Livro: Malandros
da Terra do Trabalho: malandragem e bo�mia na cidade de S�o Paulo
(1930-1950)
Autora: M�rcia
Regina Ciscati
Editora: AnnaBlume
Ano: 2001
N�mero de p�ginas: 174
Da maloca � Cracol�ndia
A historiadora M�rcia Ciscati lan�a livro
sobre a antiga malandragem em S�o Paulo
Cristina R. D�ran
Imagine
uma cidade entre os anos 30 e 50 do s�culo XX, em que malandros e bo�mios
oscilam entre a vida familiar e o conv�vio com gigol�s, vigaristas e
prostitutas. Not�vagos de toda esp�cie percorrem "inferninhos" e
misturam-se a sambistas, dan�arinos, jornalistas e a todo tipo de artistas.
Pensou no Rio de Janeiro? Pois se enganou. A metr�pole anunciada � S�o Paulo
e est� retratada na tese de mestrado Malandros
da Terra do Trabalho - malandragem e bo�mia na cidade de S�o Paulo
(1930-1950), de M�rcia Regina Ciscati. Apresentado em 1998 no
Departamento de Hist�ria na Unesp-Assis, o trabalho est� prestes a ser lan�ado
em livro pela editora Annablume.
M�rcia evitou pesquisar entre malandros, bo�mios e sambistas conhecidos - em
S�o Paulo podem ser citados, entre outros, Adoniran Barbosa ou Nelson Gon�alves,
que come�ou sua carreira entre lutas de boxe e apresenta��es na porteira do
Br�s, at� estourar no Rio de Janeiro. A historiadora preferiu buscar
depoimentos sobre "aqueles bons tempos" entre paulistanos an�nimos.
Por exemplo, Hiro�to de Moraes, malandro lend�rio entre os freq�entadores da
Boca do Lixo que se define "Rei da Boca".
Hiro�to
nasceu no Paran� em 1930, mudou-se para a capital paulista em 40 e acabou na
Penitenci�ria do Estado de S�o Paulo 20 anos mais tarde, onde escreveu sua
autobiografia - � o verdadeiro relato do malandro que circulava longe das f�bricas,
sedes sindicais ou movimentos de vanguarda da cidade. Na pesquisa de M�rcia
tamb�m surgem figuras como o sambista Germano Matias, um dos sobreviventes da
antiga boemia que aprendeu a fazer samba batendo na lata de graxa - entre os
engraxates e os estivadores que descarregavam bananas no centro da cidade, no
Largo das Bananas. Ou, ainda, o mineiro Alberto Alves dos Santos, que se mudou
jovem para S�o Paulo e se tornou conhecido como o Nen� da Vila Matilde,
fundador daquela escola de samba.
Surpreende
a cidade que aparece nas p�ginas do livro, ao perder o car�ter �nico de
"cidade do trabalho" e tirar do carioca a exclusividade da malandragem
para estend�-la a todo o pa�s. Mas � chocante seguir o caminho percorrido
pela autora e desembocar na S�o Paulo atual.
A
figura glamourizada e rom�ntica do malandro que andava sempre alinhado - na sua
pr�pria �tica -, com roupas de linho, chap�u e sapato de duas cores, deu
lugar ao marginal "rampeiro", como a historiadora define. "O que
em um determinado momento parece rom�ntico e glamouroso, na verdade localiza o
in�cio de um bols�o de mis�ria e de exclus�o social que hoje nos
cerca", avalia M�rcia em entrevista ao Valor.
"Sempre
me causou curiosidade esse �cone do malandro, cuja imagem � uma refer�ncia
carioca", continua M�rcia, nascida no bairro paulistano da Penha, em 1964.
"Na pesquisa, percebi que � mais do que isso: o emblema do malandro veste
todo o Brasil e redunda na tradu��o de uma baix�ssima auto-estima do
brasileiro, que se v� como aquele que trapaceia e d� um jeito em tudo."
Assim, a historiadora empenhou-se em "desconstruir" o malandro
brasileiro.
