Livro: O Outro Livro das
Maravilhas (A Peregrina��o de Fern�o Mendes Pinto)
Autor: Francisco
Ferreira de Lima
Editora: Relume-Dumara
Ano: 1998
N�mero de p�ginas: 208
As grandezas de Portugal, um discurso m�tico?
Livro de professor brasileiro contesta a tese
de que na �poca dos Descobrimentos os portugueses viviam um momento de
esplendor e de vanguarda na ci�ncia mar�tima
Adelto Gon�alves
As comemora��es dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil, se v�m ajudando a
divulgar importantes livros de Hist�ria, t�m servido tamb�m para colocar nas
m�os dos leitores muitas obras de ocasi�o que, escritas �s pressas, sem
pesquisas em fontes manuscritas e de olho apenas nos lucros, acabam, muitas
vezes, por repetir invencionices e disparates propalados por textos impressos
mais antigos. Uma exce��o � este O Outro Livro das Maravilhas (A Peregrina��o
de Fern�o Mendes Pinto), ensaio de Francisco Ferreira de Lima,
originalmente tese de doutoramento em Letras pela USP.
Este detalhe, por�m, n�o deve assustar o leitor: o autor nunca partilhou a id�ia
de que uma tese, a bem do conhecimento, deva ser mon�tona e de desagrad�vel
leitura, como tem sido regra geral na pr�tica acad�mica.
Se
outra contribui��o este livro n�o viesse a dar - e elas s�o muitas -, j�
bastaria a que oferece logo em suas primeiras p�ginas: os argumentos de que
Portugal nunca viveu esplendor nenhum em sua Hist�ria, ao contr�rio do que
dizem seus grandes mitificadores - desde Cam�es at� Pessoa, passando por
Vieira. Essa vis�o m�tica, que ainda hoje preenche o imagin�rio de grandes
ensa�stas lusos, como Eduardo Louren�o, por exemplo, tem sido transferida tamb�m
para historiadores brasileiros, que acabaram aceitando a id�ia sem contesta��o,
talvez por pregui�a de irem �s fontes documentais.
Ao
contr�rio do que sempre quis afirmar o ufanismo prof�tico dos historiadores
lusos antigos e modernos, cujo trabalho n�o deveria confundir-se com os dos
poetas, a voca��o mar�tima do povo portugu�s s� pode ser compreendida como
um ingente esfor�o para fugir � escassez, ou seja, � mis�ria.
Comparativamente, a navega��o portuguesa em termos de homens e t�cnica era
inferior � praticada no B�ltico, na Bretanha, nas regi�es da Biscaia e nos
portos italianos. � o que deixa bem claro Ferreira de Lima, ao mostrar que
Portugal, ao final do s�culo 15, era ainda um pa�s bastante atrasado em rela��o
�s principais na��es da Europa. Mais ainda: estava imerso mentalmente na
Idade M�dia. Seus navegadores e navegantes n�o passavam de cavaleiros
medievais que apenas haviam trocado o cavalo pela proa das naus.
A
id�ia de Portugal como pot�ncia mar�tima � �poca dos Descobrimentos talvez
seja refor�ada hoje pela compara��o com as conquistas espaciais dos EUA,
tarefa que s� poderia ser executada por uma na��o rica e extremamente
desenvolvida. Nada mais enganoso. Para ir ao mar, nos s�culos 15 e 16, n�o era
necess�rio que o impulso fosse dado por um governo economicamente forte.
A
fraqueza do Estado portugu�s levou-o sempre a privatizar n�o s� o
recolhimento dos impostos como a vender cargos p�blicos. Por isso, a condescend�ncia
para com os grandes mercadores que fizeram fortuna durante a expans�o
portuguesa n�o deve ser vista como exemplo de generosidade, mas como a melhor
solu��o encontrada para gerir os neg�cios da Coroa. A famosa avers�o da
nobreza lusitana pelo trabalho acabava por completar o quadro.
