O
dote foi institui��o europ�ia que os portugueses, colonizadores do Brasil no
s�culo XVI, trouxeram com eles, juntamente com o cristianismo e outros
acess�rios europeus. De acordo com a lei e os costumes portugueses, conceder um
dote a uma filha constitu�a dever dos pais, an�logo ao dever de alimentar e
cuidar dos filhos, e s� era limitado pela amplitude dos recursos que cada
fam�lia podia dispor. Na S�o Paulo do s�culo XVII, a maior parte dos
propriet�rios dava a suas filhas dotes de tal monta que, para o sustento do
novo casal, as esposas contribu�am com a maior parte das terras, do gado, das
ferramentas agr�colas e dos escravos necess�rios.
No Brasil do in�cio do s�culo XX, o costume n�o s� havia desaparecido como
as opini�es sobre a import�ncia de uma noiva entrar no casamento com um dote
haviam mudado de maneira radical. A modalidade produzira a figura do ca�a-dote,
jovens pobres ou remediados que sa�am atr�s de mo�as ricas para assegurar um
futuro melhor e que passaram a receber a reprova��o da sociedade.
Hoje, no entanto, em algumas partes do mundo, como na �ndia, por exemplo, o
dote ainda � praticado. Na Europa, em algumas partes da Alemanha o dote
continuou a existir at� depois da Primeira Guerra. E, nas zonas rurais de
alguns pa�ses parece que ainda existem remanescentes da modalidade.
Foi
para descobrir as raz�es do desaparecimento do dote no Brasil entre 1600 e 1900
que a historiadora norte-americana Muriel Nazzari escreveu o seu livro com base
em dados que levantou no Arquivo do Estado de S�o Paulo e no Arquivo do
Minist�rio da Justi�a, utilizando processos judiciais brasileiros para a
legaliza��o da transfer�ncia de bens causa mortis. Segundo a autora, o
que torna estes invent�rios t�o �teis para o estudo da pr�tica do dote �
que, segundo o direito de fam�lia portugu�s e brasileiro, o dote era
considerado um adiantamento da heran�a de uma filha.
At�
meados do s�culo XVIII, em S�o Paulo, o casamento era para os que possu�am
bens, n�o para os pobres. No s�culo XVII, quando as filhas dos propriet�rios
paulistas casavam, os pais se privavam de consider�vel quantidade de bens
destinada aos dotes, muitas vezes concedendo dotes v�rias vezes maiores do que
o que os filhos homens iriam herdar. Mais ainda: considerava-se que era
obriga��o dos filhos trabalhar duramente para colaborar com os dotes de suas
irm�s. Esse trabalho duro, muitas vezes, inclu�a participar de uma bandeira,
entrando no sert�o para capturar �ndios, pois, al�m de proporcionar uma renda
a seus donos mediante o trabalho, os ind�genas podiam ser usados como
mercadoria.
Em
seus estudos, Muriel Nazzari constatou que, no s�culo XVII, na cidade de S�o
Paulo, praticamente todas as fam�lias propriet�rias dotavam cada uma de suas
filhas, beneficiando-as com a concess�o de dotes que excediam em muito o
montante a ser herdado mais tarde por seus irm�os. Em contraposi��o, no
in�cio do s�culo XIX, muito antes de haver desaparecido o costume do dote,
menos de ter�a parte das fam�lias propriet�rias dotavam suas filhas e, quando
o faziam, concediam dotes comparativamente menores e de conte�do muito
diferente, e algumas fam�lias dotavam apenas uma ou duas de suas v�rias
filhas.
Para
explicar essa altera��o de comportamento, Muriel Nazzari procura demonstrar
que a pr�tica transformou-se devido a mudan�as na sociedade, na fam�lia e no
casamento. �O Brasil mudou, de uma sociedade hier�rquica, tipo ancien
r�gime, no qual eram primordiais a posi��o social, a fam�lia e as
rela��es clientelistas, para uma sociedade mais individualista, em que cada
vez mais passaram a dominar o contrato e o mercado�, explica a historiadora.
Em outras palavras: uma sociedade verticalmente repartida em cl�s familiares
transformou-se gradativamente numa sociedade dividida horizontalmente em
classes.
Entre
o s�culo XVII e o final do s�culo XIX, o poder da fam�lia extensa entrou em
decad�ncia e o casamento transformou-se, de quest�o de propriedade, em
relacionamento reconhecido como de �amor�, cujos esteios econ�micos n�o
eram explicitados. Ao mesmo tempo, �fam�lia� e �empresa� passaram a
estar formalmente separadas. Sem contar que o poder patriarcal sobre filhos e
filhas diminuiu consideravelmente. Segundo Nazzarri, estas transforma��es
tiveram in�cio no Brasil a partir do s�culo XVIII e continuaram durante todo o
s�culo XIX de maneira gradual.
