A obra do padre Ant�nio Vieira � lan�ada
numa edi��o bem cuidada. J� n�o era sem tempo
Por v�rias d�cadas, s� existiram dois caminhos para quem quisesse
aprofundar-se na bel�ssima obra do padre Ant�nio Vieira (1608-1697). Um deles
era trazer de Portugal a edi��o completa da Lello & Irm�o, cara e em
quinze tomos. O outro era contentar-se com livrinhos brasileiros que, quando
muito, reproduzem meia d�zia das mais de 200 pe�as de orat�ria escritas pelo
jesu�ta. Entre esses dois extremos, nada. Eis agora uma boa nova: a editora
Hedra est� lan�ando uma cole��o das obras de Vieira, em quatro volumes. O
primeiro (663 p�ginas;) j� est� circulando e traz 25 serm�es importantes. O
pr�ximo ter� mais 25 serm�es e os dois seguintes conter�o um material
interessante e pouco conhecido: amostras de suas cartas e de seus textos prof�ticos.
A organiza��o ficou a cargo de Alcir P�cora, maior especialista brasileiro em
Vieira, e a edi��o � caprichada. Traz p�ginas em fac-s�mile, cronologia da
vida do autor, tradu��o das cita��es em latim e localiza��o das passagens
b�blicas que ele menciona.
Se algu�m por a� duvida que um lan�amento como esse � precioso, vale citar
alguns fatos universalmente aceitos a respeito de Ant�nio Vieira. Ele foi um
personagem central tanto na cultura quanto na pol�tica do s�culo XVII. Foi
emin�ncia parda no reinado de dom Jo�o IV, montou miss�es no Brasil, serviu
como diplomata na Holanda, na Fran�a e em Roma, enfrentou os tribunais da
Inquisi��o, emprestou seu brilho � corte de Cristina da Su�cia e chegou a
receber convite para ser o pregador do papa. Muitos o consideram o maior orador
de seu tempo � e ele de fato atra�a enxames de pessoas �s suas missas. Mas,
se isso n�o bastar para convencer os incr�dulos, aqui vai uma opini�o de
peso, do poeta Fernando Pessoa, a respeito de sua habilidade liter�ria:
"Vieira foi o maior artista da l�ngua portuguesa". O homem, em poucas
palavras, foi uma das gl�rias do per�odo barroco.
O
consenso em torno de Vieira, no entanto, acaba justamente na constata��o de
sua grandeza. Depois disso, o que h� � uma multid�o de interpreta��es
conflitantes. A tal ponto que se torna divertido comparar a situa��o dos cr�ticos
contempor�neos com aquela dos pregadores a quem Vieira ataca em uma de suas
obras mais famosas, o Serm�o da Sexag�sima. O serm�o foi proferido em Lisboa,
no ano de 1655. Ao seu autor interessava saber o motivo de a prega��o cat�lica
estar surtindo pouco efeito entre os crist�os. "Sendo a palavra de Deus t�o
eficaz e t�o poderosa", pergunta ele, "como vemos t�o pouco fruto da
palavra de Deus?" Depois de muito arrazoar, Vieira conclui que a culpa �
dos pr�prios padres. "Eles pregam palavras de Deus, mas n�o pregam a
palavra de Deus", afirma. Dito de outra maneira, o jesu�ta reclama
daqueles que torcem o texto da B�blia para defender interesses mundanos. Sem
tirar nem p�r, a mesma repreens�o poderia ser feita contra aqueles que
"semeiam" os textos de Ant�nio Vieira hoje em dia.
O
padre parece adaptar-se a todos os gostos. H� um Vieira marxista, um Vieira
liberal e at� um Vieira multiculturalista. Os marxistas gostam de citar serm�es
como o de Santo Ant�nio (1642), no qual o jesu�ta prega contra os privil�gios
da nobreza, e afirmam que ele defendia a id�ia de "justi�a
distributiva". Liberais v�em no Serm�o XIV, que fala sobre escravid�o,
um ind�cio de que ele foi "o primeiro abolicionista moderno".
Finalmente, serm�es sobre os �ndios ou a toler�ncia com os judeus servem para
pintar um Vieira "relativista", para quem todas as culturas teriam
igual direito � exist�ncia. Mas esses leitores se esquecem das evid�ncias
contr�rias �s suas teses. Os marxistas n�o reparam que Vieira subscrevia a
"metaf�sica social" de sua �poca, na qual o nobre � sempre nobre, o
clero � sempre clero e o povo sempre povo. N�o h� lugar para revolu��es em
seu pensamento. J� os que falam em abolicionismo n�o mencionam que no mesmo
Serm�o XIV ele justifica o tr�fico negreiro como sendo uma "primeira
transmigra��o", que tiraria os africanos do paganismo e os aproximaria da
salva��o. Quanto aos multiculturalistas, esquecem-se de que liberdade, para
Vieira, era liberdade no interior da Igreja. Ai do �ndio que n�o se
convertesse. Seu destino era o inferno. "As pessoas querem salvar Vieira de
sua pr�pria �poca, isolando um ou outro aspecto de sua obra. � uma estrat�gia
desastrada", diz Alcir P�cora. O estudioso tem se esfor�ado para mostrar
que cada texto do jesu�ta forma uma unidade "teol�gico-pol�tico-ret�rica"
e � dif�cil n�o simpatizar com seu projeto.
Deve-se
reconhecer, por�m, que ler Vieira atentando para todas as nuances teol�gicas e
hist�ricas pode causar mais suores do que uma sess�o de "aer�bica do
Senhor" com o padre Marcelo Rossi. � tarefa para especialistas. O que �
para todos � o prazer de sua leitura. Nos estreitos limites que as regras da
orat�ria lhe impunham, ele sabia manipular como ningu�m as refer�ncias b�blicas,
trabalhar as imagens e argumenta��es e manter o ritmo musical das frases.
Vieira considerava os seus serm�es "choupanas" em vez de "pal�cios".
E n�o gostava que fossem lidos de maneira puramente est�tica. Quanto ao
primeiro ponto, ele estava errado. Quanto ao segundo, n�o h� pecado em se
deleitar com esses textos maravilhosos. Leia Vieira. Suas palavras sempre
frutificam.