Os
nove trabalhos reunidos por Alcir P�cora, em M�quina de G�neros,
analisam escritos de diferentes autores dos s�culos XVI, XVII e XVIII. Embora
na maioria j� publicados em colet�neas e revistas ou como pref�cios de outros
livros, os ensaios t�m um ponto em comum: procuram mostrar que os diferentes
g�neros ret�rico-po�ticos das obras analisadas "n�o s�o formas em que
se vazam conte�dos externos a elas, mas determina��es convencionais e
hist�ricas constitutivas dos sentidos veross�meis de cada um desses
textos".
Professor livre-docente de teoria liter�ria da
Universidade de Campinas (Unicamp), onde leciona desde 1977, e profundo
conhecedor das conven��es letradas do per�odo assinalado, P�cora mostra que
o que, muitas vezes, os estudiosos tomam genericamente como poema s�o sonetos,
madrigais, romances pastoris, ep�stolas sat�ricas, ou seja, formas po�ticas
definidas, bem diferentes entre si, com teoria, hist�ria e efeitos
particulares. E que, muitos cr�ticos, sem levar em considera��o essas
conven��es, acabam tomando por reflexo da realidade que circundaria
determinado poeta o que, na verdade, seria apenas uma conven��o liter�ria da
�poca. Foi assim que se deu n�o s� no s�culo XIX como no XX, quando muitos
bi�grafos, � falta de documentos, retiraram da mat�ria po�tica infundadas
conclus�es sobre a vida do biografado.
Um dos melhores ensaios do livro - e o mais
extenso - � o que abre o volume: "A Arte das Cartas Jesu�ticas do
Brasil" estuda a estrutura formal dessas ep�stolas, especialmente das que
os inacianos - Manuel de N�brega, em particular - escreveram no s�culo XVI, a
partir do Brasil, para seus superiores na Europa, relatando o novo mundo que
descobriam.
Outro
ponto alto � o ensaio "As Artes e os Feitos" em que o autor tra�a
paralelos entre Cam�es e Vieira. No primeiro, diz, o feito � passado que a
epop�ia presente torna sublime. Para ele, Cam�es, sem deixar de acusar a
baixeza dos seus contempor�neos, reflete a tristeza em que decai o Reino, ao
mesmo tempo em que mant�m a esperan�a no futuro. Em Vieira, o autor detecta
igualmente inquietude sobre o �nimo da gente e o estado desolado do Reino, de
que � cr�tico ainda mais acerbo. Em ambos os casos, diz P�cora, � em sua
arte que Cam�es e Vieira julgam depositar-se a esperan�a poss�vel de um
destino portugu�s imperial.
No
�ltimo ensaio do livro, "Parnaso de Bocage, rei dos brejeiros",
P�cora igualmente procura determinar o g�nero, com o objetivo de que os
conte�dos dos poemas bocagianos n�o sejam tomados literalmente, o que
provocaria equ�vocos de interpreta��o. Sem essas preocupa��es, diz, n�o
seria poss�vel compreender como Bocage uma vez louva a Revolu��o Francesa,
outra vez chora a morte na guilhotina de Maria Antonieta ou sa�da Napole�o
para, em seguida, elogiar o almirante ingl�s Nelson.
Ao
analisar a tem�tica libertina de Bocage, conclui que, em seus poemas er�ticos,
de sua �ltima fase, n�o h� mais o vocabul�rio chulo ou debochado da s�tira,
como em "A Manteigui", escrita � �poca em que o poeta esteve na
�ndia. Pelo contr�rio, nos poemas er�ticos, o que o autor detecta � um
estilo s�rio e solene, por vezes at� sentencioso, que seguiria o modelo
franc�s de Th�rese Philosophe, obra t�pica do Baixo Iluminismo, para
se utilizar aqui uma express�o do historiador norte-americano Robert Darnton.