Como
a nobreza n�o queria trabalhar, n�o gostava nem sabia fazer nada - exemplo que
vinha de cima e generalizava-se pela arraia mi�da -, tudo era arrendado a
terceiros - inclusive a aventura do descobrimentos. Dentro desse contexto, a
famosa Escola de Sagres nunca foi nada que se pudesse dizer fora de seu tempo.
Muito
menos uma escola institucional. No m�ximo, um grupo de r�sticos homens do mar
reunidos em torno do Infante dom Henrique. O saber ali produzido sempre foi pr�-cient�fico.
N�o h� um documento que prove a exist�ncia de um grupo de g�nios elaborando
teorias para, baseado nelas, chegar-se ao fim do mundo. O que havia era o
conhecimento pr�tico conseguido �s custas da intrepidez e, muitas vezes, da
inconseq��ncia como m�todo. O resto ficou por conta dos poetas.
N�o
� de se estranhar que assim fosse. As navega��es, ao contr�rio das expedi��es
espaciais de hoje, nada tinham de expedi��o cient�fica. Eram, isso sim,
empreendimentos cavaleiresco-comerciais. As descobertas nunca foram um fim, mas
apenas acidentes de percurso. O que se buscava era mesmo o saque e a riqueza
acumulada ou gozada por outros povos. Repetia-se al�m-mar o que sempre ocorrera
na Europa, terra de invasores e invadidos. A pilhagem sempre foi a regra. A
confraterniza��o entre portugueses e ind�genas, que se percebe na Carta de
Pero Vaz de Caminha, � apenas um acontecimento fortuito, que dificilmente se
repetiria. Por tr�s, o que havia era sempre a cobi�a desenfreada. E, entre os
marinheiros e seus superiores hier�rquicos, o desejo de nobilitar-se e
"ganhar a honra", o que implicava o direito ao saque. Nada mais
medieval.
Ferreira
de Lima lembra que n�o � � toa que Gomes Eanes de Zurara descreve como se
fosse um ato her�ico o massacre perpretado por nove lusos contra um pobre-diabo
africano. O mesmo se d�, acrescenta, com Diogo do Couto em O Soldado Pr�tico.
Em vez de omitir fatos desabonadores, o que esses autores faziam era louv�-los
com o objetivo de educar o povo na tentativa de voltar aos bons tempos da
Cruzada cavaleiresca. � que a cavalaria, anacronismo na Europa burguesa do s�culo
16, era ainda uma for�a viva e atuante no Portugal renascentista. Tudo isso
Ferreira de Lima explica em seu livro para que o leitor possa entender tamb�m o
aparecimento da Peregrina��o, de Fern�o Mendes Pinto, objeto maior de seu
estudo. Escrito em 1580, o manuscrito levou mais de 30 anos para vir a p�blico.
Logo, tornou-se um dos livros mais populares de toda a literatura portuguesa e
com fama internacional.
Obra-s�ntese,
a Peregrina��o incorpora os principais modelos em voga no s�culo 16, a cr�nica,
o relato de viagem, a novela de aventuras, herdeira da novela de cavalaria, al�m
de todas as tradi��es medievais, inclusive o besti�rio mar�timo. Por isso, a
tese principal que perpassa o trabalho de Ferreira Lima � que a Peregrina��o,
tal como a narrativa de Marco Polo, � tamb�m um livro de maravilhas. Para o
ensa�sta, � imposs�vel compreender o s�culo 16 portugu�s sem uma leitura
atenta da Peregrina��o. Mas, a partir de agora, � tamb�m imposs�vel
compreender e acompanhar a Peregrina��o, de Fern�o Mendes Pinto, sem ter em m�os
as chaves que o ensaio de Ferreira de Lima oferece para acabar com o discurso m�tico.
No limiar do terceiro mil�nio, n�o h� mais sentido em continuar a estudar a
Hist�ria apenas sob os �ngulos da idealiza��o e do romantismo.