Livro de professor brasileiro contesta a tese
de que na �poca dos Descobrimentos os portugueses viviam um momento de
esplendor e de vanguarda na ci�ncia mar�tima
Adelto Gon�alves
Hist�ria e antropologia mantiveram por muitas d�cadas rela��es problem�ticas.
Numa breve simplifica��o, enquanto os historiadores tendem a privilegiar um
recorte "diacr�nico" - que leva em conta sobretudo as mudan�as ao
longo de per�odos de tempo demarcados, dado o car�ter processual da realidade
social -, a antropologia pautou-se, sobretudo durante as primeiras d�cadas
deste s�culo, por um recorte "sincr�nico" - que prioriza an�lises
de uma totalidade sociocultural no momento em que a mesma � observada. Isso se
deve ao fato de seu objeto fundador ter sido as tribos ind�genas, consideradas
"povos sem hist�ria", onde, grosso modo, seria especulativo indagar
sobre seu passado (dada a aus�ncia de registros escritos), ou porque seriam
vistas como sociedades nas quais a passagem do tempo pouco significaria, sendo
preciso compreender suas estruturas inconscientes, permanentes e invariantes.
Uma outra distin��o � que enquanto disciplinas como a hist�ria (ou a
sociologia e a economia) voltaram-se tradicionalmente para temas abrangentes
como as rela��es de poder, a constru��o do Estado, os modos de produ��o,
etc, a antropologia, por sua vez, notabilizou-se por um olhar destinado a
reconstituir as pr�ticas cotidianas, os costumes e as representa��es
coletivas dos grupos estudados, o que constituiria boa parte do campo da
abordagem cultural.
Tais
diferen�as foram aos poucos se tornando menos n�tidas, � medida que a
antropologia passou a enfocar objetos dotados de maior abrang�ncia e
historicidade, como sociedades colonizadas ou, mais recentemente, diversos
grupos urbanos - como migrantes, grupos �tnicos, religiosos, minorias. Al�m de
grupos ind�genas h� tempo e ao seu modo inseridos em processos hist�ricos
ligados ao contato com a sociedade moderna, nas lutas pol�ticas pela demarca��o
de terras e pela amplia��o de seus direitos. J� a hist�ria, h� algum tempo
vem enfocando a esfera cultural, como no caso da "hist�ria das
mentalidades", com �nfase na reconstitui��o do imagin�rio social de
outras �pocas; ou a chamada "hist�ria cultural", corrente da qual o
historiador ingl�s Peter Burke � um importante representante. Nesse sentido,
� bastante oportuna a leitura de seu �ltimo livro, Variedades de Hist�ria
Cultural, um conjunto de 11 ensaios que fornece um amplo panorama desse campo da
hist�ria e seu di�logo fecundo com a antropologia.
Segundo
o autor, "um grupo substancial de estudiosos atuais considera o passado
como um pa�s estrangeiro", e, tal como fazem os antrop�logos, caberia a
historiadores "tornar a 'alteridade' do passado ao mesmo tempo vis�vel e
intelig�vel" (p. 245). De toda forma, como Burke abre o livro afirmando
que "n�o h� concord�ncia sobre o que constitui hist�ria cultural, menos
ainda sobre o que constitui cultura" (p. 13), cumpre tra�ar uma esp�cie
de "hist�ria da hist�ria cultural", que o autor empreende ao longo
dos artigos, explorando suas v�rias possibilidades tem�ticas e revelando tanto
os campos onde a mesma tem se desenvolvido, quanto suas limita��es e
principais impasses do presente.
Tal
intento j� se revela no cap�tulo um, em que o autor busca responder "qual
a idade da hist�ria cultural", anterior ao seu per�odo "cl�ssico",
ou seja, antes que o pr�prio termo "cultura" tivesse um uso
generalizado (p. 14). Burke percorre in�meras "hist�rias" - da l�ngua
e da literatura, dos artistas e da arte, da m�sica, da doutrina, das
disciplinas, etc -, procurando resgatar das mesmas um conjunto de problemas e
quest�es que provariam, segundo ele, que, em 1800, "uma hist�ria geral da
cultura e da sociedade j� se havia estabelecido em alguns c�rculos
intelectuais" (p. 36), embora a hist�ria cultural tenha passado por um
forte eclipse ao longo do s�culo 19, devido ao crescimento de uma "hist�ria
positivista", ligada apenas aos "fatos concretos".
