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Livro: A Corte no ex�lio: civiliza��o e poder no Brasil �s v�speras da Independ�ncia - 1808 a 1821
Autor: Jurandir Malerba
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2000
N�mero de p�ginas: 416
A boa vida da Corte no Rio de Janeiro
O livro detalha os rituais e as representa��es da Corte no Rio e destaca a sua import�ncia para a forma��o de uma nova elite

Adelto Gon�alves

Que foram os comerciantes fluminenses de grosso trato, enriquecidos com o tr�fico negreiro, que desembolsaram altas quantias e garantiram o equil�brio dos cofres r�gios e a boa vida da Corte no Rio de Janeiro, a partir de 1808, j� se sabia, desde que Manolo Garcia Florentino escreveu Em Costas Negras: Uma Hist�ria do Tr�fico Atl�ntico de Escravos Entre a �frica e o Rio de Janeiro - S�culos XVIII e XIX (Arquivo Nacional, 1995). Faltava s� verificar o que haviam recebido em troca. � o que faz o professor Jurandir Malerba, doutor em Hist�ria Social pela Universidade de S�o Paulo, em A Corte no ex�lio: civiliza��o e poder no Brasil �s v�speras da Independ�ncia - 1808 a 1821.
Esses comerciantes de carne humana, que levantaram arcos triunfais e m�quinas laudat�rias ao soberano em dias festivos, foram recompensados com muitos t�tulos e condecora��es e os favorecimentos que todo governo falido costuma fazer a quem o ajuda a sobreviver. Constitu�ram, portanto, o alicerce em que se apoiou a monarquia em seus primeiros anos de Brasil, o que refor�a a tese defendida desde S�rgio Buarque de Holanda de que a classe hegem�nica da col�nia portuguesa n�o era uma "aristocracia rural", representada por plantadores escravistas da grande lavoura, como imaginaram historiadores mais antigos, mas sim os comerciantes de grosso trato.
Disfar�ando a base te�rica que fundamentou o seu trabalho em favor de uma estrutura narrativa mais atraente, Malerba, dono de um estilo elegante e claro, detalha as representa��es e rituais praticados pela Corte no Rio de Janeiro e destaca a sua import�ncia para a forma��o de uma nova elite.
Observa ainda como o comportamento da Corte funcionava de maneira teatral numa �poca, embora posterior �s revolu��es Americana e Francesa, em que a maioria das pessoas imaginava que a monarquia era a melhor forma de governo e que o rei era "o ungido de Deus".
Como explica o historiador, passou a nova sede da monarquia a contar com duas elites: os que foram reconhecidos e contemplados com favores por terem acompanhado a fam�lia real e que se apoiavam nas tradi��es herdadas, privil�gios e distin��es; e aqueles que, depois de ascender na escala social gra�as aos seus empreendimentos mercantis, queriam fazer brilhar no peito o metal das distin��es, ainda que tivessem de colocar a burra � disposi��o do pr�ncipe que, depois, virou rei. Os rec�m-chegados tentaram escrupulosamente regular a vida palaciana pela etiqueta, mas o cotidiano na col�nia j� se pautava por um certo relaxamento nos costumes. N�o poucas vezes essas elites entraram em conflito.
De estranhar � que Malerba, depois de t�o aprofundado trabalho de pesquisa, tenha dado como verdadeira e definitiva a informa��o de que 15 mil pessoas seguiram a fam�lia real em fuga para o Brasil, aceitando, sem qualquer contesta��o, o que leu em Hist�ria de El rei d. Jo�o VI primeiro rei constitucional de Portugal e do Brasil em que se referem os principais atos e ocorr�ncias de seu governo bem como algumas particularidades de sua vida privada, de Sim�o Jos� da Luz Soriano (1866), embora tamb�m cite Rocha Martins que, em A Corte de Junot em Portugal (Lisboa), calcula em 13.800 o n�mero de acompanhantes.
� verdade que, ao agir assim, de certo modo, apenas repetiu o que fizeram recentemente outros historiadores: Nestor Goulart Reis Filho, no ensaio "Urbaniza��o e modernidade entre o passado e o futuro (1808-1945)", inserto em Viagem Incompleta: a Experi�ncia Brasileira (1999), repassa a informa��o de que foram 12 mil os portugueses que acompanharam a fam�lia real, enquanto Lilia Moritz Schwarcz, em As Barbas do Imperador (1998), aumenta o n�mero para 20 mil. Curiosamente, os tr�s n�o levaram em conta o que se l� em Dom Jo�o VI no Brasil, livro de 1945, reeditado em 1996, de Oliveira Lima, que foi o primeiro a intuir que haveria exagero naqueles n�meros. Mesmo assim, calculou em oito mil o n�mero de fugitivos.
