O livro mais recente do pensador italiano lan�ado
no Brasil, do qual o Caderno de S�bado publicou com exclusividade um trecho
sobre a arte do "bom governo", ajuda-nos a n�o nos deixarmos enganar
pelas apar�ncias na pol�tica
Cl�udia Perrone-Mois�s
Em tempos de tentativas de acabar com a Hist�ria ou de fragment�-la, ao ponto
de tornar quase imposs�vel a busca de qualquer sentido, a leitura do rec�m-lan�ado
livro de Norberto Bobbio, Teoria
Geral da Pol�tica (organiza��o de Michelangelo Bovero, tradu��o de
Daniela Beccaccia Versiani , Ed. Campus, 720 p�gs.), pode trazer-nos de volta
os p�s ao ch�o. A afirma��o de Bobbio, segundo a qual, �para n�o nos
deixarmos enganar pela apar�ncias e n�o sermos induzidos a crer que a cada dez
anos a hist�ria recome�a do zero, � preciso ter muita paci�ncia e saber
escutar as li��es dos cl�ssicos�, nunca foi t�o atual. Nesse contexto, a
reuni�o de seus ensaios dispersos e que escaparam �s colet�neas j� lan�adas
anteriormente, demonstrando a import�ncia das teorias cl�ssicas e uma poss�vel
continuidade na Hist�ria, torna-se de grande valia.
Para quem conhece a obra de Norberto Bobbio, a pergunta que se p�e de in�cio
diz respeito a saber qual seria a rela��o entre este livro e o famoso Estado,
Governo e Sociedade � Para uma Teoria Geral da Pol�tica (Paz e Terra,
1986), no qual fil�sofo analisa temas como o Estado, as formas de governo e a
sociedade civil. No pref�cio, ele j� alertava que os temas ali analisados
seriam fragmentos de uma teoria geral da Pol�tica, ainda a ser escrita. Em
1998, referindo-se a esse livro, Bobbio reconheceria que aquele �ambicioso�
subt�tulo consistia numa �promessa n�o mantida�.
A
Teoria Geral da Pol�tica, agora publicada, � fruto da reuni�o de 40 ensaios
que, segundo o organizador, foram escolhidos com base em dois crit�rios: a
exemplaridade e a novidade. O livro est� dividido em 12 cap�tulos, agrupados
em seis partes. Os t�tulos de cada parte correspondem a temas recorrentes no
pensamento de Bobbio: �A filosofia pol�tica e a li��o dos cl�ssicos�;
�Pol�tica, moral, direito�; �Valores e ideologias�; �A democracia�;
�Direitos e paz� e �Mudan�a pol�tica e filosofia da hist�ria�. O bel�ssimo
pref�cio de Michelangelo Bovero � antigo aluno, colaborador e sucessor do
autor �, al�m de nos instruir sobre a organiza��o do livro � luz de outros
escritos de Bobbio, esclarece-nos acerca das poss�veis indaga��es que a obra
de seu mestre pode levantar.
Dentre
tantos temas que demonstram de forma clara quais s�o as preocupa��es e os m�todos
utilizados pelo pensador italiano, um deles � o que se refere � li��o dos cl�ssicos.
Um dos ensinamentos mais preciosos de Bobbio � saber ouvir as li��es dos cl�ssicos.
Essas li��es permitem estudar os temas recorrentes que se colocam em rela��o
aos grandes problemas, igualmente recorrentes, da reflex�o pol�tica. O estudo
desses temas, que atravessam toda a hist�ria do pensamento pol�tico, tem como
fun��o, segundo Bobbio, �individuar certas categorias que permitem fixar em
conceitos gerais os fen�menos que passam a fazer parte do universo pol�tico�.
A primeira fun��o, portanto, � a de determinar os conceitos pol�ticos
fundamentais, enquanto a segunda consiste em estabelecer entre as diversas
teorias pol�ticas, de diferentes �pocas, as poss�veis afinidades e diferen�as.
Mas
o que confere a um autor a qualidade de cl�ssico? Para Bobbio, cl�ssico � o
autor que ao mesmo tempo � �int�rprete aut�ntico de seu pr�prio tempo�,
�sempre atual, de modo que cada �poca, ou mesmo cada gera��o, sinta a
necessidade de rel�-lo e, relendo-o, de reinterpret�-lo�. E que tenha
constru�do �teorias-modelo das quais nos servimos continuamente para
compreender a realidade�. Como aponta Bovero, esta defini��o levanta
problemas ao int�rprete, pois como � poss�vel que a obra de um int�rprete
aut�ntico de seu pr�prio tempo possa ser reinterpretada continuamente? A
resposta parece estar na seguinte afirma��o de Bobbio: �No estudo dos
autores do passado, jamais fui particularmente atra�do pela miragem do chamado
enquadramento hist�rico, que eleva fontes a precedentes, as ocasi�es e condi��es,
det�m-se por vezes nos detalhes at� perder o ponto de vista do todo:
dediquei-me, ao contr�rio, com particular interesse, ao delineamento de temas
fundamentais, ao esclarecimento dos conceitos, � an�lise dos argumentos, �
reconstru��o do sistema� (�De Hobbes a Marx�). Como lembra Bovero,
aquilo que interessa identificar nos cl�ssicos n�o � tanto seu significado
hist�rico, mas sim, nas palavras do Bobbio, �hip�teses de pesquisa, temas
para reflex�o, id�ias gerais�.