Para
ela, o fen�meno da malandragem que p�e o carioca como figura central e o
paulistano como oper�rio trabalhador � parte de um processo hist�rico de
busca da identidade nacional detonado pelo ent�o presidente Get�lio Vargas.
"A era Vargas � crucial nesse sentido, pois � quando se tem o
direcionamento das energias oficiais para criar esses �cones da brasilidade e
export�-los", analisa M�rcia. "Isso vai marcar nossa refer�ncia
cultural, embora n�o da melhor maneira."
Como
ela escreve, naquele Brasil a sociedade se dirigia para a industrializa��o,
tornando fundamental o papel de uma identidade constru�da com base na a��o
pol�tica do Estado. Articulador e manipulador de �cones da mem�ria nacional e
fundador da mem�ria oficial, para M�rcia, o Estado desenhou, ent�o, um
presente harm�nico para o pa�s e um futuro de gl�rias.
"Nesse
sentido, S�o Paulo � apresentada como eixo da express�o econ�mica, lugar da
modernidade e industrializa��o, 'locomotiva' desse imenso trem e face sisuda
do pa�s, onde estariam centralizadas as energias para o trabalho e o lar",
observa M�rcia. J� o Rio de Janeiro, no mesmo contexto, seria a face dionis�aca
do Brasil daqueles tempos: "O lado alegre, pouco exigente e d�cil, o mundo
da boemia, raiz do 'jeitinho brasileiro' e nosso cart�o-postal para o
mundo."
�
por isso, acredita a historiadora, que em S�o Paulo a malandragem foi muito
mais reprimida pela pol�cia do que no Rio e se tornou obscura. Pelo mesmo
motivo, foi entre os cariocas que ela se tornou t�o musical e glamourosa.
"Al�m de tudo, no Rio estavam concentradas as ag�ncias radiof�nicas, o
que provocou um grande interc�mbio de sambistas entre as duas cidades",
diz.
Obedecendo
ao governo, que, na an�lise de M�rcia, desenvolvia um delineamento moral para
as classes populares, a pol�cia intervinha freq�entemente na famosa Boca do
Lixo paulistana - hoje conhecida como Cracol�ndia - e no Quadril�tero do
Pecado - Rua Aurora e adjac�ncias do centro da cidade -, tradicionais redutos
da malandragem paulistana.
M�rcia
aponta outras diferen�as entre o malandro carioca e o paulistano. "Em S�o
Paulo, havia uma maior profissionaliza��o na atividade de cada um", diz.
Explica-se: "As fun��es eram setorizadas entre o batedor de carteiras, o
chefe do jogo, o cafet�o; isso era bem determinado e delimitado."
Tudo
isso era proporcionado pelo movimento noturno "bastante vivaz" que se
detectava nas duas cidades, entre os anos 30 e 50. "Aquele ambiente freq�entado
pelo cafet�o, pelo malandro, pela prostituta era tamb�m freq�entado pelos
jornalistas, artistas, m�sicos e at� policiais e existia um c�digo �tico da
malandragem", observa M�rcia.
Em
seu depoimento, Germano Matias lembra que havia o "malandro de leve" e
o "malandro da pesada". O segundo dispensa apresenta��es. O
primeiro, de acordo com o sambista, freq�entava todo aquele submundo e dele
extra�a m�sica e literatura. "N�o era simplesmente um gatuno, da� o
glamour do malandro", acrescenta M�rcia.
Em
que momento, afinal, tudo isso se perdeu? "Do final dos anos 50 para c�, a
configura��o da cidade foi se modificando e todas essas rela��es foram se
alterando", responde a historiadora. "A marginalidade come�ou a se
alastrar por S�o Paulo e a velha malandragem foi perdendo os c�digos de conviv�ncia",
continua. "Seguiu-se uma decad�ncia e degrada��o at� todo aquele espa�o
ser tomado por um quadro de exclu�dos sociais", completa. Em resumo:
"Fomos da Boca do Luxo para a do Lixo e acabamos caindo na Cracol�ndia",
nas palavras da historiadora.