Envie este texto para um(a) amigo(a)
 

Livro: O desaparecimento do dote: mulheres, fam�lia e mudan�a social em S�o Paulo, 1600-1900
Autor: Muriel Nazzari 
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2001
N�mero de p�ginas: 357
O dote
Estudo mostras as mudan�as que levaram ao fim do dote nos casamentos realizados em S�o Paulo

Adelto Gon�alves

O dote foi institui��o europ�ia que os portugueses, colonizadores do Brasil no s�culo XVI, trouxeram com eles, juntamente com o cristianismo e outros acess�rios europeus. De acordo com a lei e os costumes portugueses, conceder um dote a uma filha constitu�a dever dos pais, an�logo ao dever de alimentar e cuidar dos filhos, e s� era limitado pela amplitude dos recursos que cada fam�lia podia dispor. Na S�o Paulo do s�culo XVII, a maior parte dos propriet�rios dava a suas filhas dotes de tal monta que, para o sustento do novo casal, as esposas contribu�am com a maior parte das terras, do gado, das ferramentas agr�colas e dos escravos necess�rios.
No Brasil do in�cio do s�culo XX, o costume n�o s� havia desaparecido como as opini�es sobre a import�ncia de uma noiva entrar no casamento com um dote haviam mudado de maneira radical. A modalidade produzira a figura do ca�a-dote, jovens pobres ou remediados que sa�am atr�s de mo�as ricas para assegurar um futuro melhor e que passaram a receber a reprova��o da sociedade.
Hoje, no entanto, em algumas partes do mundo, como na �ndia, por exemplo, o dote ainda � praticado. Na Europa, em algumas partes da Alemanha o dote continuou a existir at� depois da Primeira Guerra. E, nas zonas rurais de alguns pa�ses parece que ainda existem remanescentes da modalidade.
 Foi para descobrir as raz�es do desaparecimento do dote no Brasil entre 1600 e 1900 que a historiadora norte-americana Muriel Nazzari escreveu o seu livro com base em dados que levantou no Arquivo do Estado de S�o Paulo e no Arquivo do Minist�rio da Justi�a, utilizando processos judiciais brasileiros para a legaliza��o da transfer�ncia de bens causa mortis. Segundo a autora, o que torna estes invent�rios t�o �teis para o estudo da pr�tica do dote � que, segundo o direito de fam�lia portugu�s e brasileiro, o dote era considerado um adiantamento da heran�a de uma filha.
At� meados do s�culo XVIII, em S�o Paulo, o casamento era para os que possu�am bens, n�o para os pobres. No s�culo XVII, quando as filhas dos propriet�rios paulistas casavam, os pais se privavam de consider�vel quantidade de bens destinada aos dotes, muitas vezes concedendo dotes v�rias vezes maiores do que o que os filhos homens iriam herdar. Mais ainda: considerava-se que era obriga��o dos filhos trabalhar duramente para colaborar com os dotes de suas irm�s. Esse trabalho duro, muitas vezes, inclu�a participar de uma bandeira, entrando no sert�o para capturar �ndios, pois, al�m de proporcionar uma renda a seus donos mediante o trabalho, os ind�genas podiam ser usados como mercadoria.
Em seus estudos, Muriel Nazzari constatou que, no s�culo XVII, na cidade de S�o Paulo, praticamente todas as fam�lias propriet�rias dotavam cada uma de suas filhas, beneficiando-as com a concess�o de dotes que excediam em muito o montante a ser herdado mais tarde por seus irm�os. Em contraposi��o, no in�cio do s�culo XIX, muito antes de haver desaparecido o costume do dote, menos de ter�a parte das fam�lias propriet�rias dotavam suas filhas e, quando o faziam, concediam dotes comparativamente menores e de conte�do muito diferente, e algumas fam�lias dotavam apenas uma ou duas de suas v�rias filhas.
Para explicar essa altera��o de comportamento, Muriel Nazzari procura demonstrar que a pr�tica transformou-se devido a mudan�as na sociedade, na fam�lia e no casamento. �O Brasil mudou, de uma sociedade hier�rquica, tipo ancien r�gime, no qual eram primordiais a posi��o social, a fam�lia e as rela��es clientelistas, para uma sociedade mais individualista, em que cada vez mais passaram a dominar o contrato e o mercado�, explica a historiadora. Em outras palavras: uma sociedade verticalmente repartida em cl�s familiares transformou-se gradativamente numa sociedade dividida horizontalmente em classes.
Entre o s�culo XVII e o final do s�culo XIX, o poder da fam�lia extensa entrou em decad�ncia e o casamento transformou-se, de quest�o de propriedade, em relacionamento reconhecido como de �amor�, cujos esteios econ�micos n�o eram explicitados. Ao mesmo tempo, �fam�lia� e �empresa� passaram a estar formalmente separadas. Sem contar que o poder patriarcal sobre filhos e filhas diminuiu consideravelmente. Segundo Nazzarri, estas transforma��es tiveram in�cio no Brasil a partir do s�culo XVIII e continuaram durante todo o s�culo XIX de maneira gradual.