Apesar
de as li��es dos cl�ssicos estarem presentes em todos os ensaios, um dos cap�tulos
do livro refere-se especificamente a esse tema. Os autores cl�ssicos agrupados
sob este t�tulo s�o: Kant, Marx e Weber. Kant � um autor freq�ente na obra
de Bobbio, tanto assim que lhe dedicou um de seus livros, Direito e Estado no
Pensamento de Emanuel Kant (UnB, 3.� ed., 1995). Para esse autor, o tema
recorrente do pensamento pol�tico � o da liberdade, ou melhor, das duas
liberdades como diria Bobbio: �O primeiro significado � aquele recorrente na
doutrina liberal cl�ssica, segundo a qual �ser livre� significa gozar de
uma esfera de a��o, mais ou menos ampla, n�o controlada pelos �rg�os do
poder estatal; o segundo significado � aquele utilizado pela doutrina democr�tica,
segundo a qual �ser livre� n�o significa n�o haver leis, mas criar leis
para si mesmo.� Esse tema reaparecer� diversas vezes em suas an�lises,
inclusive nesta Teoria Geral da Pol�tica, em �Da liberdade dos modernos
comparada � dos p�steros�, ensaio inserido no cap�tulo sobre valores pol�ticos,
al�m de outros livros, como Igualdade e Liberdade (Ediouro, 1996).
J�
no ensaio acerca de Marx, (�Marx, o Estado e os Cl�ssicos�), Bobbio analisa
o lugar ocupado pela teoria do Estado deste autor na hist�ria do pensamento pol�tico.
Como sabemos, Bobbio nunca foi um marxista, mas o seu rigor anal�tico �
superior a qualquer posi��o ideol�gica que possa impedi-lo de reconhecer a
import�ncia fundamental de Marx para o pensamento pol�tico. Confrontando a
teoria pol�tica de Marx com os autores que s�o considerados unanimemente como
cl�ssicos do pensamento pol�tico, de Plat�o a Hegel, e procedendo por meio de
compara��es por afinidades e diferen�as, Bobbio demonstra a �reviravolta
radical que Marx operou sobre a tradi��o apolog�tica do Estado� na medida
em que, para ele, o Estado deixa de ser o reino da raz�o e do bem-comum para
ser considerado como o reino da for�a e do interesse daqueles que det�m o
poder.
O
terceiro autor, tido por Bobbio como �o �ltimo dos cl�ssicos�, � Max
Weber, cujas express�es �passaram a fazer parte definitivamente do patrim�nio
conceitual das ci�ncias sociais�. No campo da teoria pol�tica, Bobbio
considera que nenhum estudioso do s�culo 20 contribuiu de forma t�o
significativa como Max Weber para o enriquecimento do l�xico t�cnico da
linguagem pertinente a este campo. Dentre as express�es herdadas deste autor,
Bobbio lembra algumas que pela sua reconhecida import�ncia dispensam maiores
coment�rios: poder tradicional e carisma, poder legal e poder racional, direito
formal e direito material, monop�lio da for�a, �tica da convic��o e �tica
da responsabilidade.
A
pergunta fundamental que se coloca relativamente ao trabalho que Bobbio elabora,
a partir dos temas recorrentes e das li��es dos cl�ssicos, diz respeito a
saber qual seria o tipo de filosofia pol�tica desenvolvida por ele. Inserida
nesta indaga��o est� a quest�o de sua vis�o acerca da rela��o existente
entre fato e valor e da ado��o de uma teoria descritiva ou prescritiva.
