Formado
por 12 ensaios distintos de historiadores brasileiros e portugueses, O
Antigo Regime nos Tr�picos: a din�mica imperial portuguesa (s�culos XVI-XVIII)
constitui um conjunto homog�neo que d� uma nova vis�o do imp�rio
portugu�s, mostrando-o como uma rede de rela��es econ�micas, pol�ticas,
jur�dicas e sociais capaz de articular sociedades diversas, abrigar poderes
aut�nomos e interesses comerciais conflitantes. Do lado brasileiro, sem a
vis�o nacionalista, que fazia descobrir a �na��o� antes mesmo de ela
existir - como a superada teoria de que as inconfid�ncias mineira, carioca e
baiana formam um processo que redundaria na Independ�ncia em 1822. E, do lado
portugu�s, questionando uma s�rie de id�ias estabelecidas, revelando um peso
insuspeitado de poderes, nomeadamente das c�maras e das institui��es
eclesi�sticas e senhoriais.
Como bem dizem os seus organizadores - Jo�o Fragoso, professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Maria Fernanda Bicalho e Maria de F�tima Gouv�a, da
Universidade Federal Fluminense -, este trabalho � fruto de uma perspectiva
historiogr�fica inovadora que vem surgindo e se impondo em teses de
doutoramento e em disserta��es de mestrado. Em outras palavras: s�o trabalhos
que est�o baseados maci�amente em documenta��o manuscrita de arquivos
brasileiros e portugueses e que resultaram de anos de dedica��o e pesquisa.
Bem diferente daqueles trabalhos que alguns acad�micos e �curiosos� ainda
insistem em escrever, repetindo informa��es falsas e disparates que encontram
em livros impressos e cuja origem j� se perdeu na poeira do tempo. Como
ocorreu, por exemplo, durante as comemora��es dos 500 Anos do Descobrimento do
Brasil, quando v�rios desses livros de ocasi�o ocuparam a lista dos mais
vendidos, ludibriando a boa-f� de milhares de leitores. Ali�s, seria
recomend�vel que o leitor ficasse cada vez mais exigente e, antes de comprar um
livro de Hist�ria, consultasse a sua bibliografia, constatando se a origem das
informa��es vem de documenta��o pesquisada em arquivos ou se � mera
repeti��o de dados de outros livros.
Dividido
em quatro partes, o livro abre-se com �As Conjunturas do Mare Lusitano�,
tr�s cap�tulos que analisam distintas conjunturas s�cio-econ�micas,
interligando diferentes regi�es do Atl�ntico ao longo dos s�culos XVI, XVII e
XVIII. No primeiro cap�tulo, �A forma��o da economia colonial no Rio de
Janeiro e de sua primeira elite senhorial (s�culos XVI e XVII)�, Jo�o
Fragoso observa que os conquistadores criariam no Brasil uma �nobreza� de
origem �pobre�, no sentido de que n�o descendia da primeira aristocracia do
reino. �Na verdade, vinha de casas preteridas em Portugal ou ent�o
constitu�das em meio � �infla��o de honras� ligadas � expans�o
ultramarina. �Pobre� tamb�m no sentido econ�mico, ou seja, sem muito
cabedal�, afirma.
Segundo
Fragoso, nesse contexto, n�o � de se estranhar que, nas �melhores fam�lias
do Rio�, encontrem-se mercadores - n�o de grosso trato -, sertanistas,
m�dicos etc. Isso sugere que esta primeira elite, em sua forma��o, n�o tinha
�problemas� em rela��o ao mercado e talvez ao trabalho, este no seu
sentido mais amplo. Da mesma forma, era suficientemente tolerante para aceitar
crist�os-novos, sempre, � claro, dentro de certos limites.
Por
�ltimo, observa Fragoso, se foi certo que aquela nobreza e suas pr�ticas de
acumula��o, como fen�menos majorit�rios, cederam espa�os, em algum momento
do setecentos, a outras rela��es sociais mais baseadas no com�rcio, a
pr�tica da exclus�o social do p�blico (para al�m dos escravos) continuaria
como uma das chaves para a acumula��o de riquezas nas m�os de um pequeno
grupo de pessoas. O que explicaria a escandalosa concentra��o de renda que
existe hoje no Brasil, uma das mais injustas do mundo.
Nesse
mesmo diapas�o, em outro ensaio, �As elites econ�micas nos quadros do
imp�rio portugu�s: o exemplo do Rio Grande do Sul (s�culo XVIII)�, Helen
Os�rio, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostra que a
arremata��o dos contratos foi um poderoso instrumento de acumula��o nas
m�os de negociantes do Rio de Janeiro, como fora na Europa. Sob a generosa
sombra do Estado, por meio de transa��es em um mercado restrito e desde uma
posi��o privilegiada, da usura e da especula��o, enfim, dos instrumentos
propiciados pelo capital mercantil, puderam refor�ar seu lugar na elite
econ�mica colonial.
