Historiador, em novo estudo, reescreve com
brilhantismo aspectos da Hist�ria do Brasil
Ademir Assun��o
N�o � nenhuma novidade que a maioria dos brasileiros desconhece sua (nossa) pr�pria
Hist�ria. Sabe Deus e o Diabo quantas raz�es e desraz�es formam o jogo de
ocultamento do nosso passado, com reflexos anestesiantes no presente. Mas uma
delas parte dos pr�prios livros de Hist�ria, com suas vers�es oficiosas,
manipuladoras, chat�rrimas e, ainda por cima, mal escritas. Tamb�m n�o �
nenhuma novidade que existem historiadores munidos de um apurado senso de
pesquisa, de uma vis�o ampla das movimenta��es sociais e de prop�sitos mais
honestos do que aqueles que fixam a eterna vers�o dos vencedores. E h� aqueles
que possuem uma aptid�o a mais: sabem escrever. � o caso de Nicolau Sevcenko.
Seu novo livro, Pindorama Revisitada, chama a aten��o pelo
texto primoroso. Os quatro ensaios curtos (exceto o �ltimo, que se det�m sobre
a cidade de S�o Paulo) e um manifesto possuem uma flu�ncia que valoriza o
prazer da leitura. Se a brevidade dos textos deixa escapar detalhes que poderiam
ser mais aprofundados, a vis�o aglutinadora capaz de encontrar s�nteses de
contextos hist�ricos em poemas, cr�nicas de viagem, pinturas, fotografias e
movimentos art�sticos, ampliam a compreens�o da(s) realidade(s) em conflito no
tabuleiro da Hist�ria.
No
terceiro cap�tulo, Mosaicos Movedi�os - Hist�rias Extraordin�rias das
Cidades Brasileiras, por exemplo, Sevcenko recupera um poema de Greg�rio de
Matos, escrito em 1680, para sintetizar a total falta de planejamento urbano e a
segra��o espacial imposta aos habitantes menos favorecidos da primeira capital
brasileira: "� caos confuso, labirinto horrendo,/ Onde n�o topo luz, nem
fio amando,/ Lugar de gl�ria, onde estou penando,/ Casa da morte, onde estou
vivendo!/ � voz sem distin��o, Babel tremendo,/ Pesada fantasia, sono
brando,/ Onde o mesmo, que toco, estou sonhando,/ Onde o pr�prio, que escuto, n�o
entendo!"
Nesse
mesmo cap�tulo, que explica a forma��o de Canudos a partir do sentimento de
um catolicismo de teor epif�nico, apoiado em valores populares de
solidariedade, justi�a e eleva��o espiritual, o historiador faz uma h�bil
rede de conex�es hist�ricas e busca em um texto de Machado de Assis o
fotograma mais contundente da bandalheira especulativa que se espalhou pelo Rio
nos primeiros anos da Rep�blica: "Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, n�o
compres mal os outros, corrompe e s� corrompido, mas n�o te esque�as do
dinheiro, que � com que se compram os mel�es... Make money. E depressa,
depressa, antes que o dinheiro acabe." Impressionante como as palavras do
velho Machado, escritas h� mais de cem anos, se encaixam como uma luva na
realidade atual.
Sevcenko
relata como esse contexto de pujan�a econ�mica e exibicionismo das elites, �vida
em copiar as modas de Paris e transformar o Rio na fachada de uma capital europ�ia,
acabou eclodindo na Revolta da Vacina, em 1904. Obrigada a uma vacina��o
compuls�ria contra a var�ola, sem a m�nima explica��o sobre os efeitos
colaterais das inje��es, a popula��o revoltada atacou o centro do Rio,
destruindo rel�gios, vitrines, bondes e lampi�es de ilumina��o p�blica. A
resposta das for�as governamentais, apoiadas em contingentes do Ex�rcito, da
Marinha, da Guarda Nacional e at� dos bombeiros, foi sum�ria: "Quem fosse
pego pelas ruas e n�o pudesse comprovar endere�o ou emprego fixos, situa��o
em que se encontrava a maioria da gente pobre, era preso, desnudado, espancado e
lan�ado nos por�es de vapores e, na seq��ncia, sem qualquer julgamento,
deportado para os confins da selva amaz�nica, onde era despejado e abandonado
� pr�pria sorte", escreve o historiador.
As
barbaridades levadas � cabo pelas elites cariocas encontram correspond�ncias
na capital paulista. No ensaio S�o Paulo, Laborat�rio Cultural Interdito �
enfocada a sucess�o de erros, dem�ncias e grandes jogadas econ�micas que
transformou a prov�ncia de pouco mais de 64 mil habitantes, em 1905, na ca�tica
metr�pole de quase 22 milh�es de habitantes atualmente. Para as gera��es
mais novas � surpreendente acompanhar, inclusive por fotografias, como em pouqu�ssimo
tempo os amplos espa�os p�blicos foram sendo destru�dos em favor dos autom�veis,
os rios se tornaram esgotos a c�u aberto e a especula��o imobili�ria
verticalizou a cidade, trancando a popula��o atr�s de grades, algumas
eletrificadas, vigiadas por porteiros e c�meras de v�deo. D�i tamb�m
constatar que movimentos art�sticos que movimentaram a capital e introduziram
uma linguagem de modernidade, muitas vezes, eram financiados pelas mesmas elites
que espoliavam a massa de trabalhadores e miser�veis.
Al�m
dos ensaios, Nicolau Sevcenko redige um manifesto em que prop�e um singelo, por�m
sincero e generoso, memorial para a constru��o de uma verdadeira cidadania
neste pa�s. O texto Jardim de Pindorama: Manifesto para o S�culo 21 recupera a
mem�ria ancestral das tribos-p�ssaros e dos povos arco-�ris que aqui
habitavam muito antes da chegada dos portugueses e sugere a cria��o de um
Jardim Tropical, no centro hist�rico do Rio, onde seriam plantados cem buritis,
em c�rculo, cada um representando um ano do novo s�culo. O local seria
administrado por ONGs, com custo o mais baixo poss�vel, e independente do
dinheiro oficial. Os cem buritis seriam o s�mbolo da vontade de construir, no
pr�ximo s�culo, um pa�s realmente justo, com "distribui��o de recursos
e oportunidades", "cidadania plena" e "preserva��o das
condi��es ambientais". A partir desse memorial simb�lico, as v�rias for�as
da sociedade poderiam estabelecer metas para os pr�ximos cem anos, fiscalizar
as a��es e cobrar os resultados.
"Pode
soar ut�pico, pode parecer simplista, pode ser tido como in�cuo" -
escreve Sevcenko. "Mas, se conduzido com determina��o, teria todo o
potencial para aglutinar, construir uma figura pol�tica alternativa plena de
subst�ncia moral, permitir uma f�cil e l�dica comunicabilidade com a
comunidade internacional e proporcionar � popula��o um canal efetivo para
deixar sua marca hist�rica de um pa�s que sempre a relegou � sombra e ao sil�ncio."
Em
vez de ouvir as idiotices interesseiras de popstars milion�rios seria muito
mais proveitoso o Brasil prestar aten��o nos prop�sitos de Sevcenko e das in�meras
vozes que est�o relegadas � sombra e ao sil�ncio.