Segundo Bobbio, existem quatro significados poss�veis para a no��o de
filosofia pol�tica, que correspondem a quatro tipos de investiga��o. O
primeiro consistiria na id�ia da filosofia pol�tica como busca da melhor forma
de governo ou da �tima Rep�blica; o segundo, da investiga��o do fundamento
do Estado, com a conseq�ente justifica��o ou injustifica��o da obriga��o
pol�tica, ou seja, da legitimidade do poder pol�tico; o terceiro tipo �
aquele que visa � determina��o do conceito geral de pol�tica, ou da ess�ncia
da categoria do pol�tico, seja por meio da �autonomia da pol�tica� em rela��o
� moral, seja da delimita��o de seu campo em rela��o � economia ou ao
direito; finalmente, a quarta concep��o parte da id�ia da filosofia como
metaci�ncia, de modo que a filosofia pol�tica teria como tarefa a investiga��o
dos pressupostos e condi��es da validade da ci�ncia e a an�lise da linguagem
pol�tica.
Para
Bobbio, como indica Bovero, a terceira defini��o seria apropriada para sua
teoria geral da pol�tica. Se partirmos desta hip�tese, o problema que teremos
de enfrentar diz respeito � inexist�ncia, numa teoria assim considerada, de
uma dimens�o valorativa presente nos dois primeiros tipos. Mas, como bem
ponderou Bobbio, �n�o h� teoria t�o ass�ptica que n�o permita entrever
elementos ideol�gicos que nenhuma pureza metodol�gica pode eliminar
totalmente�. Bobbio parece oscilar entre uma filosofia pol�tica puramente
cognoscitiva e uma filosofia propositiva. Na verdade, a teoria geral de Bobbio
apresenta as duas dimens�es, como demonstra Bovero no pref�cio.
Em
linhas gerais, estas s�o algumas das caracter�sticas estruturais desta Teoria
Geral da Pol�tica, que tem, entre tantos outros m�ritos, o de nos inserir no
universo da hist�ria do pensamento pol�tico por meio de an�lises ling��sticas
claras e rigorosas, acompanhadas sempre de refer�ncias aos autores cl�ssicos e
suas categorias fundamentais. Apontando os temas reincidentes nas li��es dos
cl�ssicos e suas teorias, Bobbio nos faz perceber uma certa continuidade na
hist�ria, continuidade essa que diz respeito tamb�m aos problemas enfrentados
por essas diversas teorias. Recorr�ncia de problemas, de enfoques e solu��es
parecem marcar toda a hist�ria do pensamento pol�tico. Isso n�o quer dizer
que em alguns momentos Bobbio desconhe�a haver certas �guinadas� na Hist�ria,
como a �revolu��o copernicana� decorrente da afirma��o do primado dos
direitos sobre os deveres, que a tem�tica dos direitos humanos propiciou.
Assumindo, portanto, a id�ia desta continuidade podemos passar a pensar as
quest�es referentes ao chamado �fim da hist�ria� e � possibilidade de
encontrar-lhe um sentido.
Como
apontado por Bobbio em sua autobiografia (Di�rio de um S�culo, Campus,
1998), �a hist�ria humana n�o apenas n�o acabou, como anunciou h� alguns
anos um historiador americano, mas, talvez, a julgar pelo progresso t�cnico-cient�fico
que est� transformando radicalmente as possibilidades de comunica��o entre
todos os homens vivos, est� apenas come�ando. � dif�cil afirmar, contudo,
que dire��o esteja destinada a seguir�. Ainda a respeito do sentido da Hist�ria,
afirma na Teoria Geral da Pol�tica (�A Ideologia do Novo Homem e a Utopia
Invertida�): �N�o tiro conclus�o alguma acerca do sentido da hist�ria,
que, n�o tenho vergonha de declarar, ignoro qual seja. Tenho apenas a sombria
impress�o de que ningu�m ainda a captou.� De toda forma, fica evidente que,
para Bobbio, a Hist�ria n�o acabou e que, se ela tem um sentido, ningu�m
ainda foi capaz de dizer qual seja. Vis�o realista, sim, mas n�o pessimista ou
ingenuamente otimista.
A
ide�a da continuidade na Hist�ria, al�m de necess�ria, � reconfortante em
tempos de crise de paradigmas e de, como diria Hannah Arendt, �coisas que n�o
s�o mais e de coisas que n�o s�o ainda�. Emanuel Levinas, refletindo acerca
da rela��o do indiv�duo com o seu futuro, dizia que, para se pensar no
futuro, � necess�rio procurar algo que j� possu�mos. �Em nossa exist�ncia
j� existem realiza��es e somente nosso engajamento profundo nessa exist�ncia
abrir� nossos olhos para as possibilidades do futuro. N�s nunca come�amos
inteiramente novos diante de nosso destino� (L�ontologie Dans le Temporel).
N�o poder�amos dizer o mesmo em rela��o � nossa hist�ria coletiva? Seja
como for, a leitura da Teoria Geral da Pol�tica, de Norberto Bobbio, poder�
fornecer-nos pistas que nos permitam avan�ar no �labirinto� da Hist�ria,
para usar a compara��o eleita pelo grande mestre italiano.