Envie este texto para um(a) amigo(a)
 

Livro: Escrito para a eternidade
Autor: Emanuel Ara�jo
Editora: UnB
Ano: 2001
N�mero de p�ginas: 488
Colet�nea re�ne a literatura do tempo dos fara�s
Livro mostra uma produ��o teatral, ficcional e po�tica rica e diversificada

Elo�sio Paulo

Na civiliza��o ocidental, sempre que se pretende ir �s origens de algo, volta-se � Gr�cia. Em literatura, tem-se a Il�ada como uma esp�cie de marco zero. Para quest�es de teoria liter�ria, retorne-se � po�tica de Arist�teles; para id�ias pol�ticas, � Plat�o, e assim por diante. N�o s�o muitos os que se d�o ao trabalho de especular se o pensamento e a arte dos gregos teriam um antecedente importante. Pois essa � talvez a principal quest�o que ocorrer� ao leitor de Escrito para a eternidade (Editora UnB/Imprensa Oficial do Estado de S�o Paulo, 480 p�ginas), uma antologia da produ��o liter�ria no tempo dos fara�s eg�pcios. N�o por acaso, um dos livros mais citados pelo tradutor, Emanuel Ara�jo, � a obra de Plutarco intitulada Sobre �sis e Os�ris, em que o escritor grego recolheu, no in�cio da era crist�, fragmentos de diversas tradi��es para compor a mais completa narrativa do principal ciclo mitol�gico eg�pcio.
O interesse pela cultura eg�pcia no Brasil, como lamenta Emanuel Ara�jo na introdu��o, restringe-se quase � egiptomania "de consumo f�cil e n�o raro envolta em embustes esot�ricos", enquanto na Europa, desde o s�culo 19, sempre foi poss�vel encontrar bem fundamentados estudos sobre o assunto.
Naquela �poca, os egipt�logos come�avam a sentir-se seguros a respeito da decifra��o da escrita hierogl�fica, tradu��o ic�nica de uma l�ngua morta havia mil�nios. O tradutor brasileiro sabia a import�ncia da contribui��o que estava dando � incipiente egiptologia brasileira ao tornar acess�vel em portugu�s parte significativa do acervo liter�rio eg�pcio, como sugere a ep�grafe tirada de um texto do papiro Chester Beatty IV, em que se diz que os escribas "fizeram como herdeiros de si os livros e ensinamentos que escreveram".
Escrito para a eternidade re�ne dezenas de textos dos principais per�odos da hist�ria do Egito, os reinos M�dio e Novo, abrangendo cerca de um mil�nio. A maioria das pe�as � inequivocamente classific�vel como literatura e, como demonstra a extensa bibliografia do volume, h� muito tempo vem sendo considerada como tal pelos estudiosos. Muitas s�o f�ceis de enquadrar nos g�neros l�rico, dram�tico e narrativo, apesar de interfer�ncias dos dom�nios mitol�gico e pol�tico. Alguns desses textos revelam no��es de autoria, criatividade verbal e artif�cio ret�rico surpreendentemente pr�ximas daquelas que os gregos viriam a desenvolver um ou dois mil�nios mais tarde.
Por isso, nem s� Plutarco ser� lembrado, em se falando da prov�vel ascend�ncia eg�pcia de boa parte da cultura grega. Muitos epis�dios narrados nos papiros, estelas e �stracos descobertos pela arqueologia desde o in�cio do s�culo 19 - e agora pacientemente decifrados por Emanuel Ara�jo paralelamente ao cotejo com vers�es dos mais conhecidos egipt�logos - fazem lembrar obras e autores bem mais recentes. Como o Pantagruel, de Rabelais, a discuss�o do suic�dio como quest�o filos�fica por Albert Camus ou a poesia de �lvares de Azevedo, cujo Lembran�a de Morrer vem imediatamente � mem�ria ao ler este trecho das Reflex�es de um Desesperado: "A morte est� diante de mim hoje,/ como a cura de um doente,/ como sair pela porta ap�s um confinamento."
