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Livro: A Hist�ria � prova do tempo
Autor: Fran�ois Dosse
Editora: Unesp
Ano: 2001
N�mero de p�ginas: 322
Fran�ois Dosse ousa questionar os grandes mestres da historiografia francesa e a hegemonia dos Annales

Manolo Florentino

 Diz-se que a cada disputa surgida nas academias parisienses, in�meras amizades se rompem no Brasil. Um amigo afirma saber de casamentos razoavelmente s�lidos que n�o resistiram aos eternos rachas da �cole.
Caricaturas � parte, � inquestion�vel o peso das sucessivas vertentes historiogr�ficas francesas entre n�s. J� foi maior. Lembro de uma �poca em que, olhos vidrados pela aten��o redobrada, �amos aos franceses (n�o importava muito a quem) e logo nos junt�vamos para ''entend�-los'' - muitas vezes invent�vamos um novo livro. Penso nisso ao t�rmino do mais recente trabalho de Fran�ois Dosse em portugu�s.
E conven�o-me de que a grande proximidade entre os universos historiogr�ficos do Brasil e da Fran�a constitui importante chave de leitura de A Hist�ria � prova do tempo. Afinal, a quase todo historiador tupiniquim � imposs�vel deixar de reconhecer-se em muitos trechos do livro.
Trata-se da reuni�o de 14 artigos dirigidos a p�blico especializado, escritos de forma independente entre 1985 e 1996. Logo, a ningu�m deve surpreender as repeti��es de id�ias e argumentos, alguns dos quais, de resto, explicitados em A hist�ria em migalhas e Hist�ria do estruturalismo, os ensaios anteriores de Dosse publicados no Brasil. Tampouco deve-se perder de vista o fato de que seu eixo s�o as muta��es do horizonte intelectual franc�s - op��o leg�tima, mas que, dependendo do grau de generaliza��o imposto a determinadas assertivas, perde subst�ncia.
O pano de fundo s�o as grandes rupturas da historiografia francesa desde o s�culo XIX at� a �ltima d�cada. Fran�ois Dosse retrata com riqueza o panorama preponderante no oitocentos, vari�vel de acordo as conjunturas pol�ticas do contexto europeu, mas sempre calcado no factualismo e na preemin�ncia dos documentos escritos, que mal elidiam a reiterativa volta � identidade nacional como elemento organizador dos discursos. A esta hist�ria historicizante seguiu-se o predom�nio das diretrizes emanadas pela revista dos Annales, com sua �nfase na problematiza��o do tempo, na multiplica��o dos objetos do conhecimento, no alargamento da pr�pria no��o de fonte hist�rica e no relativo abandono da Fran�a como centro da reflex�o.
Mas o r�tulo Annales n�o encobre a profunda diversidade dos sucessivos grupos hegem�nicos no interior da revista. E a hist�ria viva de um Marc Bloch ou de um Lucien Febvre logo cedeu a vez � perspectiva at� certo ponto descarnada da ''Era Braudel'', a qual, ap�s o maio de 68, foi substitu�da por uma hist�ria profundamente resistente � s�ntese. Parte expressiva destas muta��es reafirmaram-se no �mbito de herm�ticas pretens�es cientificistas, mas tamb�m em meio a profundas crises de paradigmas (do marxismo e do estruturalismo, por exemplo). De certo modo, pois, A Hist�ria � prova do tempo disseca o cad�ver e uma �poca. Curiosamente, entretanto, em diversos momentos Fran�ois Dosse ressuscita o morto, sobretudo quando, na busca de novos paradigmas, parece mais preocupado em encontrar verdades absolutas do que em explorar a riqueza pr�pria da diversidade. Sem contar a virul�ncia verbal com que ataca �cones do passado (a Fran�ois Furet, por exemplo), mais caracter�stica de um militante do que de um intelectual.
A obra destaca especialmente os anos 80 e 90, �poca em que os historiadores franceses retomaram com f�lego o tema da identidade nacional, at� porque o livro de hist�ria se afirmava como mercadoria. A historicidade tendeu a roubar a cena em detrimento da estrutura, e intrincados problemas vieram � tona. Por exemplo, como restituir o sujeito ao centro da reflex�o sem regressar ao puro evento dominante no s�culo XIX? Como superar positiva e definitivamente a imobiliza��o estruturalista, t�o bem denunciada por Lawrence Stone j� em fins da d�cada de 1970? � diante destas indaga��es que o autor assinala o lugar estrat�gico das no��es de representa��o e mem�ria e, por meio delas, da obra de Paul Ricoeur (ali�s, alguns fragmentos do presente livro de Dosse acabaram por converter-se na not�vel biografia intelectual Paul Ricoeur, les sens dune vie, por ele publicada em 1997 e ainda in�dita entre n�s). Faltou-lhe, talvez, dar o devido valor � vertente micro-hist�rica, italiana na origem, mas hoje em dia definitivamente assentada, inclusive na Fran�a.
Outras partes do mundo acusaram movimentos semelhantes aos descritos em A Hist�ria � prova do tempo. No Brasil, de modo sempre tardio bebemos no copo da hist�ria historicizante, e depois nos de Bloch, Braudel, Le Goff e companhia. Mas se entre n�s, como na Fran�a, a na��o desde cedo converteu-se em eixo anal�tico, tal n�o ocorreu como resposta a qualquer tipo de ''inimigo externo'' - n�o tivemos a nossa Pr�ssia. Aqui o problema fundamental sempre foi o de determinar o exato lugar da diversidade que nos tece. Da� que a historiografia brasileira seja bem mais do que mera reverbera��o tardia de emana��es parisienses. Do que � prova a eterna atualidade de obras como as de Gilberto Freyre, Celso Furtado, S�rgio Buarque e Raymundo Faoro, dentre outras.
Jornal do Brasil  12/05/2001