Como explica Muriel Nazzari, na S�o Paulo do s�culo XVII, o princ�pio organizador n�o era a pequena fam�lia nuclear, mas o cl� familiar, ou seja, a parentela inclu�da. O cl� conduzia os neg�cios, disputava o poder pol�tico e organizava as bandeiras. Ou seja, o dote n�o era uma institui��o perif�rica que interessava apenas �s mulheres, mas sim um elemento vital na economia da sociedade.
Em seus estudos, a historiadora constatou que os dotes muito grandes ajudam a explicar por que praticamente todas as filhas de fam�lias propriet�rias se casavam. Esse extremo favorecimento das filhas constitu�a uma estrat�gia utilizada para consolidar o cl�, princ�pio organizador do empreendimento militar, pol�tico e produtivo. Os grandes dotes estimulavam os homens a casar-se e os casamentos acrescentavam genros � fam�lia, ao mesmo tempo em que ajudavam os filhos a se estabelecer. Diante de tantos recursos em jogo, � claro que o casamento era arranjado, n�o s� pelo pai, mas por ambos os genitores. De qualquer modo, a fam�lia da noiva era sempre mais influente no arranjo, determinando onde o casal iria morar e na fiscaliza��o sobre como os bens eram administrados.
Segundo a autora, o fato de portugueses rec�m-chegados a S�o Paulo serem predominantemente homens explica por que muitas antigas fam�lias paulistas tra�am sua linhagem at� os ancestrais pioneiros quase exclusivamente pela linha feminina. Afinal, a maioria dos portugueses rec�m-chegados no s�culo XVII n�o era nobre, enquanto suas esposas pertenciam �s poderosas fam�lias de S�o Paulo e haviam contribu�do com a maior parte dos bens do casal.
De acordo com a historiadora, no s�culo XVIII, a Coroa passou a controlar a autonomia militar dos cl�s paulistas pelo estabelecimento de duas organiza��es militares controladas pelo Estado: um ex�rcito profissional e as companhias de ordenan�as (p�g.94). Mas parece que a autora errou em sua avalia��o: afinal, a exist�ncia de uma tropa de linha e uma de ordenan�as era comum em todo o Imp�rio portugu�s no s�culo XVIII, na Am�rica, na �frica e na �sia. Lembra ainda a autora que, no s�culo anterior, os cl�s e seus auxiliares �ndios � que constitu�am todo o poder militar, uma vez que as bandeiras eram dirigidas por membros dos cl�s que as financiavam e controlavam.
J� em meados do s�culo XIX, o decl�nio da pr�tica do dote era evidente em todas as classes, pois, segundo os levantamentos da autora, perto de metade das fam�lias da quarta parte mais rica da amostra n�o dotou suas filhas. Das fam�lias que ainda concediam dotes, a maioria dotou apenas uma ou duas filhas casadas, e o tamanho desses dotes em rela��o � heran�a das filhas era muito menor do que no per�odo colonial.
Em meados do s�culo XIX, os pais j� tratavam filhos e filhas com eq�idade em rela��o � heran�a, embora favorecessem os filhos nas despesas com educa��o, por exemplo. � prov�vel que essa transforma��o do pacto matrimonial tivesse rela��o com o surgimento do com�rcio no s�culo XVIII, que permitia aos homens com capacidade empresarial acumular fortunas que n�o tinham v�nculo algum com seu capital inicial.
Assim, como os homens do s�culo XIX, mesmo os da elite, eram capazes de ganhar a vida sem possuir os meios de produ��o, e, por isso, n�o mais precisavam casar para receber esses meios, eles j� n�o estavam t�o dispon�veis para serem comprados. Por isso, os dotes come�aram a se tornar irrelevantes, o que pode explicar o decl�nio da pr�tica. Por outro lado, passaram a ser as mulheres, e n�o os homens, que estavam dispon�veis para aquisi��o, n�o mais por um pre�o pago a suas fam�lias, como nas sociedades primitivas, mas pela promessa do sustento. No entanto, como observa Nazzari, essa mudan�a, embora possa ter sido pior para as filhas de propriet�rios, aumentou a possibilidade de casamento legal para as mulheres que nada possu�am. Em conseq��ncia, uma propor��o maior da popula��o passou a casar-se.
Por estas observa��es, v�-se a import�ncia deste estudo de Muriel Nazzari, que busca responder como as altera��es na pr�tica familiar estavam vinculadas a mudan�as sociais mais amplas. Desde j�, este livro constitui instrumento fundamental para se compreender as transforma��es que ocorreram na vida em sociedade na cidade de S�o Paulo e, por extens�o, no Brasil.
NetHist�ria 06/04/2002