O
s�culo XX marcou para sempre a sociedade brasileira por um processo ainda pouco
assimilado fora dos c�rculos jur�dicos: a constru��o da cidadania a partir
de uma legisla��o jur�dica. A hist�ria ainda n�o popularizada desse
processo que resultou no primeiro C�digo Civil Brasileiro, de 1916, foi das
mais fascinantes. Por quase cem anos, essa normatiza��o passou por um lento,
pol�mico e �rduo caminho que trouxe uma s�rie de conquistas. Se ainda n�o
parece ideal na teoria, atende de forma mais justa �s necessidades institu�das
em pa�ses ditos civilizados. Mas n�o demorou para que se come�asse a defender
sua urgente atualiza��o. Desde a promulga��o do C�digo Civil, os
trabalhadores conquistaram direitos, a mulher se emancipou e a propriedade teve
seu conceito ampliado.
A legisla��o civil teve de esperar at� 1975, quando juristas, advogados e pol�ticos
deram in�cio � sua revis�o. O novo texto, no entanto, s� foi conclu�do em
novembro do ano passado, 25 anos depois, e espera vota��o para entrar em
vigor. Demora do Legislativo? Certamente que sim. Dificilmente, por�m,
aconteceria de outra forma. A formula��o do c�digo civil de qualquer pa�s
sempre ser� complexa e lenta, tamanha sua import�ncia e amplitude, uma vez que
trata diretamente do cotidiano e das rela��es entre os cidad�os. 'A pergunta
real n�o � por que o C�digo Civil no Brasil demorou tanto para ficar pronto,
mas por que ele � t�o tardio, mesmo em rela��o aos vizinhos do continente',
diz a doutora em hist�ria Keila Grinberg, que lan�ou C�digo
Civil e Cidadania, de Keila Grinberg.
Escrito mais como uma introdu��o ao tema - como prop�e a cole��o
'Descobrindo o Brasil', da qual o volume faz parte -, o livro de Keila traz um
saboroso relato para leigos de como vem sendo constru�da a cidadania no Brasil.
Talvez por limita��o de abordagem e espa�o, Keila n�o se prop�s a discutir
os temas e as modifica��es que vir�o com o novo c�digo. Seu prop�sito foi
contar como, durante mais de oito d�cadas, v�rios governante brasileiros, dos
dois imperadores aos presidentes da Rep�blica, travaram calorosos debates at�
a promulga��o do C�digo de 1916.
A hist�ria do c�digo come�ou em 1823, um ano depois da Independ�ncia, como
uma prioridade para o novo pa�s que surgia. As primeiras propostas efetivas s�
vieram em 1854, depois da aprova��o do C�digo Comercial, quando o advogado
Augusto Teixeira de Freitas foi convocado pelo ministro da Justi�a, Nabuco de
Ara�jo, para elaborar uma reda��o e, em seguida, o c�digo. Freitas desistiu,
depois de alegar incompatibilidade com o governo imperial. Em 1872, o pr�prio
Ara�jo se comprometeu a finalizar o c�digo em cinco anos. N�o conseguiu. Uma
�ltima tentativa durante o imp�rio se deu em 1889, com participa��o do pr�prio
imperador, dom Pedro II. At�, finalmente, Cl�vis Bevil�qua assumir a miss�o
em 1899. Nos 17 anos seguintes, com uma longa interrup��o entre 1905 e 1912, o
c�digo seria redigido sob o fogo cruzado de vaidades pessoais e de cr�ticos
ferrenhos como Rui Barbosa.
A l�gica da necessidade de um C�digo Civil baseava-se no argumento de que sua
cria��o serviria como passo fundamental para a moderniza��o liberal
brasileira. Quanto melhores e mais avan�adas as leis, melhor e mais avan�ada a
sociedade - um passo adiante no caminho do progresso. At� ent�o, as leis civis
derivavam das Ordena��es Filipinas, influenciadas pela legisla��o romana e
inadequadas � realidade brasileira. Concluiu-se que sem uma normatiza��o
moderna seria imposs�vel legislar sobre rela��es de trabalho, quest�es de
heran�a e doa��es de bens. Para piorar, tal c�digo jamais conseguiria
abarcar todos os habitantes do pa�s capazes de constituir direitos e obriga��es
civis - comprar, vender, trabalhar, casar, fazer testamento, herdar, comparecer
em ju�zo como autor, r�u ou testemunha. Ou seja, serem cidad�os. Mas no
Brasil do s�culo XIX havia aqueles que tinham obriga��es, s� que eram
desprovidos de direitos, como defenderem-se em ju�zo.
Havia outros empecilhos. Como as rela��es patriarcais que ainda imperavam,
apesar da aboli��o, al�m da for�a da Igreja Cat�lica, que controlava, na pr�tica,
toda a vida civil, do nascimento � morte. Apesar da lei civil do casamento,
somente a celebra��o eclesi�stica era considerada leg�tima. De acordo com a
tradi��o portuguesa, o Estado brasileiro determinara � Igreja definir o que
era legal ou ilegal num ato civil, com poderes at� para decidir sobre bens e
propriedades. Essa inger�ncia marginalizava por completo quem n�o fosse cat�lico.
Nesse caldeir�o, se buscava um conceito do que deveria ser cidad�o. Os crit�rios
para isso envolviam cor de pele, sexo e religi�o. Num pa�s de diversidade
cultural e racial, marcado por quatro s�culos de escravid�o, definir o
conceito de cidad�o nunca foi uma tarefa das mais f�ceis. Sem contar a exclus�o
pol�tica e de cidadania a que foram submetidas as mulheres por uma sociedade
patriarcal - somente em 1930 elas conquistariam o direito de voto e, em 1962,
com o Estatuto da Mulher Casada, o direito de n�o pedir autoriza��o ao marido
para trabalhar.
Devagar, parte desses obst�culos foi superada at� 1916. E esse processo
contribuiu para que outros entraves fossem rompidos ao longo do s�culo XX. Se o
novo c�digo que dever� ser votado a partir deste ano no Congresso nascer�
'velho', ainda ser� discutido. Certamente trar� um corpo mais amplo de
determina��es que marcam as conquistas do povo brasileiro pela cidadania.
O livro de Keila ati�a a curiosidade no sentido de se conhecer mais sobre o
assunto e mostra que a hist�ria do direito, quando tratada numa linguagem mais
objetiva e jornal�stica, pode ser fascinante como um bom romance �pico. Que a
promulga��o do C�digo Civil do s�culo XXI estimule a vinda de outros relatos
sobre o tema.