Como
explica Muriel Nazzari, na S�o Paulo do s�culo XVII, o princ�pio organizador
n�o era a pequena fam�lia nuclear, mas o cl� familiar, ou seja, a parentela
inclu�da. O cl� conduzia os neg�cios, disputava o poder pol�tico e
organizava as bandeiras. Ou seja, o dote n�o era uma institui��o perif�rica
que interessava apenas �s mulheres, mas sim um elemento vital na economia da
sociedade.
Em
seus estudos, a historiadora constatou que os dotes muito grandes ajudam a
explicar por que praticamente todas as filhas de fam�lias propriet�rias se
casavam. Esse extremo favorecimento das filhas constitu�a uma estrat�gia
utilizada para consolidar o cl�, princ�pio organizador do empreendimento
militar, pol�tico e produtivo. Os grandes dotes estimulavam os homens a
casar-se e os casamentos acrescentavam genros � fam�lia, ao mesmo tempo em que
ajudavam os filhos a se estabelecer. Diante de tantos recursos em jogo, � claro
que o casamento era arranjado, n�o s� pelo pai, mas por ambos os genitores. De
qualquer modo, a fam�lia da noiva era sempre mais influente no arranjo,
determinando onde o casal iria morar e na fiscaliza��o sobre como os bens eram
administrados.
Segundo
a autora, o fato de portugueses rec�m-chegados a S�o Paulo serem
predominantemente homens explica por que muitas antigas fam�lias paulistas
tra�am sua linhagem at� os ancestrais pioneiros quase exclusivamente pela
linha feminina. Afinal, a maioria dos portugueses rec�m-chegados no s�culo
XVII n�o era nobre, enquanto suas esposas pertenciam �s poderosas fam�lias de
S�o Paulo e haviam contribu�do com a maior parte dos bens do casal.
De
acordo com a historiadora, no s�culo XVIII, a Coroa passou a controlar a
autonomia militar dos cl�s paulistas pelo estabelecimento de duas
organiza��es militares controladas pelo Estado: um ex�rcito profissional e as
companhias de ordenan�as (p�g.94). Mas parece que a autora errou em sua
avalia��o: afinal, a exist�ncia de uma tropa de linha e uma de ordenan�as
era comum em todo o Imp�rio portugu�s no s�culo XVIII, na Am�rica, na
�frica e na �sia. Lembra ainda a autora que, no s�culo anterior, os cl�s e
seus auxiliares �ndios � que constitu�am todo o poder militar, uma vez que as
bandeiras eram dirigidas por membros dos cl�s que as financiavam e controlavam.
J�
em meados do s�culo XIX, o decl�nio da pr�tica do dote era evidente em todas
as classes, pois, segundo os levantamentos da autora, perto de metade das
fam�lias da quarta parte mais rica da amostra n�o dotou suas filhas. Das
fam�lias que ainda concediam dotes, a maioria dotou apenas uma ou duas filhas
casadas, e o tamanho desses dotes em rela��o � heran�a das filhas era muito
menor do que no per�odo colonial.
Em
meados do s�culo XIX, os pais j� tratavam filhos e filhas com eq�idade em
rela��o � heran�a, embora favorecessem os filhos nas despesas com
educa��o, por exemplo. � prov�vel que essa transforma��o do pacto
matrimonial tivesse rela��o com o surgimento do com�rcio no s�culo XVIII,
que permitia aos homens com capacidade empresarial acumular fortunas que n�o
tinham v�nculo algum com seu capital inicial.
Assim,
como os homens do s�culo XIX, mesmo os da elite, eram capazes de ganhar a vida
sem possuir os meios de produ��o, e, por isso, n�o mais precisavam casar para
receber esses meios, eles j� n�o estavam t�o dispon�veis para serem
comprados. Por isso, os dotes come�aram a se tornar irrelevantes, o que pode
explicar o decl�nio da pr�tica. Por outro lado, passaram a ser as mulheres, e
n�o os homens, que estavam dispon�veis para aquisi��o, n�o mais por um
pre�o pago a suas fam�lias, como nas sociedades primitivas, mas pela promessa
do sustento. No entanto, como observa Nazzari, essa mudan�a, embora possa ter
sido pior para as filhas de propriet�rios, aumentou a possibilidade de
casamento legal para as mulheres que nada possu�am. Em conseq��ncia, uma
propor��o maior da popula��o passou a casar-se.
Por
estas observa��es, v�-se a import�ncia deste estudo de Muriel Nazzari, que
busca responder como as altera��es na pr�tica familiar estavam vinculadas a
mudan�as sociais mais amplas. Desde j�, este livro constitui instrumento
fundamental para se compreender as transforma��es que ocorreram na vida em
sociedade na cidade de S�o Paulo e, por extens�o, no Brasil.