Livro: A
Travessia da Calunga Grande: tr�s s�culos de imagens sobre o negro no
Brasil (1637-1899)
Autor: Carlos Eug�nio Marcondes de
Moura
Editora: Edusp
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 691
As imagens e a figura do negro no imagin�rio
social
O livro A Travessia da Calunga Grande p�e �
disposi��o dos interessados nada menos do que o mais completo cat�logo
de fontes iconogr�ficas que registram imagens dos africanos e de seus
descendentes no Brasil
Jean Marcel Carvalho Fran�a
Qualquer balan�o cultural que se fa�a do ano passado, ano marcado pelas
comemora��es em torno dos 500 anos do descobrimento do Brasil, certamente
demonstrar� que os ventos foram bastante favor�veis para a historiografia
nacional. � verdade que as desastrosas cerim�nias coordenadas pelo poder p�blico
pouco ou nada contribu�ram para produzir uma reflex�o mais apurada sobre os
cinco s�culos de hist�ria do pa�s. Mas, por sorte, nem tudo se reduziu �s
iniciativas oficiais. As editoras, por exemplo, responderam de maneira bastante
satisfat�ria � natural curiosidade pelo passado nacional despertada pela data.
H� tempos n�o se via nas prateleiras das livrarias t�o variados livros de
hist�ria p�tria e tantas reedi��es de obras importantes da cultura local. A
prosperidade trouxe at� mesmo um certo requinte �s edi��es, requinte que tem
permitindo aos pesquisadores tornarem acess�vel para o grande p�blico os
registros imag�ticos do passado nacional - condenados ao quase esquecimento
pela pobreza editorial de outrora.
Dentre essas tais obras mais requintadas merece, sem d�vida, um destaque todo
especial o excelente A
Travessia da Calunga Grande: tr�s s�culos de imagens sobre o negro no
Brasil (1637-1899), do pesquisador Carlos Eug�nio Marcondes de Moura. O livro,
inclu�do na cole��o "Uspiana Brasil 500 anos", p�e � disposi��o
dos interessados nada menos do que o at� agora mais completo cat�logo de
fontes iconogr�ficas que registram imagens dos africanos e de seus descendentes
no Brasil, dando um contributo inestim�vel para os pesquisadores interessados
em tra�ar a hist�ria da constru��o da figura do negro no imagin�rio
nacional. Mas n�o � s� a riqueza do material coletado que recomenda este
livro. Marcondes de Moura esmerou-se na sua prepara��o: a qualidade das
imagens � primorosa, a introdu��o geral, ainda que breve, � bastante
esclarecedora e a apresenta��o do material coletado � extremamente bem
cuidada.
A
obra, que infelizmente traz apenas 800 dos cerca de 2.600 registros levantados
pela pesquisa, est� dividida por s�culos, o que permite avaliar isoladamente
cada per�odo e acompanhar as mudan�as ocorridas na maneira de representar o
negro ao longo dos quase 300 anos mapeados pelo pesquisador.
As
imagens do s�culo XVII - a primeira delas, L'ile de Itamarac�, de Frans Post,
� de 1637 - s�o exclusivamente holandesas e datam da ocupa��o batava de
Pernambuco: s�o pinturas de Frans Post e Albert Eckhout, aquarelas do
despenseiro do pr�ncipe de Nassau, Zacharias Wagener, e uma s�rie de gravuras
an�nimas constante na obra do m�dico e compilador Arnoldus Montanus. A Wagener
pertence o primeiro registro imag�tico conhecido de uma festa africana - "Negertanz"
(Dan�a de Negros), aquarela pintada entre 1634 e 1641.
Os
registros do s�culo XVIII s�o um pouco mais variados, n�o obstante o
isolamento a que a coroa portuguesa confinara a sua col�nia tropical e a aus�ncia
de artistas holandeses que suprissem o "laconismo" lusitano. Para al�m
de gravuras an�nimas - impressas na obra de viajantes (Fr�zier, La P�rouse e
John Barbot) ou reproduzidas em livros de compiladores que recolhiam e
divulgavam as informa��es levadas para a Europa por navegadores -, encontramos
uns poucos trabalhos do pintor Leandro Joaquim, alguns desenhos de Joaquim Jos�
Codina e a "preciosa iconografia" de Carlos Juli�o - um militar
natural de Turim, que ocupou a fun��o de capit�o dos mineiros da Artilharia
da Corte do Rio de Janeiro. As 21 aquarelas desse militar reproduzidas no livro,
todas datadas do �ltimo quartel do s�culo XVIII, constituem certamente um dos
mais detalhados registros imag�ticos da vida do negro no Brasil colonial.
A
relativa escassez de imagens dos s�culos XVII e XVIII contrasta com a fartura
daquelas do s�culo XIX. As raz�es para tal contraste s�o in�meras, mas uma
delas, especialmente, n�o pode deixar de ser mencionada: a abertura dos portos
promovida por d. Jo�o VI em 1808. Aos muitos estrangeiros que, pelas mais
variadas raz�es, resolveram a partir de ent�o deslocar-se para os tr�picos
devemos boa parte das imagens catalogadas por Marcondes de Moura, sobretudo
aquelas datadas da primeira metade do s�culo XIX. S�o imagens produzidas tanto
por nomes mais conhecidos do p�blico, como Jean Baptiste Debret, J. M. Rugendas,
Thomas Ender e Henry Chaberlain, quanto por nomes menos populares, como Joaquim
Candido Guillobel, Charles Landseer, William Gore Ouseley, Edward Hildebrandt ou
Fran�ois Auguste Biard. O rico e variado "acervo" oitocentista traz
ainda algumas gratas surpresas, entre as quais: as litografias de Joaquim Lopes
de Barros, um n�mero significativo de xilogravuras compostas por brasileiros an�nimos,
muitas ilustra��es de revistas de �poca ( com uma enorme carga de informa��es
hist�ricas) e uma s�rie de daguerre�tipos e fotografias, por meio dos quais o
leitor poder� conhecer, entre outras coisas, a fisionomia de alguns
afro-descendentes que galgaram posi��es de grande prest�gio na sociedade da
�poca.
O
impressionante conjunto de imagens reunido neste livro certamente abrir� m�ltiplas
possibilidades de pesquisa para os estudiosos do passado nacional, especialmente
para aqueles interessados em analisar a hist�ria do negro em terras
brasileiras. Todavia, por mais variadas que sejam essas futuras pesquisas, um
aspecto evidenciado pelo livro de Marcondes de Moura ter� obrigatoriamente de
ser sempre levado em considera��o: os registros imag�ticos dos africanos e
seus descendentes, produzidos durante os quatro primeiros s�culos de exist�ncia
do pa�s, s�o majoritariamente estrangeiros.
Isto
significa que a imagem que os brasileiros v�m construindo, ao longo de sua hist�ria,
do contingente de afro-descendentes que comp�e a popula��o local, est�, em
larga medida, vinculada � imagem que os europeus constru�ram desses
afro-descendentes. Avaliar com mais aten��o a dimens�o e a profundidade desse
v�nculo � uma das tarefas que crescentemente vem se impondo aos historiadores
brasileiros.