A
argumenta��o de P�cora seria irrepreens�vel, se n�o fosse por um detalhe
fatal. A obra "Cartas de Olinda a Alzira", que utiliza para defender
sua argumenta��o, n�o � de Bocage, mas de Voltaire. Bocage apenas a
traduziu. E, portanto, n�o pode ser responsabilizado pelos conceitos ali
emitidos, ainda que, ao seu tempo, a originalidade n�o fosse incensada pelos
poetas e os tradutores pouco se preocupassem com a fidelidade ao texto original.
Bocage,
sempre muito caudaloso, costumava acrescentar versos �s tradu��es que fazia.
Em 1801, ao traduzir o poema did�tico "Os Jardins ou a Arte de aformosear
as paisagens", do franc�s Delille, embora no pr�logo tenha garantido que
a sua vers�o foi a mais concisa que p�de ordenar, gastou mais 426 versos do
que o autor. No original, o poema tem 1962 versos, enquanto a vers�o bocagiana
apresenta 2388.
A
diferen�a pode ser atribu�da a certa incapacidade da l�ngua portuguesa para a
economia dos termos da comunica��o do pensamento, mas � imposs�vel deixar de
concluir que Bocage, ao traduzir, permitia a imagina��o voar, recriando os
versos, a ponto de praticamente compor um novo poema. Para ele, traduzir
significava tamb�m criar ou reelaborar. E o exemplo mostra que n�o o fazia
apenas quando produzia "imita��o", ou seja, quando escrevia versos
� maneira de algum poeta conhecido, como no caso do poema "�
M�rcia", que traz a didasc�lia entre par�nteses "Imita��o de uns
versos de Mr. Parny". Nada disso, por�m, permite que se aceite o que �
pensamento de Voltaire como se fosse de Bocage.
Ao
buscar "Cartas de Olinda a Alzira" para a sua argumenta��o, P�cora
n�o levou em conta nem mesmo a d�vida que o editor (an�nimo) colocou � nota
seis do livro Poesias Er�ticas, Burlescas e Sat�ricas, que consultou.
L� est�: "Estas famosas cartas gozam desde muitos anos o privil�gio de
andarem encabe�adas no nome de Bocage em diversas edi��es. Se por ventura
n�o s�o dele, ao menos (que n�s saibamos) n�o foram ainda atribu�das a
outro autor". Quer dizer, h� muito que se desconfiava de que a obra n�o
era de Bocage.
A
prova de que as "Cartas de Olinda a Alzira" n�o s�o de Bocage pode
ser encontrada na se��o de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, mais
especificamente no c�dice 10576 ("Miscel�nea curiosa ou cole��o de
diversas poesias"). Em manuscrito do s�culo XIX, as tais Cartas l�
est�o como "traduzidas de Voltaire por Manuel Maria Barbosa du
Bocage" e v�o da folha 81 at� a 112. O c�dice, entre outras produ��es
bocagianas, abriga tamb�m a famosa "Ep�stola a Mar�lia" (que
principia por "Pavorosa ilus�o da eternidade") e "A Manteigui",
al�m de "Cartas de Heloise a Abeilard", traduzidas na primeira parte
"do ingl�s de Mr. Pope em franc�s por Mr. Calardeau e em portugu�s por
Bocage".
Por
fim, a bem da verdade, � preciso tamb�m que se diga que n�o se justifica a
interroga��o que P�cora coloca (� p�g. 169) quanto ao ano da morte de
Tom�s Ant�nio Gonzaga, no ensaio em que analisa o poema "A
Concei��o", ao abordar a edi��o cr�tica preparada por Ronald Polito de
Oliveira e publicada em 1995 pela Editora da Universidade de S�o Paulo (Edusp).
Est� documentalmente provado que Gonzaga morreu na semana que vai de 25 de
janeiro a 1� de fevereiro de 1810. De 24 de janeiro, � o �ltimo documento
dirigido a Gonzaga, juiz interino da Alf�ndega da ilha de Mo�ambique. E, no
dia 2, um substituto assume o cargo de procurador da Real Fazenda, vago por
falecimento do poeta. N�o existe, portanto, motivo para a d�vida.