Em
�A constitui��o do Imp�rio portugu�s. Revis�o de alguns enviesamentos
correntes�, Ant�nio Manuel Hespanha, da Faculdade de Direito da Universidade
Nova de Lisboa, contesta a tradicional imagem de um Imp�rio centrado, dirigido
e drenado unilateralmente pela metr�pole. Lembra, por exemplo, que desde o
in�cio do s�culo XVIII, a propriedade - ou, pelo menos, as serventias - de
todos os of�cios de Justi�a (not�rios e escriv�es) estava � disposi��o
das elites econ�micas das col�nias, nomeadamente no Brasil, ressaltando que a
import�ncia desse fato n�o pode ser desconhecida ou subestimada. Ou seja,
cartas r�gias, concess�es de sesmarias, vendas e partilhas de propriedades,
requerimentos de gra�as r�gias, tudo passava pelas m�os das elites coloniais
Para
Hespanha, esse novo enfoque sobre as rela��es metr�pole-col�nia - promovido
por meio de consultas a documentos da �poca - vai obrigar � revis�o de uma
grande quantidade de trivialidades pouco consistentes sobre o imperialismo e a
explora��o metropolitanos ou a redu��o das tens�es pol�ticas no Brasil
colonial � tens�o entre a col�nia e o reino, o que vinha provocando, por sua
vez, exageros sobre as raz�es que levaram �s rupturas da independ�ncia.
J�
Nuno Gon�alo F. Monteiro, do Instituto de Ci�ncias Sociais da Universidade de
Lisboa, em �Trajet�rias sociais e governo das conquistas: notas preliminares
sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da �ndia nos s�culos XVII
e XVIII�, observa que, antes da partida da fam�lia real para o Rio de Janeiro
em 1807, foram pouco freq�entes os casos de enlace matrimonial das elites
brasileiras e a descend�ncia da primeira nobreza do reino, ao contr�rio do que
ocorreu, por exemplo, na �ndia. O historiador conclui que a riqueza, mesmo
quando copiosa, n�o chegava para abrir as portas ao topo da hierarquia social
de uma monarquia intercontinental de cujos centros educacionais e de produ��o
cultural se procurava preservar o exclusivo europeu.
Monteiro
destaca que a nomea��o de governadores rein�is e t�o nobres quanto poss�vel
visava, na Am�rica portuguesa como em outras paragens, a colocar no comando de
cada capitania quem maior independ�ncia se supunha assegurar em rela��o aos
interesses ou fac��es locais que, como Hespanha mostra em ensaio anterior,
dominavam praticamente todas as esferas do poder provinciano. Ou seja, a base do
recrutamento dos governadores radicava nas elites rein�is, ou mais exatamente,
em oficiais do ex�rcito. Obviamente, nas capitanias de menor import�ncia
admitia-se para governador pessoas de hierarquia inferior, �s vezes at� sem
fidalguia de nascimento ou com ra�zes �mec�nicas� pr�ximas.
Em
�Din�mica do com�rcio intracolonial: Geribitas, panos asi�ticos e guerra no
tr�fico angolano de escravos (s�culo XVIII)�, Roquinaldo Ferreira, que faz
doutoramento em Hist�ria na Universidade da Calif�rnia Los Angeles, observa
que, na segunda metade do s�culo XVIII, o tr�fico angolano era integrante de
um sistema mercantil cujo centro estava no centro-sul do Brasil. Entre 1736 e
1770, comparando com Lisboa, as tr�s pra�as mercantis brasileiras que
negociavam com Luanda - Salvador, Recife e Rio de Janeiro -, usufru�am larga
vantagem no com�rcio direto com Angola. Seus navios respondiam por cerca de 85%
de toda a movimenta��o no porto de Luanda, enquanto apenas 15% vinham de
Portugal. Do Brasil, iam para Angola n�o s� os g�neros para o com�rcio dos
sert�es - �lcool, fazendas asi�ticas, p�lvora e armamentos -, mas tamb�m
soldados e cavalos para proteger e expandir o controle portugu�s sobre Angola.
Em
1772, como observa o historiador, a invers�o de pap�is era tal que levou os
administradores portugueses a dizerem que �n�o parece Portugal o pa�s
dominante das suas Am�ricas, mas s�o elas que representam o pa�s dominante de
Portugal� (AHU, Angola, cx. 56, avulsos, doc. 46). Em 1768, grande parte do
com�rcio com o Oriente, de acordo com a pesquisa de Roquinaldo Ferreira, havia
ca�do nas m�os de negociantes americanos, segundo os membros da Junta
de Com�rcio de Lisboa. Sob o pretexto de buscar escravos por melhores pre�os
em Mo�ambique, esses negociantes estavam enviando navios diretamente ao
Oriente. Este com�rcio n�o era apenas decorr�ncia do esvaziamento econ�mico
da metr�pole, mas tamb�m uma prova do papel crucial que as pra�as mercantis
do Rio de Janeiro e Salvador tinham no Imp�rio portugu�s.
Nesse
sentido, o �ltimo ensaio do livro, �T�xteis e metais preciosos: novos
v�nculos do com�rcio indo-brasileiro (1808-1820)�, de Lu�s Frederico Dias
Antunes, que faz doutoramento em Hist�ria na Universidade Nova de Lisboa,
mostra como o Brasil passou a ocupar, no final do s�culo XVIII e in�cio do
XIX, o papel de principal p�lo produtivo com Goa, ficando Portugal como o
centro de decis�o pol�tica, o que contesta uma vis�o estereotipada vigente
at� h� pouco tempo de que os portos de Rio de Janeiro e Salvador se resumiam a
escalas para as naus da carreira da �ndia.
�
poss�vel que algumas das observa��es constantes neste livro n�o agradem a
historiadores que preferem conclus�es mais assentadas na historiografia
tradicional. Mas � assim que se faz a hist�ria, com pesquisa e
interpreta��o. Quem n�o concordar com as conclus�es dos ensa�stas s� ter�
um rem�dio: mergulhar a fundo nos arquivos e trazer novos subs�dios e, quem
sabe, novas interpreta��es. Foi o que fizeram os autores destes ensaios, que,
produtos de intensa pesquisa, abrem novas perspectivas para o estudo da �din�mica
imperial portuguesa�.