Livro: Aut�psia do Medo: Vida e Morte do Delegado S�rgio Paranhos
Fleury
Autor: Percival
de Souza
Editora: Globo
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 650
Torturador sim, mas nem tanto
Gon�alo J�nior
Confian�a n�o se d� a qualquer um. Claro. Pouco antes de morrer, em 1�
de maio de 1979, v�tima de um suposto afogamento no litoral paulista, o
delegado S�rgio Paranhos Fleury, 44 anos, sabia que a abertura pol�tica que
vinha sendo feita pelo presidente Geisel colocaria seu passado de policial na
mira de uma poss�vel revanche. S�mbolo do terror do Estado repressor, Fleury
foi respons�vel por uma s�rie de crimes contra os direitos humanos - tortura,
assassinato e sumi�o dos corpos -, praticados por ele e seus policiais nas
entranhas da Delegacia da Ordem Pol�tica e Social (DOPS). Por isso, ele tomou
uma medida preventiva. Alugou um cofre num banco em seu nome e de sua amante, a
advogada Leonora Rodrigues de Oliveira, onde arquivou todas as cartas amorosas
que o casal trocou durante a fulminante rela��o. Se algo acontecesse a um dos
dois, as correspond�ncias deveriam ser entregues a um jornalista de sua confian�a,
o ent�o rep�rter policial Percival de Souza.
Fleury conhecia bem o rep�rter. Chegou a enquadr�-lo na Lei de Seguran�a
Nacional por causa de reportagens sobre o 'esquadr�o da morte' - em 22 dos 69
processos Fleury aparece como executor das v�timas. Mas os dois se aproximaram
durante uma investiga��o de seq�estro no Mato Grosso do Sul. Ficaram t�o pr�ximos
que Souza aceitou o convite para assistir ao casamento da filha do delegado.
Depois, se tornou amigo de Leonora e passou a freq�entar seu apartamento, onde
ia buscar informa��es sobre a �rea policial. Nada disso, claro, compromete a
credibilidade de um rep�rter, cuja profiss�o permite que se cative fontes
importantes.
A
quest�o est� no resultado da biografia que Souza escreveu: Aut�psia do Medo - Vida e Morte do Delegado S�rgio Paranhos
Fleury. O policial
n�o poderia ter sido mais feliz ao confiar ao rep�rter seus segredos. Fleury
parecia prever que n�o poderia escapar ao julgamento da hist�ria. O que ele n�o
deve ter imaginado foi que o jornalista de sua confian�a se revelaria de uma
fidelidade canina quando assumiu o desafio de contar sua vida em livro. No
relato anunciado por sua suposta isen��o hist�rica, o jornalista comete o
pecado capital de praticamente ignorar o testemunho dos sobreviventes que
encararam o delegado em sua c�mara do terror. Como conseq��ncia, toda a
dramaticidade que marcou a atua��o de Fleury se dilui numa repeti��o
intermin�vel de elogios de amigos, colegas e superiores sobre aquilo que mais
deu notoriedade ao policial: sua vasta ficha de torturador e assassino implac�vel.
Fleury ganhou um livro que �, na verdade, um tributo dos que dividiram com ele
a cumplicidade de testar todos os limites da capacidade humana de suportar a
dor.
Do
esfor�o do bi�grafo surge um policial leal aos amigos, cumpridor da palavra,
consumidor voraz de gibis. Souza defende que Fleury levou para a repress�o um
estilo pessoal de fazer valer a lei a partir de julgamentos sum�rios nos quais
a morte quase sempre era a senten�a. Com sua efici�ncia, ganhou proje��o na
repress�o e passou a ter poderes quase ilimitados. Astuto, infiltrou agentes,
convenceu militantes a trair os companheiros e fuzilou as principais lideran�as
da luta armada - Eduardo Collen Leite, Joaquim C�mara Ferreira e Carlos
Marighella, al�m de ter participado do cerco a Carlos Lamarca na Bahia.
N�o
� a primeira vez que Percival de Souza resgata uma figura not�ria da repress�o.
