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Livro: As muitas faces da hist�ria: nove entrevistas
Autora: Maria L�cia Garcia Pallares-Burke
Editora: Unesp
Ano: 2001
N�mero de p�ginas: 248
A hist�ria em movimento
A vitalidade da historiografia atual

Laura de Mello e Souza

Se a entrevista, como bem diz Maria L�cia Pallares-Burke na introdu��o de As Muitas Faces da Hist�ria, � "uma esp�cie de g�nero intermedi�rio entre o pensamento e a escrita elaborada, (...) um g�nero capaz de apreender a id�ia em movimento", as nove entrevistas aqui coletadas arrastam o leitor para dentro de um redemoinho. Interessando tanto ao leitor especializado -o historiador- quanto ao p�blico mais amplo, este livro atesta a vitalidade da hist�ria nos dias que correm, sua incr�vel capacidade de cativar e suscitar quest�es. E isso apesar da aparente fluidez conceitual, da pouca import�ncia que todos os entrevistados d�o a modelos te�ricos, se confessando, sem exce��o, ecl�ticos, "fazedores de coquetel" -para usar uma express�o de Peter Burke.
Os nove entrevistados constituem uma boa amostragem da melhor historiografia praticada hoje no hemisf�rio norte, apesar de alguns gigantes, como Eric Hobsbawm, Emmanuel Le Roy Ladurie ou Jacques Le Goff (impossibilitado de dar entrevistas, diz-nos a autora, devido � doen�a que o persegue h� anos) terem ficado de fora. Podiam ter entrado outras mulheres al�m de Natalie Davis, como Michelle Perrot, e historiadores mais jovens e criativos, como Serge Gruzinski, para n�o falar da aus�ncia maci�a da historiografia latino-americana e no peso talvez excessivo dado � vertente anglo-sax�nica e aos estudiosos de fen�menos europeus. Mas n�o se deve cobrar o que n�o foi feito quando o realizado tem tanta qualidade.
A come�ar pelo not�vel preparo da entrevistadora, que conhece cada obra de seus entrevistados e tem boa parcela de responsabilidade no tocante � pertin�ncia dos problemas levantados. Bem conduzidas e bem editadas, as entrevistas aqui reunidas tinham j� sido publicadas, em vers�es menores, em alguns jornais brasileiros, exce��o feita para a de Peter Burke, ali�s um pouco longa e repetitiva. Na �ntegra s�o muito melhores do que as vers�es dadas ao p�blico entre 1996 e 1999 e constituem um material imprescind�vel para o estudo da obra desses autores: Jack Goody, Asa Briggs, Natalie Davis, Keith Thomas, Daniel Roche, Peter Burke, Robert Darnton, Carlo Ginzburg, Quentin Skinner. Pois a maioria deles � muito lida nas nossas universidades, cabendo contudo ressalvar que, se Darnton, Davis e Ginzburg s�o no Brasil verdadeiros best sellers, Asa Briggs e Daniel Roche nunca tiveram tradu��o portuguesa.
N�o deixa de ser curioso constatar que todos eles, cada um � sua maneira, s�o hoje cl�ssicos, tendo perdido um pouco do impacto inovador e at� mesmo virulento que os caracterizou nas d�cadas de 70 e 80. Mas, parafraseando o poeta, melhor ser eterno do que moderno, e na lista certamente est�o alguns dos grandes historiadores europeus da segunda metade do s�culo 20.
Jack Goody n�o � historiador: �, ali�s, o �nico antrop�logo presente. Por que n�o Geertz, ou Sahlins, que tanto t�m influenciado a hist�ria? Talvez porque Goody, extraordinariamente brilhante e original, tente historicizar mais a antropologia, fazendo uma cr�tica dura �s atemporalidades de L�vi-Strauss: "As culturas n�o s�o im�veis e est�o sempre em mudan�a", e dizer que h� sociedades frias ou quentes nada esclarece sobre a passagem de um estado para o outro, constata Goody, para quem a hist�ria pode "salvar" a antropologia do imobilismo, lhe dando "a dimens�o de tempo e de profundidade que lhe faltava".
Dentre os historiadores brit�nicos, dois s�o titulados: lorde Asa Briggs e sir Keith Thomas, ambos eleitores dos trabalhistas. O primeiro, dono de objetividade e capacidade de s�ntese invej�veis, � o grande estudioso do per�odo vitoriano e um f� incondicional de Gilberto Freyre, que considera "um dos mais eminentes historiadores da cultura de nosso s�culo" e, "dado o seu valor", subestimado.