Entre os muitos m�ritos da antologia est� o de desfazer o imagin�rio estereotipado da cultura eg�pcia, principalmente a partir do cinema americano, que reduz o tempo dos fara�s a meia d�zia de no��es como sarc�fagos, tumbas escuras e m�mias ressurrectas. E o trabalho desmistificador de Ara�jo baseou-se numa exig�ncia escrupulosa, como deixa claro a introdu��o do volume, na qual se explicam minuciosamente os crit�rios utilizados e se justificam as op��es feitas pelo tradutor.
Ele discorre sobre as transforma��es sofridas pelo idioma eg�pcio ao longo de 3 mil anos e 32 dinastias fara�nicas, da l�ngua antiga ao dem�tico e ao copta, este �ltimo j� em caracteres gregos e na era crist�. Remetendo-se a seu manual A T�cnica do Livro (1986), Ara�jo d� uma r�pida aula sobre a confec��o do papiro, principal suporte dos textos traduzidos, lembrando que a concep��o editorial moderna herdou dos escribas eg�pcios a prefer�ncia pelo formato retangular. Por fim, discute a literariedade dos textos escolhidos, recorrendo ao formalismo russo, � dupla Wellek-Warren e ao cr�tico marxista Terry Eagleton.
O compromisso com a verdade dos textos eg�pcios foi levado ao ponto de deixar a tradu��o, em alguns casos, graficamente "suja" pelo excesso de indica��es referentes a lacunas do original, interpola��es necess�rias e omiss�es dos copistas.
Os textos traduzidos dividem-se em seis "literaturas": fant�stica, aventuresca, dram�tica, cr�tica (que talvez devesse ser chamada "pol�tica"), gn�mica (ou sapiencial) e l�rica. � �bvio que nem todos t�m a mesma qualidade como literatura, mas alguns merecem, consideradas a �poca e as condi��es em que foram escritos, ser chamados de obras-primas. � o caso da Contenda entre H�rus e Set, pequena pe�a disposta em forma teatral cujo enredo � cheio de reviravoltas alucinantes e inclui uma rela��o homossexual entre os dois deuses que disputam o trono de Os�ris.
Pelo menos uma cena da Contenda lembra a trag�dia grega (ou N�lson Rodrigues, se se preferir) e o artif�cio argumentativo de que �sis lan�a m�o para enganar Set � o que hoje chamar�amos tipicamente socr�tico. O coment�rio de Emanuel Ara�jo a sua tradu��o do trecho em que a deusa Hator (esp�cie de Afrodite eg�pcia) "desnuda sua vulva" diante do pai, designado por v�rios nomes como R�, Atum e Kh�pri, mostra o rigor de seu m�todo: ele enfileira vers�es em v�rios idiomas numa nota de rodap�, a maioria delas "acomodadas" a uma pressuposta pudic�cia da parte dos leitores.
Na literatura de aventuras, destacam-se as Mem�rias de Sanehet, uma obra cujas muitas c�pias encontradas por v�rios egipt�logos demonstram ter sido apreciada pelos leitores durante cerca de 700 anos. O relato � uma esp�cie de autobiografia funer�ria, ou seja, foi composto para transferir ao al�m os feitos do autor-defunto. O tradutor elogia o estilo aprimorado e sup�e que o texto tenha sido reescrito para ser lido como fic��o. O protagonista � um cortes�o cujas aventuras lembram certos epis�dios das Mil e Uma Noites.
Obra ainda mais apreciada foi a S�tira das Profiss�es, copiada durante um mil�nio. Nela, o autor d� conselhos ao filho enquanto o conduz � Casa da Vida, escola onde o menino aprender� o of�cio de escriba. No caminho, o pai compara os privil�gios dessa profiss�o �s agruras de outras, como as do ferreiro, do marceneiro e do lavrador. Apesar de ser um pouco repetitivo, defeito (para um leitor atual) de muitas pe�as inclu�das na antologia, o discurso tem momentos de humor e documenta o universo das profiss�es que um jovem livre podia escolher na �poca fara�nica.
