Livro:
Do cristianismo ao juda�smo: A hist�ria
de Isaac Or�bio de Castro
Autor: Yosef
Kaplan
Editora: Imago
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 548
A Holanda e os judeus portugueses
Biografia de Isaac Or�bio de Castro, que
emigrou para um vilarejo perto de Amsterdam no s�culo 17, levanta quest�es
como a identidade judaica
Heliete Vaitsman
O que leva uma pessoa, uma fam�lia, uma na��o inteira a desafiarem tortura,
seq�estro de bens, isolamento, ex�lio e morte antes de repudiarem sua f�? Ou,
quando acontece o rep�dio p�blico, como se explica a secreta persist�ncia
nessa mesma f� por v�rias gera��es? E como essa pessoa, essa fam�lia, essa
na��o produzem, com vigor renovado, obras liter�rias de g�neros t�o
variados quanto a filosofia, a cabala, a exegese b�blica, a historiografia, a
codifica��o legal? Mais ainda, como mant�m a integridade em meio a profundos
conflitos internos e de identidade? Ao se observar a riqueza e a diversidade da
cultura judaica nos �ltimos quatro s�culos, essas s�o perguntas que afloram,
sem encontrar respostas f�ceis. Livros como Do cristianismo ao juda�smo: A
hist�ria de Isaac Or�bio de Castro, rec�m-lan�ado em portugu�s, ajudam
a iluminar algumas pistas.
Escrito originalmente como tese de doutorado pelo diretor do Departamento de
Hist�ria do Povo Judeu da Universidade Hebraica de Jerusal�m, professor Yosef
Kaplan, o livro esmi��a algumas caracter�sticas das sociedades - da Pen�nsula
Ib�rica � Holanda, passando pela Fran�a - em que viveu o m�dico, erudito e
fil�sofo portugu�s que fez o caminho ao contr�rio. Filho de uma fam�lia
convertida � for�a ao catolicismo, nascido em Bragan�a (por volta de 1617) e
batizado como Baltazar Alvares de Or�bio, tornou-se respeitado e foi enterrado,
em 1687, como Isaac Or�bio de Castro, no cemit�rio da Congrega��o
judaico-portuguesa Talmud Torah, em Ouderkerk, perto de Amsterdam.
Kaplan,
especialista em Hist�ria Medieval e Moderna Judaica, escreveu uma biografia
alentada, sem concess�es ao romance (mas os dilemas pessoais dos perseguidos
pela Inquisi��o que retornam ao juda�smo d�o �tima fic��o, como mostram A
saga do marrano, do argentino Marcos Aguinis, e O �ltimo cabalista de
Lisboa, do americano radicado no Porto Richard Zimler, ambos traduzidos em
portugu�s). Cada cap�tulo � seguido de copiosas notas bibliogr�ficas. No
final, h� refer�ncias completas das fontes pesquisadas e um dos oito ap�ndices
� a rela��o minuciosa dos bens m�veis de Baltazar/Isaac seq�estrados pela
Santa Inquisi��o em C�diz, em agosto de 1654.
�
imposs�vel separar a trag�dia coletiva da individual, especialmente numa situa��o
como a da Inquisi��o, em que a obedi�ncia �s regras n�o garantia a salva��o.
Ao contr�rio do que acontecera com os exilados portugueses e espanh�is
abertamente judeus que haviam criado comunidades no Oriente Pr�ximo e no
Oriente M�dio no fim do s�culo 15 (o decreto de expuls�o de isl�micos e
judeus da Espanha � de 1492), os que chegaram cem anos mais tarde � Europa
crist� haviam recebido educa��o cat�lica. Portugal, sob press�o da Espanha,
institu�ra a convers�o for�ada, a partir de 1497, produzindo um enorme
contingente de "crist�os novos". Com a Inquisi��o, estabelecida em
1536, estes passaram a ser vistos com desconfian�a por infringirem as normas
relativas � "limpeza do sangue" (conceito criado pela hierarquia
eclesi�stica de Toledo) e viviam sob suspeita de "judaizarem". De
fato, pr�ticas cerimoniais privadas judaicas (como jejuar nos dias certos,
evitar carne de porco, acender as velas na v�spera do s�bado) eram mantidas em
segredo por milhares. Esse marco de refer�ncia, mais que uma religi�o formal,
foi levado para outras terras, a partir de meados do s�culo 16, pela di�spora
sefardita (a palavra vem de Sefarad, Espanha em hebraico, designando
genericamente os judeus de origem ib�rica e mediterr�nea).
Ao
emigrarem para a Fran�a cat�lica, ou as cidades italianas, muitos crist�os-novos
- tamb�m chamados de conversos, ou marranos, ou criptojudeus - mantiveram em
meio-segredo suas pr�ticas religiosas. O mesmo n�o foi necess�rio nos Pa�ses
Baixos, onde o calvinismo liberal autorizou oficialmente a presen�a dos judeus
em 1615. Ao iniciarem sua jornada rumo � pot�ncia mercantil onde imperava a
liberdade burguesa, econ�mica e religiosa, havia fam�lias que possu�am oito
gera��es de conversos atr�s delas, e que tinham estado imersas na vida econ�mica,
cultural e intelectual da Pen�nsula Ib�rica, com alguns de seus membros
ocupando cargos importantes nas Cortes e em ordens religiosas.