Como
ao historiador cultural cabe uma interpreta��o para al�m dos "dados
objetivos", h� no cap�tulo tr�s uma interessante abordagem da pr�pria
pr�tica do historiador, com base nos escritos de Maurice Halbwachs, para quem a
mem�ria � sempre uma reconstru��o social do passado, onde os grupos sociais
determinam o que � "memor�vel", e, pelo inverso, o que deve ser
esquecido. Rejeitando uma hist�ria totalmente objetiva, que se diferenciaria da
mem�ria, o autor defende que o acesso ao passado pelos historiadores tamb�m
est� exposto a representa��es coletivas de nossa cultura, cabendo tratar da
mem�ria n�o s� como fonte hist�rica, mas tamb�m como uma mitifica��o que
pode estar presente de forma inconsciente no exerc�cio da reconstru��o do
passado. Na mesma linha, o cap�tulo seis - que integra seus amplos estudos de
"fronteiras culturais" do in�cio da It�lia moderna - tece uma an�lise
baseada no estudo sistem�tico dos relatos dos viajantes ingleses � It�lia do
s�culo 17, com uma tipologia reveladora de muitos dos estere�tipos culturais e
preconceitos presentes em suas narrativas.
J�
no cap�tulo dois, onde o autor aborda a possibilidade de uma "hist�ria
cultural do sonhar", o ensaio n�o d� conta de muitos problemas, pois, se
� plaus�vel a hip�tese de que os sonhos tenham um significado cultural e que
o mesmo varie de acordo com cada cultura, o dif�cil � se ter acesso a dados
que confirmem isso plenamente, uma vez que nesse caso se adentra num debate dif�cil
entre psicologia e antropologia, j� chamado de "di�logo de surdos",
dada, por exemplo, a falta de consenso sobre o significado e a abrang�ncia de
muitos conceitos (mais individuais na primeira, mais socioculturais na segunda);
ademais, ao procurar analisar uma s�rie de registros de sonhos entre os s�culos
16 e 18, o autor envereda por posi��es que n�o escapam � fragmenta��o, al�m
de um forte car�ter especulativo.
Outros
ensaios, entretanto, n�o somente iluminam novas esferas de compreens�o da
realidade sociocultural, como criticam de forma instigante abordagens j�
consolidadas. � o caso do cap�tulo nove, sobre o carnaval no Novo Mundo, que
para Burke teria mais semelhan�as do que se imagina com o carnaval europeu,
ainda que nas Am�ricas tenha passado por novas s�nteses, em tr�s dom�nios: o
lugar das mulheres, da dan�a e da cultura africana. Um argumento central � que
"pr�ticas religiosas deram uma importante contribui��o aos carnavais
afro-americanos" (referindo-se aqui a algo j� presente no Brasil do s�culo
19, bem anterior � sua atual "re-africaniza��o"), com um
sincretismo que possivelmente j� teria se iniciado na pr�pria �frica (p.
222-224). Quanto ao cl�ssico estudo de Roberto DaMatta sobre o tema, Burke
defende que, apesar de brilhante, o trabalho � excessivamente durkheimiano, ao
supor uma unidade que ignora "a varia��o e os diferentes significados do
evento para diferentes grupos sociais" (p. 216).
Esse
�ltimo argumento � retomado no cap�tulo final ("Unidade e variedade na
hist�ria cultural"), talvez o mais importante do livro, onde o autor
mostra que, apesar do crescimento recente dos "estudos culturais" e de
sua maior legitimidade acad�mica, um balan�o cuidadoso aponta para sua
crescente fragmenta��o e especializa��o, principalmente sob a influ�ncia do
"multiculturalismo", que busca reler a hist�ria nas perspectivas de
etnia, g�nero, gera��o, etc. Embora tais estudos acarretem uma cr�tica a uma
cultura ou hist�ria pretensamente homog�neas, seu acirramento tem levado a
simplifica��es que perdem de vista a totalidade. Revendo aspectos da escola
culturalista e inspirando-se em Mikhail Bakhtin, Burke busca resolver tal tens�o
com a proposta de uma hist�ria "polif�nica", que traduza a
complexidade dos encontros e intera��es culturais ao incorporar "v�rias
l�nguas e pontos de vista", incluindo "vitoriosos e vencidos"
(p. 260-7).
Tal
ponto de vista � desafiante, devendo-se, por�m, lembrar que a antropologia p�s-moderna
j� tentou construir uma polifonia em termos apenas textuais, com resultados
muito duvidosos.