Em 1985, publicou na revista 'Isto�' uma longa entrevista com o cabo Anselmo, l�der
da revolta dos marinheiros em 1964 e o homem que traiu a luta armada e ajudou
Fleury a desmontar o movimento - a entrevista seria repetida e anunciada como
furo em 1999 para a revista '�poca'. Veterano do jornalismo policial, com
quatro pr�mios Esso de Jornalismo no curr�culo, Percival de Souza tem o m�rito
de trazer informa��es novas, algumas reveladoras. Especialmente sobre a morte
do guerrilheiro Carlos Lamarca no interior da Bahia, relatada nos m�nimos
detalhes. Ele afirma, por exemplo, que v�rios policiais, inclusive Fleury,
posaram para fotos com um colar feito com os 30 dentes arrancados da boca de
Lamarca e que este foi morto com 49 e n�o sete disparos, como divulgou o
governo. Mas frustra quanto ao fim da namorada de Lamarca, Iara Yavelberg, morta
num cerco ao apartamento onde se escondia no bairro da Pituba, em Salvador.
Souza aceita sem qualquer contesta��o a vers�o da pol�cia de que Iara teria
se matado para n�o ser presa. Circula na Bahia h� muito tempo a informa��o
de que um dos legistas que examinaram o corpo da guerrilheira teria dito para
uma jornalista que Iara estaria gr�vida de tr�s meses e teria sido atingida
por oito tiros de metralhadora quando se escondia atr�s de uma porta.
A
principal revela��o do livro foi o namoro entre Fleury e Leonora, escondido
pela fam�lia por duas d�cadas. Ele dedica mais de 80 p�ginas para contar como
tudo aconteceu e reproduz exaustivamente as cartas que, segundo ele, lhe foram
confiadas pelo pr�prio delegado. A import�ncia dessa hist�ria se deve ao fato
de Leonora ser irm� de Raimundo Pereira, jornalista combativo da imprensa
alternativa e fundador dos jornais 'Movimento' e 'Opini�o'. Para mostrar que
torturador tamb�m tem sensa��es normais de qualquer ser humano, a narrativa
de Souza arrasta em detalhes e transcri��es intermin�veis que poderiam ser
resumidas num par�grafo.
Todas
essas ressalvas, por�m, n�o fazem de 'Aut�psia do Medo' um livro dispens�vel.
Muitas informa��es s�o repetitivas, mas os relatos orais colhidos pelo autor
junto a delegados e policiais, pela primeira vez, transbordam de elogios a
Fleury pelas 650 p�ginas do livro, apresentam o pensamento que direcionava o
comportamento de torturadores e matadores. Tantos crimes contra os direitos
humanos, acreditavam eles, eram perfeitamente justific�veis porque o pa�s
estava em guerra contra a subvers�o. Dessa vis�o distorcida, exagerada contra
inimigos que n�o representavam o gigantismo anunciado, sobressai um Fleury her�i,
um investigador eficiente, convenientemente admirado pelos militares, temido
pela luta armada e admirado pela comunidade.
T�o
curioso quanto as suspeitas levantadas por Souza de que Fleury pode ter sido
assassinado como queima de arquivo pelo pr�prio sistema, para n�o atrapalhar o
processo de abertura pol�tica, foi o modo como o delegado enriqueceu. A ponto
de comprar um barco - que acabaria por lev�-lo � morte. Seu bi�grafo se torna
pouco convincente quando diz que parte do dinheiro usado pelo policial para
comprar a embarca��o - considerada incompat�vel com os ganhos de um delegado
- teria vindo de um breve telefonema dado pelo delegado Fleury para o pai de um
garoto que havia sido libertado por ele de um seq�estro. N�o ficou claro se
foi mesmo um empr�stimo, troca de favores ou uma extors�o - entre as acusa��es
feitas ao policial est� a de que ele se apropriava dos bens de suas v�timas.
Quando
se fala que o regime militar deixou como heran�a as mazelas de uma pol�cia
militarizada e arbitr�ria, n�o se pode deixar de atribuir a Fleury o papel de
um dos ide�logos desse sistema que tornou o cidad�o ref�m de quem deveria
proteg�-lo. Nesse contexto, o livro de Percival de Souza deixa apenas a impress�o
de que a necess�ria biografia de S�rgio Paranhos Fleury ainda est� para ser
escrita. Seu relato deve ajudar a quem se propuser ao desafio de dar voz �s
sombras do delegado, que passaram a perambular depois de sua morte, desprezadas
por aqueles que as criaram, desnecess�rias num pa�s que retomou a longa
caminhada pela democracia.