temos a� um belo libelo � liberdade religiosa por parte de um autor que disse n�o pretender usar seu livro como um tratado pol�tico.
E o texto segue obedecendo uma l�gica de aula, sem grandes mergulhos, mas repleto de lances curiosos, como a compara��o de Cristo com grandes figuras da antiguidade como S�crates ou o her�i de Homero. Segundo o te�logo crist�o grego Clemente de Alexandria, a cruz seria como o mastro em que Odisseu foi atado para evitar o canto tentador das sereias e "vencendo as for�as malignas do dem�nio".
No quarto cap�tulo, O Rei dos Reis, o autor analisa a import�ncia pol�tica da Igreja cat�lica e do uso da no��o da realeza de Jesus como pe�a fundamental de estratagemas pol�ticos de v�rios imp�rios, convencidos que seu poder vinha diretamente de Deus.
Para que o lado mais humano de Jesus passasse a ocupar o centro das aten��es foi necess�rio ressaltar anteriormente suas caracter�sticas divinas. Assim como Ad�o (cuja imagem mais simb�lica � a criada por Michelangelo no teto da Capela Sistina), ele foi criado � imagem e semelhan�a de Deus. Ali�s, s�o fascinantes as aproxima��es entre os dois personagens ao longo da hist�ria da arte. V�rias imagens associam as �rvores da vida com a �rvore do jardim do �den. E em diferentes trabalhos, como A Grande Paix�o, de Albrecht D�rer, h� a men��o de que a cruz de Jesus foi erguida, no monte G�lgota, exatamente no lugar em que se encontrava o cr�nio de Ad�o.
Arte religiosa - Um dos cap�tulos mais interessantes do livro � aquele dedicado ao conflito entre os iconoclastas (contr�rios � utiliza��o da imagem divina) e os defensores da arte religiosa. Nos dez mandamentos, h� a interdi��o expl�cita � idolatria. "N�o far�s para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe l� em cima, nos c�us, ou embaixo na terra, ou nas �guas que est�o debaixo da terra."
Alguns cat�licos de primeira gera��o chegaram a protestar contra o uso da arquitetura, afirmando que "n�o existiam �dolos nem lugares sagrados". E a �nica imagem de Cristo aceita pelos iconoclastas era a eucaristia. Mas argumentando que foi o pr�prio Deus o inventor das imagens do universo, os defensores dos �cones - entre eles o grego Jo�o de Damasco - abriram as portas para que fosse poss�vel o impressionante florescimento da arte religiosa que durou quase 15 s�culos.
Nem s� o estilo, a t�cnica e os motivos variaram ao longo deste per�odo.
Pode-se dizer que algumas imagens predominaram em determinados per�odos em decorr�ncia de fatores hist�ricos ou filos�ficos. A humaniza��o da figura de Cristo, por exemplo, ganhou um vigor impressionante com S�o Francisco de Assis. "Na opini�o de alguns historiadores de arte e da espiritualidade, a cruz, assim como o pres�pio, deve sua popularidade � devo��o de Francisco", escreve Pelikan como legenda de uma bela pintura de Guido Reni representando o santo olhando com profunda devo��o para uma pequena mas impressionante e comovente imagem de Cristo na cruz.
O sofrimento de Jesus e seu lado humano renderam algumas das mais belas imagens da arte e da literatura, como o genial Os Irm�os Karamazov, de Dostoievski, ou a terr�vel tela G�lgota, de Edvard Munch, que esteve em S�o Paulo na �ltima Bienal, e na qual Cristo aparece como �m� de todas as trag�dias e dramas humanos.
E seu exemplo est� na origem de movimentos de contesta��o pol�tica como a luta pela independ�nca da �ndia liderada por Ghandi ou a defesa dos direitos dos negros, simbolizada por Martin Luther King (n�o � toa ambos foram assassinados), mostrando que, apesar da influ�ncia cada vez menor das igrejas, a import�ncia de seu exemplo e de tudo que ele simboliza s� tende a aumentar.
Afinal, como conclui o crist�o ortodoxo Pelikan, "a unidade e a variedade de retratos de Jesus ao longo dos S�culos demonstram que nele existe mais do que s�o capazes de sonhar a filosofia e a cristologia dos te�logos".
Estado de S�o Paulo 24/09/2000