O imenso prest�gio da palavra escrita na antiguidade eg�pcia evidencia-se em v�rios outros textos traduzidos por Ara�jo. Esse prest�gio se transferia aos autores e mesmo aos copistas, fun��o que exigia longa e dif�cil especializa��o. N�o se deve esquecer, a prop�sito, que os eg�pcios tinham um deus para a escrita: Tot, que acabou sendo identificado pelos neoplat�nicos ao deus-mensageiro grego Hermes (chamado, ent�o, Trismegisto).
As Profecias de Nef�rti lembram o Apocalipse, com sua descri��o de um futuro em que a desarmonia entre os homens atingiria uma escala c�smica, perturbando a natureza e trazendo a infelicidade para o Egito.
Aparentemente, o texto tem um sentido pol�tico e contribuiu para consolidar o poder do fara� Amen-em-hat I, mencionado como uma esp�cie de messias que viria reorganizar a Terra e restabelecer a paz. N�o � este, ali�s, o �nico caso de livro encomendado pelo fara� para ser utilizado como propaganda pol�tica, o que permite trazer a obra para o contexto atual, em que a propaganda � quase tudo, e n�o s� na pol�tica.
No cap�tulo da literatura gn�mica, em que se inclui a citada S�tira das Profiss�es, tamb�m merecem aten��o os ensinamentos de Ptah-hotep e Amen-em-hope. Ambos cont�m conselhos morais dirigidos � classe alta. O primeiro tem forma semelhante �s m�ximas t�o em voga no Ocidente mil�nios depois, na �poca de Pascal e dos moralistas franceses La Rochefoucauld e Vauvernargues. O segundo, escrito em versos, lembra mais os conselhos do seiscentista Baltasar Graci�n em sua Arte da Prud�ncia e � considerado por muitos especialistas como fonte do livro b�blico dos Prov�rbios, hip�tese subscrita pelo tradutor, que coteja v�rios conselhos de Amen-em-hope com o texto b�blico, demonstrando a enorme semelhan�a entre as duas obras.
Um tema considerado moderno � a proposta com que o autor das Lamenta��es de Kh�-kheper-R�-seneb inicia seu texto. Mencionado em um papiro e em uma inscri��o tumular como escritor dos mais famosos da antiguidade, ele defende a originalidade das id�ias, revelando surpreendente consci�ncia hist�rica num tempo em que a no��o de hist�ria era ausente: prop�e-se expressar "medita��es n�o conhecidas,/ ditos diferentes e novos,/ (...) livres das repeti��es comuns,/ n�o os ditos transmitidos e proferidos pelos antepassados".
O �ltimo texto da antologia (Canto de um Harpista) � a inequ�voca antecipa��o do tema horaciano do Carpe diem, como atesta o refr�o: "Faze do dia uma festa/ e n�o te canses!/ Eis que ningu�m pode levar suas coisas consigo,/ eis que ningu�m que parte volta de novo!"
Dos poemas l�ricos, o Canto de um Harpista � o �nico que resiste a uma leitura atual. Os outros t�m interesse apenas hist�rico, destitu�dos que s�o de intensidade emocional e criatividade imag�tica, com suas repeti��es excessivas e enfadonhas f�rmulas ret�ricas. J� que a B�blia � um dos termos de compara��o mais pr�ximos, o C�ntico dos C�nticos, atribu�do a Salom�o, supera de longe toda a amostra da l�rica amorosa eg�pcia selecionada pelo antologista.
Napole�o fez, em 1798, uma famosa expedi��o ao Egito, da qual resulta grande parte do conhecimento sobre a cultura do tempo dos fara�s. A equipe de estudiosos franceses produziu a Description de l'�gipte, obra mais importante sobre o assunto antes do trabalho de decifra��o executado por Champollion entre 1822 e 1824, que costuma ser considerado o in�cio da egiptologia como disciplina aut�noma.
Nestes dias em que pululam profetas descolados prevendo o fim do livro, � muito mais do que oportuna a �ltima li��o deixada pelo s�bio Emanuel Ara�jo: a de que o Brasil chega com s�culos de atraso � explora��o de um tesouro t�o valioso como a literatura eg�pcia, ao mesmo tempo que alguns pretendem estar na vanguarda do pensamento s� por terem embarcado na moda mais recente.
Estado de S�o Paulo 06/05/2001