Autor reflete sobre o "caleidosc�pio
ideol�gico" que se criou em torno do personagem
Maria Hirszman
Se Deus criou o Homem a sua semelhan�a, o Homem tem buscado, ao longo de sua
exist�ncia, encontrar a verdadeira representa��o do divino, obtendo muitas
vezes um reflexo do momento hist�rico em que se encontra. O livro A imagem de Jesus ao longo dos
s�culos, do historiador norte-americano
Jaroslav Pelikan, reconstitui essa hist�ria em largas pinceladas e mostra como
� rico e diversificado o "caleidosc�pio ideol�gico" que a
humanidade criou em torno da figura do filho de Deus.
Uma das caracter�sticas mais atraentes da publica��o � o cuidadoso
levantamento iconogr�fico que o acompanha. O casamento entre as imagens filos�ficas,
hist�ricas e religiosas de Cristo e as centenas de obras de arte selecionadas
para acompanhar o texto � extremamente enriquecedor. Assim como o texto, elas n�o
foram organizadas a partir de crit�rios cronol�gicos ou tem�ticos, mas sim da
preocupa��o em refor�ar a argumenta��o te�rica.
A
obra, que nasceu como curso ministrado por Pelikan na Yale University, foi
publicada originalmente em 1985 nos Estados Unidos com apenas uma ilustra��o
por cap�tulo. Mas com a ajuda da pesquisadora Judy Metro, que trabalha na
National Gallery e que viu como a obra se prestava a esse trabalho de ilustra��o,
Pelikan passou dez anos selecionando entre milhares de imagens quais seriam
adequadas para sua obra. O resultado foi The Ilustrated Jesus throught the
Centuries, lan�ado nos EUA em 1997 e agora traduzido para o portugu�s pela
editora Cosac & Naify.
Renomado
historiador, Pelikan tem um vasto trabalho sobre a hist�ria das religi�es,
notadamente a obra em cinco volumes The Christian Tradition, na verdade a matriz
te�rica de A Imagem de Jesus. Segundo ele, este � o "livro que sempre
quis escrever"."N�o pude ignorar o impacto da Igreja na cultura, na
pol�tica e na arte", afirmou o escritor, em entrevista por telefone, para
explicar por que resolveu buscar na filosofia, na literatura, na pintura e em
outras formas de express�o cultural e art�stica as v�rias acep��es em torno
de Jesus.
N�o
� tarefa f�cil resumir a hist�ria de 2 mil anos em apenas 253 p�ginas
(metade das quais s�o apenas para ser vistas). H� in�meras refer�ncias que
exigem uma certa forma��o b�sica, sem a qual fica dif�cil prosseguir. A
decis�o de n�o seguir crit�rios cronol�gicos ou geogr�ficos dificulta um
pouco a leitura. Mas mesmo ignorando passagens hist�ricas e religiosas
importantes � poss�vel tirar grande prazer dessa leitura.
M�ltiplas
facetas - Os t�tulos dos cap�tulos j� evidenciam a estrutura da obra. Em cada
um deles � analisado uma faceta de Jesus, colocada em destaque num determinado
momento hist�rico. Verdadeiro, humano, mestre, rei s�o alguns dos adjetivos e
atributos usados para defini-lo ao longo dos dois �ltimos mil�nios e que
carregam consigo uma bagagem de informa��es bem maior do que se poderia supor
inicialmente.
O
primeiro t�pico do livro n�o poderia deixar de ser O Rabi. A palavra aramaica,
que significa mestre, remete � inquestion�vel origem judaica de Jesus e ao
fato de "as primeiras tentativas de compreender sua mensagem terem ocorrido
no contexto do juda�smo". Nesse contexto, ele � visto como o profeta
(chegando a ser identificado pelo isl� como precursor de Maom�), o filho de
Deus que o enviou ao mundo e ofereceu em sacrif�cio, como havia feito Abra�o.
Simbolizando
essa vis�o do sacrif�cio divino, h� a dram�tica gravura O Sacrif�cio de
Isaac, de Lovis Corinth (1920), segundo Rembrandt, que sugere com toda a
intensidade o momento em que Deus ret�m a m�o de Abra�o prestes a decapitar o
filho. As refer�ncias � origem de Jesus v�o sendo atenuadas com o tempo, para
come�ar a ser redescoberto apenas recentemente. "N�o se pode considerar a
t�pica de Jesus como Rabi, ignorando a hist�ria subseq�ente da rela��o
entre o povo a que Jesus pertencia e o povo que pertence a Jesus", escreve
Pelikan.