O segundo, um aut�ntico "Oxford man", diz Maria L�cia Pallares-Burke, mostra que o fato de ser um dos maiores historiadores europeus n�o o fez se tomar muito a s�rio. Sua entrevista, pontilhada de auto-ironia -"sou meio levado pelo vento e tendo a acreditar no �ltimo livro que li", graceja- � a mais divertida de todas. Disc�pulo de Christopher Hill, de Freud e da antropologia social brit�nica, cuja clareza e lucidez op�e � pompa e pretens�o "das que surgiram depois", acredita que autores diferentes entre si e at� contradit�rios do ponto de vista te�rico podem fecundar a imagina��o hist�rica e dar bons frutos ao historiador -mesmo que esse fique, como no seu caso, sempre �s voltas com a tens�o entre a abordagem te�rica e a emp�rica. Sem se autodenominar um empirista, considera a historiografia francesa muito te�rica e se decepciona com os estudos de White e La Capra por n�o enfrentarem "os tipos de historiadores que de fato nos interessam".
Natalie Davis, Daniel Roche e Quentin Skinner d�o depoimentos tocantes e aut�nticos, colocando quest�es pessoais de forma discreta e mostrando grande generosidade nas suas rela��es profissionais. Roche revela que sua obra admir�vel sobre o povo parisiense, os h�bitos de leitura e de consumo n�o poderia ter sido realizada sem a colabora��o dos alunos e o trabalho de equipe, do qual � um defensor convicto. Davis confessa que �s vezes a incomoda um pouco a apropria��o que os alunos fazem de suas id�ias ainda em embri�o, mas logo se lembra da passagem de "Manhattan", de Woody Allen, "onde ele recorda sua m�e dizendo que ia mandar embora a empregada porque ela estava roubando, ao que o pai responde: "Mas afinal de contas, de quem ela pode roubar sen�o de n�s?'". E, desprendida, conclui: "Deixem que levem, j� que, acima de tudo, o importante � o avan�o do conhecimento!".
Skinner, historiador do pensamento pol�tico e expoente da "escola" contextualista, se mostra desconfort�vel ante o seu monumental e j� cl�ssico "As Funda��es do Pensamento Pol�tico Moderno", que, apesar do t�tulo um tanto teleol�gico, procura mostrar que conceitos pol�ticos s�o hist�ricos e devem ser estudados no contexto em que surgiram: "H� (...) uma teleologia embutida no livro que me aborrece agora. (...) Eu mais ou menos forcei os textos a contarem a minha hist�ria, esquecendo que havia outras hist�rias que eles contavam e que tratavam de quest�es cruciais para eles (...). Eu, portanto, os recrutei para uma hist�ria que n�o era a deles e, nesse aspecto, meu livro violou os pr�prios princ�pios que me impus".
A Darnton e Ginzburg, velhos conhecidos do p�blico brasileiro, coube voltar mais uma vez � hist�ria de suas admir�veis descobertas documentais -o arquivo da Sociedade Tipogr�fica de Neuch�tel, para o primeiro; os processos dos "benandanti" nos arquivos do Friuli, para o segundo- e refor�ar a import�ncia que a pesquisa arquiv�stica teve na renova��o da historiografia da segunda metade do s�culo 20. Darnton � um monotem�tico, que s� estuda os livros e h�bitos de leitura na �poca da Revolu��o Francesa. Ginzburg, insatisfeito e iconoclasta, muda incessantemente de tema e recusa tanto os r�tulos quanto as especialidades.
Pode-se, por fim, tirar dessas entrevistas algumas li��es para fazer boa hist�ria: fugir dos modismos como o diabo da cruz (sobretudo dos p�s-modernos); olhar com reserva para a "obra historiogr�fica" de Michel Foucault (h� uma quase unanimidade contra ele, quebrada apenas por Quentin Skinner!); revisitar o marxismo antes de alardear sua morte; nunca deixar que a teoria soterre as evid�ncias; ler o mais poss�vel, sem descuidar dos romances, mas tendo bem claro que hist�ria n�o � literatura. O resto, como sugere Carlo Ginzburg, fica por conta do imponder�vel, do faro que distingue um grande ca�ador de um mero rastreador de pegadas: porque a hist�ria, pelo menos para a maioria desses senhores, tamb�m n�o � uma ci�ncia.
Folha de S�o Paulo 10/02/2001