O conv�s era mudado em palco: lonas de linho,
pintadas "� maneira de �gua", velas de brocado, bat�is cheios de
tochas e velas contracenavam com cavaleiros em ricas armas, respons�veis pela
simula��o de alegres combates
Mary del Piore
Boca
fechada! Olhos bem abertos! Sil�ncio!": as palavras de Pr�spero, ao
evocar os prod�gios da mascarada em "A Tempestade", bem servem ao
leitor desse Teatro a Bordo das Naus Portuguesas, de Carlos
Francisco Moura, em cuidadosa co-edi��o do Liceu Liter�rio Portugu�s e
Instituto Luso-Brasileiro de Hist�ria. Inscrito num dos mais valorizados dom�nios
da historiografia -o das festas e sociabilidades-, o livro estuda o teatro
encenado no conv�s de naus e caravelas entre os s�culos 15 e 18. Um teatro,
diga-se, sobre as ondas. Novidade? N�o: o uso da �gua como suporte para toda
sorte de representa��es existe desde a Antiguidade cl�ssica. Anfiteatros
eram, ent�o, inundados, para permitir batalhas navais -as chamadas
"naumachias"-, respons�veis por espet�culos que envolviam carros
triunfais, cortejos de personagens m�ticos e centenas de figurantes fantasiados
de cisnes, sereias, serpentes marinhas e quejandos. Na It�lia e na Fran�a do
Renascimento transformavam-se em palco rios, lagos, canais ou qualquer espelho
d'�gua capaz de suportar carros aleg�ricos flutuantes, dirigidos e animados
por h�beis atores. A cidade de Baiona, por exemplo, ofereceu a Catarina de M�dicis
um desses espet�culos em que a rainha viu desfilar o carro de Netuno, trit�es
cavalgando uma tartaruga marinha, Arion sobre um golfinho e dezenas de sereias
que lutavam para ficar � tona em meio a um espalhafatoso combate de baleias. Em
1589, galeras crist�s deram assalto a uma fortaleza turca no adro interno do
Palazzo Pitti. Convenhamos: o espet�culo n�o era pouco! No caso do livro de
Moura, o espelho d'�gua � sem fim: s�o os mares cruzados pelos portugueses,
em cujas naus n�o faltavam criatividade e luxo �s encena��es teatrais. O
conv�s era mudado em palco, no qual lonas de linho, pintadas "� maneira
de �gua", velas de brocado, bat�is cheios de tochas e velas contracenavam
com cavaleiros em ricas armas, respons�veis pela simula��o de alegres
combates. Pilotos, grumetes e mareantes participavam do evento, vestidos com
sedas e tecidos finos. Com espet�culos jocosos, c�micos e
"graciosos", divertiam uma tripula��o que oscilava entre 500 e 800
pessoas.
Hist�rias extra�das da "T�vola Redonda" e da "Demanda do
Santo Graal" inspiravam mat�ria para m�micas e atua��es que lhes
enchiam os olhos e a imagina��o. A sonoplastia tamb�m impressionava:
artilharia, trombetas, pandeiros e charamelas rasgavam os ares. Os v�rios
pretextos para festejar eram extra�dos dos calend�rios religioso e profano.
Tanto se representava para aclamar as 11 Mil Virgens ou o Natal quanto o anivers�rio
ou o casamento d'El Rei. Em determinadas circunst�ncias, levantavam-se altares,
emprestavam-se ret�bulos aos passageiros, rezavam-se missas solenes, seguidas
de animada cantoria e dan�as. Tal anima��o faria, hoje, in a um cruzeiro
de luxo: pr�mios eram oferecidos aos que decifrassem enigmas e emblemas usados
na decora��o, e a travessia do Equador ensejava um card�pio festivo � base
de presunto, doce de p�ra e caramelos.
A
genial pesquisa de Moura sobrepuja, em muito, seu texto. Severos, certos
especialistas poder�o cobrar um destino mais interessante �s dezenas de
informa��es que, com tanto cuidado, compilou. Falta-lhes narrativa,
problematiza��o, intriga. O autor descreve os documentos, mas n�o os
interroga. D� a conhecer fatos, administra provas, mas termina por amarr�-las
num esquema explicativo cuja simplicidade contrasta com a riqueza das fontes. N�o
se pergunta em que medida tais comemora��es teatrais eram o mecanismo de
afirma��o de uma determinada ordem moral e social, de certa vis�o global do
homem e de suas rela��es com o mundo ou em que colaboraram para submeter
culturalmente grupos sociais. Afinal, � sabido que, nos tempos modernos,
minorias dominantes organizavam "festas-espet�culo" para impedir a
"festa-participa��o" da imensa maioria. Mas, para quem gosta do
assunto, nada disso � muito grave. Afinal, "navegar era preciso" e,
com teatro a bordo, melhor ainda.