J� o arquiteto Nireu Oliveira Cavalcanti, professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, em sua tese de doutoramento "A cidade de S�o Sebasti�o do Rio de Janeiro: as muralhas, sua gente, os construtores (1710-1810)", de 1997, garante que n�o chegou a 500 o n�mero de pessoas que acompanharam dom Jo�o, contando inclusive os 14 membros da fam�lia real.
O curioso � que boa parte das fontes prim�rias consultadas por Cavalcanti tamb�m est� citada na bibliografia de Malerba, como, por exemplo, o c�dice 730 do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), "Papeis relativos � vinda da Familia Real para o Brasil", de 1808, que tem a lista de passageiros de quase todos os navios que chegaram �quela �poca (navio Princesa do Brasil, bergantim Voador, fragata Andorinha, navio Martim de Freitas e a "rela��o dos criados e mais pessoas que acompanharam a sua Alteza Real, para o Rio de Janeiro"); e o c�dice II, 35,4,1, da se��o de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), "Rela��o das pessoas imigradas a bordo do navio Almirante Nelson, vindas de Plymouth".
Da rela��o de obras impressas citadas por Malerba tamb�m constam livros consultados por Cavalcanti, como Mem�rias Para Servir � Hist�ria do Reino do Brasil, de Lu�s Gon�alves dos Santos, o padre Perereca, testemunha que citou cada um dos navios que chegaram, com a data e os nomes das pessoas importantes que vinham; Hist�ria do Imp�rio: a Elabora��o da Independ�ncia, de Tobias Monteiro (1981); e o j� citado Dom Jo�o VI no Brasil.
Em favor de Cavalcanti, h�, por�m, outras fontes prim�rias n�o consultadas por Malerba, como o c�dice 1978 do ANRJ, "Declara��o da sa�da da fam�lia real para o Brasil", 26/11/1807; o c�dice 39,32,32, da BNRJ, "Passageiros que se apresentaram na Pol�cia do Rio de Janeiro, em 31/7/1808, para se registrarem"; caixa 244, documentos 5 (Rela��o da Companhia dos Guardas-Marinhas) e 9 (bergantim Lebre), e caixa 245, documentos 5, 9, 31 e 58, referentes a v�rios passaportes de 1809, da se��o de avulsos do Rio de Janeiro do Arquivo Hist�rico Ultramarino, de Lisboa; e o c�dice 137/138-K-11 da Biblioteca da Ajuda, "Portugal em Roma", do padre Jos� de Castro, cuja lista � id�ntica � do padre Perereca na cita��o dos nobres e de pessoas importantes, como m�dicos, desembargadores, etc.
Como se v�, n�o h� d�vida de que, na quest�o, Cavalcanti est� mais bem fundamentado do que todos os demais historiadores. E tem a seu favor a l�gica. N�o d� para admitir que fosse poss�vel acomodar oito, 12, 13, 15 ou 20 mil pessoas nas naus que zarparam de Lisboa pouco antes da chegada do esfrangalhado ex�rcito de Junot. Sem contar que a retirada estrat�gica da fam�lia real, diante de uma invas�o, seria um segredo de Estado partilhado por poucas pessoas, o que � confirmado pela preocupa��o do intendente-geral de pol�cia em obrigar propriet�rios de lojas de bebidas e casas de pasto a fechar seus estabelecimentos para evitar a propaga��o de not�cias sobre as movimenta��es em torno do Pal�cio da Ajuda.
Al�m disso, a decis�o foi tomada em apenas dois dias, quando o pr�ncipe regente soube do iminente avan�o da tropa de Junot, o que tornaria imposs�vel arregimentar tanta gente. N�o se deve esquecer que, quando as naus se fizeram ao largo, a tropa de Junot j� estava �s portas de Lisboa.
Tudo isso est� documentalmente provado. Sem contar que n�o h� registros de sa�da em massa pelo porto de Lisboa nos meses e anos posteriores � fuga de d. Jo�o. Portanto, pode-se facilmente concluir que tudo o que se escreveu sobre a influ�ncia da Corte no Rio de Janeiro est� superdimensionado, o que inclui a informa��o de que milhares de cariocas foram desalojados para ceder suas resid�ncias aos que chegavam. Esse tipo de situa��o at� ocorreu, mas n�o nas propor��es que se l� na maioria dos livros que tratam do assunto. Como, infelizmente, Malerba n�o elucida esta quest�o, embora o seu trabalho mere�a muitos elogios, a esperan�a � que algum editor mais atilado se disponha a publicar o mais r�pido poss�vel a tese de Nireu Cavalcanti.
Jornal da Tarde 23/04/2001