No
ambiente liberal de Amsterdam - a "Jerusal�m holandesa", que um
contempor�neo de Or�bio, o poeta Daniel Levi de Barrios (o ex-capit�o
espanhol Miguel de Barrios), qualificou de "verdadeira Babil�nia no que
diz respeito �s ci�ncias... Atenas de falar poliglota" - essas fam�lias
estabeleceram um modus vivendi �nico. Tornaram-se judeus novos, ainda imbu�dos
de conceitos da teologia cat�lica, da neo-escol�stica e do barroco espanhol. N�o
renegaram as origens, ao contr�rio: educaram seus filhos em l�ngua portuguesa
ou espanhola, criaram escolas entre as mais modernas da Europa e mantiveram os v�nculos
com o passado. Sentiam um profundo parentesco psicol�gico com a terra natal,
sua paisagem e seus costumes. Referiam-se a si mesmos como "membros da Naci�n".
Kaplan
lembra, por exemplo, que o fil�sofo Baruch Spinoza (1632-1677), nascido em
Amsterdam e banido da comunidade judaica em 1656, tinha em sua biblioteca as
obras de Quevedo, G�ngora e P�rez de Montalb�n, entre outros. O pai de
Spinoza nascera nos arredores de Beja (de fam�lia origin�ria da Espanha e
convertida em 1497) e chegara a Amsterd� depois de ter vivido na cidade
francesa de Nantes. Tamb�m foi depois de uma passagem pela Fran�a (Bayonne e
Toulouse) que a fam�lia de Or�bio, que estudara medicina em Osuna e Alcal�,
chegou a Amsterd�, no final de 1662. Diz Kaplan: "pela primeira vez na
vida, conheceram uma comunidade judia organizada, que contava com cerca de duas
mil almas (...) uniram-se � congrega��o e lan�aram fora o manto do
conformismo crist�o sob o qual por tanto tempo haviam ocultado sua verdadeira
identidade"
Muitos
dos que haviam vivido a vida dupla na Pen�nsula Ib�rica a custo adaptaram-se
�s formalidades da religi�o ancestral. Foram, segundo Kaplan, precursores da
dificuldade contempor�nea de determinar quem e o que � um judeu. No ambiente
cat�lico hostil, tinham se habituado a considerar a identidade interior e
emocional judaica mais importante que a pr�tica real dos mandamentos. Mutatis
mutandis, contesta��es �s autoridades religiosas, que na Pen�nsula Ib�rica
teriam levado � fogueira, eram apenas her�ticas na sinagoga de Amsterdam...
Ali, livres, os judeus anteciparam em pelo menos um s�culo a amplia��o
cultural da comunidade judaica alem�, criando uma rica literatura em latim,
espanhol e portugu�s. O estudo da B�blia precedia o do Talmude e a literatura
holandesa tamb�m era estudada.
Ao
contr�rio do posterior movimento "iluminista" da comunidade judaica
da Europa central, a lideran�a dos "portugueses", como ficariam
conhecidos mais tarde os judeus holandeses, n�o desejava modificar a sociedade.
Dissidentes e livres pensadores internos foram reprimidos, ao mesmo tempo que
prosseguiam as pol�micas entre eruditos como Or�bio e eruditos crist�os. A
quest�o do banimento de Spinoza exp�s contradi��es que at� hoje suscitam
controv�rsias. Or�bio, conservador, foi um dos advers�rios do pensamento de
Spinoza, um racionalista absoluto acusado de sofrer de uma confus�o comum a
outros crist�os-novos ao contestar a l�gica de normas religiosas. O n�o-entendimento
das regras n�o justifica sua viola��o, afirmou Or�bio. Segundo ele, em quest�es
de f�, a raz�o humana � inadequada para tomar decis�es, havendo, portanto, a
necessidade de algum poder com capacidade e autoridade para dirigir a comunidade
dos fi�is.
Fiel
� �poca, Or�bio escreveu contra o paganismo, ao qual associava o
cristianismo, mas foi al�m da teologia ao analisar as rela��es dos judeus com
os gentios. O livro relata suas muitas pol�micas, como a "discuss�o
amistosa" com Philippe van Limborch, um dos maiores representantes do
calvinismo liberal em Amsterd�, quando afirmou que os judeus n�o representam
para os crist�os o perigo que os crist�os se acostumaram a considerar. Sua
hist�ria � tamb�m a hist�ria dos "portugueses" de Amsterd�,
fundamental para a compreens�o de algumas quest�es a respeito do destino do
povo judeu e do significado de ex�lio e reden��o. Vinte anos depois da morte
de Or�bio, um emiss�rio das comunidades judaicas da Terra Santa visitou
Amsterdam e ouviu, de seus interlocutores, que o retorno � Israel s� tinha
sentido para "os judeus pobres da Pol�nia, Alemanha e Turquia". A
integra��o e o florescimento s� seriam interrompidos, tragicamente, na quarta
d�cada do s�culo 20.