Elegendo
como uma das principais obras do livro a tela A Crucifica��o Amarela, pintada
por Marc Chagall em 1943 e na qual Jesus aparece com o pergaminho e usando os
filact�lios e as tiras de ora��es judaicas, ele se pergunta: "Teria
havido tanto anti-semitismo, tantos pogroms, Auschwitz, se todas as igrejas
crist�s e todo lar crist�o houvessem focalizado a devo��o pelas imagens de
Maria, n�o s� na qualidade de M�e de Deus e Rainha dos C�us, mas tamb�m na
de mo�a judia e Nova M�riam, e reverenciado os �cones de Cristo n�o s� como
o Cristo C�smico, mas tamb�m como o Rabi Jesus de Nazar�, o Filho de Davi,
que veio redimir um Israel cativo e uma humanidade cativa?"
Temos
a� um belo libelo � liberdade religiosa por parte de um autor que disse n�o
pretender usar seu livro como um tratado pol�tico.
E
o texto segue obedecendo uma l�gica de aula, sem grandes mergulhos, mas repleto
de lances curiosos, como a compara��o de Cristo com grandes figuras da
antiguidade como S�crates ou o her�i de Homero. Segundo o te�logo crist�o
grego Clemente de Alexandria, a cruz seria como o mastro em que Odisseu foi
atado para evitar o canto tentador das sereias e "vencendo as for�as
malignas do dem�nio".
No
quarto cap�tulo, O Rei dos Reis, o autor analisa a import�ncia pol�tica da
Igreja cat�lica e do uso da no��o da realeza de Jesus como pe�a fundamental
de estratagemas pol�ticos de v�rios imp�rios, convencidos que seu poder vinha
diretamente de Deus.
Para
que o lado mais humano de Jesus passasse a ocupar o centro das aten��es foi
necess�rio ressaltar anteriormente suas caracter�sticas divinas. Assim como Ad�o
(cuja imagem mais simb�lica � a criada por Michelangelo no teto da Capela
Sistina), ele foi criado � imagem e semelhan�a de Deus. Ali�s, s�o
fascinantes as aproxima��es entre os dois personagens ao longo da hist�ria da
arte. V�rias imagens associam as �rvores da vida com a �rvore do jardim do �den.
E em diferentes trabalhos, como A Grande Paix�o, de Albrecht D�rer, h� a men��o
de que a cruz de Jesus foi erguida, no monte G�lgota, exatamente no lugar em
que se encontrava o cr�nio de Ad�o.
Arte
religiosa - Um dos cap�tulos mais interessantes do livro � aquele dedicado ao
conflito entre os iconoclastas (contr�rios � utiliza��o da imagem divina) e
os defensores da arte religiosa. Nos dez mandamentos, h� a interdi��o expl�cita
� idolatria. "N�o far�s para ti imagem esculpida de nada que se
assemelhe ao que existe l� em cima, nos c�us, ou embaixo na terra, ou nas �guas
que est�o debaixo da terra."
Alguns
cat�licos de primeira gera��o chegaram a protestar contra o uso da
arquitetura, afirmando que "n�o existiam �dolos nem lugares
sagrados". E a �nica imagem de Cristo aceita pelos iconoclastas era a
eucaristia. Mas argumentando que foi o pr�prio Deus o inventor das imagens do
universo, os defensores dos �cones - entre eles o grego Jo�o de Damasco -
abriram as portas para que fosse poss�vel o impressionante florescimento da
arte religiosa que durou quase 15 s�culos.
Nem
s� o estilo, a t�cnica e os motivos variaram ao longo deste per�odo.
Pode-se
dizer que algumas imagens predominaram em determinados per�odos em decorr�ncia
de fatores hist�ricos ou filos�ficos. A humaniza��o da figura de Cristo, por
exemplo, ganhou um vigor impressionante com S�o Francisco de Assis. "Na
opini�o de alguns historiadores de arte e da espiritualidade, a cruz, assim
como o pres�pio, deve sua popularidade � devo��o de Francisco", escreve
Pelikan como legenda de uma bela pintura de Guido Reni representando o santo
olhando com profunda devo��o para uma pequena mas impressionante e comovente
imagem de Cristo na cruz.
O
sofrimento de Jesus e seu lado humano renderam algumas das mais belas imagens da
arte e da literatura, como o genial Os Irm�os Karamazov, de Dostoievski, ou a
terr�vel tela G�lgota, de Edvard Munch, que esteve em S�o Paulo na �ltima
Bienal, e na qual Cristo aparece como �m� de todas as trag�dias e dramas
humanos.
E
seu exemplo est� na origem de movimentos de contesta��o pol�tica como a luta
pela independ�nca da �ndia liderada por Ghandi ou a defesa dos direitos dos
negros, simbolizada por Martin Luther King (n�o � toa ambos foram
assassinados), mostrando que, apesar da influ�ncia cada vez menor das igrejas,
a import�ncia de seu exemplo e de tudo que ele simboliza s� tende a aumentar.
Afinal,
como conclui o crist�o ortodoxo Pelikan, "a unidade e a variedade de
retratos de Jesus ao longo dos S�culos demonstram que nele existe mais do que s�o
capazes de sonhar a filosofia e a cristologia dos te�logos".