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Livro: A papisa, a busca da verdade sobre a hist�ria de Joana
Autor: Peter Stanford
Editora: Gryphus
Ano: 1998
N�mero de p�ginas: 356
O sexo dos papas

Francisco Jos� P. N. Vieira

Ao longo de sua hist�ria, a Igreja Cat�lica vem fazendo sua meaculpa e reconhecendo os erros cometidos no passado, j� que � feita de seres humanos. Admite que abusou do poder temporal, que a Inquisi��o cometeu abusos, que teve alguns papas desonestos, cujos filhos bastardos viviam abertamente na corte pontif�cia. Mas h� um epis�dio que a Igreja n�o reconhece e o atribui a uma lenda maldosa inventada por protestantes com o objetivo de atacar a autoridade do papa. A hist�ria da papisa Joana. Um papa mulher.
O brit�nico Peter Stanford, em uma mistura de reportagem e pesquisa hist�rica, nos leva a descobrir os tra�os deixados por Joana, uma inglesa educada na Alemanha, que se fez passar por padre, cardeal e finalmente foi eleita papa com o nome de Jo�o VIII. O livro n�o pode ser classificado como um ensaio hist�rico. O autor nos faz participar de forma detetivesca de suas descobertas, meio ao acaso, outras com um pouco mais de rigor hist�rico, mas se perde em tantos detalhes e descri��es da Roma moderna ou dos bibliotec�rios desta ou daquela biblioteca, que acaba desviando a aten��o do que interessa: suas buscas sobre a lenda, ou verdade, da papisa Joana .
Partindo de uma visita ao Museu do Vaticano e da descoberta de uma cadeira furada, parecendo uma espregui�adeira, Stanford descobre que esta sedia stercoraria destinava-se a um ritual no m�nimo curioso, praticado at� o s�culo 17, no qual o papa rec�m-eleito, no dia de sua coroa��o, deveria se sentar e ter sua masculinidade verificada por um cardeal. Por que esse procedimento? Por que duvidar da masculinidade dos papas? A resposta parece simples: houve um papa mulher que enganou a todos. N�o se poderia cometer tal erro outra vez.
O primeiro ''bi�grafo'' de Joana � Martin Polonus, ou Martinho da Pol�nia, cujo texto data de cerca de 1265, ou seja, quase 400 anos depois do que teria sido o reinado da papisa. Existem outros textos mais ou menos com o mesmo conte�do, como o de 1225, do dominicano franc�s Jean de Mailly: ''Sabe-se de um certo papa, ou melhor, uma papisa que era mulher. E fingiu ser homem. Atrav�s do seu intelecto, ela veio a ser secret�rio da c�ria, depois cardeal e, por fim, tornou-se papa. Um dia, ao desmontar do cavalo, deu � luz uma crian�a. Os magistrados romanos ataram imediatamente seus p�s ao rabo de um cavalo e, neste �nterim, o povo apedrejou-a por meia l�gua''. O curioso � que hoje, em Roma, ainda � mostrado ao turista o local onde teria ocorrido o parto e por onde os papas sempre evitam passar a caminho de S�o Jo�o Latr�o.
Os historiadores da Igreja, atualmente, segundo o autor, consideram esses textos lend�rios e s� aceitam pesquisas sobre Joana para que se saiba de onde surgiram essas lendas. � preciso admitir por princ�pio que Joana a papisa � uma lenda e s� deve ser estudada como tal. Portanto, para a Igreja, o importante � saber por que surgiu a lenda, mas nunca considerar a possibilidade de Joana ter ocupado o trono de S�o Pedro efetivamente. Mesmo havendo fontes medievais que citam Joana, os registros oficiais ignoram o fato, ou seja, seu nome teria sido exclu�do de qualquer documento oficial.
Como sabemos que a Igreja durante muitos s�culos foi a detentora do saber e da escrita, e seus mosteiros o lugar de entesouramento desse saber, inclusive das cr�nicas de reinados e anais dos pont�fices, teria sido absolutamente poss�vel que Joana tenha existido e seu nome apagado desses documentos. E o caso s� voltaria � tona depois da Reforma e o argumento dado pela Igreja � bastante simples: os seguidores de Calvino e Lutero refizeram antigos manuscritos, inserindo refer�ncias fict�cias sobre uma papisa com o objetivo de ridicularizar o papado. Ou seja, os textos medievais conhecidos teriam sido falsificados.
No caso de Joana ter existido, n�o � dif�cil avaliar o quanto amea�ou o mundo mis�gino medieval. Joana n�o s� estudou, fato singular para uma mulher do s�culo 9, como teve acesso �s Sagradas Escrituras, textos conhecidos apenas pelo clero. Stanford n�o se det�m em reflex�es sobre o papel da mulher da Idade M�dia, mas existem v�rios trabalhos de historiadores, principalmente franceses, que tratam do assunto com profundidade e certamente ajudariam a compreender a amplitude do problema. E, se no passado as mulheres n�o exerciam um papel na Igreja, hoje n�o � diferente. Na Igreja Cat�lica Romana n�o h� lugar para as mulheres. Somente as freiras est�o um pouco acima dos leigos. Essa � uma quest�o bastante discutida, tendo avan�ado nas igrejas protestantes. Mas a proximidade com o sagrado ainda � reservada exclusivamente aos homens.
O livro de Stanford certamente levanta quest�es interessantes, mas fica a meio caminho do rigor da pesquisa hist�rica. Suas afirma��es se perdem na falta de comprova��es e falta uma maior contextualiza��o. Ficamos curiosos para saber como seria o tempo de Joana, a Igreja nos primeiros s�culos, o que era Roma e o clero, e o papel da mulher. Estamos diante de uma obra que abre o apetite para se saber mais sobre esse epis�dio inusitado, por�m carregado de significados. A tradu��o brasileira peca pela falta de revis�o t�cnica, o que teria evitado chamar S�o Bento de Benedito, o franc�s Ethiene (Estev�o) de Bourbon de Stephen, ou ainda designar santo Agostinho como bispo de Hippo, sendo o correto Hipona.
Jornal do Brasil 24/02/2001