Quem
caminha pelas ruas do antigo per�metro urbano da cidade de S�o Paulo, o
conhecido Tri�ngulo Paulista - ruas do Ros�rio, S�o Bento e Direita; ou
ent�o pelas suas redondezas - V�rzea do Carmo (regi�o do atual Parque Dom
Pedro II e do Mercado P�blico Municipal), Sul da S� (atualmente localizada
entre a Pra�a da S�, parte do Glic�rio e da Liberdade) e Largo Nossa Senhora
do Ros�rio (hoje Pra�a Antonio Prado), depara-se com constru��es que muito
pouco lembram os momentos em que fora povoada por caf�s, galerias, confeitarias
e at� livrarias, onde se comprava o melhor vinho alem�o, a melhor champanhe
francesa, o melhor chocolate su��o e os mais importantes livros, nas �ltimas
d�cadas do s�culo passado.
A
elite que freq�entava tais ambientes, muito parecido aos cariocas e aos
parisienses, buscava sa�de em novas �reas como Higien�polis, entre
habita��es de luxo. A partir da 1890, nascia como marca desta prosperidade o
s�mbolo dos paulistas, o cart�o postal da cidade, a Avenida Paulista. A
ocupa��o desta �rea marca a progressiva ascens�o de uma burguesia oriunda de
uma elite imigrante, industrial e comercial, destitu�da de tradi��es, fato
notado pela transi��o das moradias de tipo fazenda, modificado pelos bar�es
de caf�, para a miscel�nea ostentosa de estilos diferenciados, quase todos
europeus, no melhor estilo art noveau e neocl�ssico.
A
cidade come�ou a crescer em ritmo acelerado. A grande arrancada se deu entre
1890 e 1900, per�odo em que a popula��o paulistana passou de 64.934
habitantes para 239.820, registrando uma eleva��o de 268% em dez anos, a uma
taxa geom�trica de 14% de crescimento anual. S�o Paulo era a metr�pole que
mais crescia no Brasil. Era a s�ntese do progresso e do desenvolvimento urbano,
oriundo dos excedentes financeiros provenientes da cafeicultura e dos
investimentos de imigrantes italianos e s�rio-libaneses que aqui come�aram a
residir.
O
livro Nem tudo era italiano, de autoria de Carlos Jos� Ferreira dos
Santos procura desvendar uma outra face da metr�pole paulistana. N�o aquela
povoada pelos grandes imigrantes que aqui chegaram, como as fam�lias Matarazzo
ou Jafet, por exemplo, ou os oper�rios italianos residentes nos bairros da zona
leste que, naquele momento, cresciam vertiginosamente acompanhando o ritmo da
urbaniza��o. O que pretende � desvendar outros elementos que constitu�ram a
grande massa populacional da urbe paulistana: os habitantes nacionais que
trabalhavam e experimentavam a pobreza, a exclus�o e o reverso da
metropoliza��o proposta pela elite e pelo governo provincial de S�o Paulo.
S�o
Paulo � um retrato multiangular: cidade s�ntese de v�rios povos e culturas.
Como bem lembrou Caetano Veloso, a capital do Estado mais rico da federa��o �
o �avesso do avesso�. Assim, para compreender esse �avesso� e a
presen�a dos que aprenderam �a chamar-te de realidade� � que Carlos Jos�
adentra o universo dos n�o imigrantes, ou seja, o universo da parcela pobre da
popula��o, conhecidos como negros, �ndios, mesti�os, pretos, pardos,
caboclos, caipiras, mulatos, nativos, brasileiros, os da terra. Denomina��es
encontradas na documenta��o da �poca.
Como
essas pessoas interagiram �s transforma��es na fisionomia urbana que passava
a cidade de S�o Paulo na virada do s�culo passado? Quais os seus modos de
vida? As respostas a estas quest�es, como a muitas outras, levantadas pelo
autor, encontram-se nas instigantes 196 p�ginas que comp�e a obra.
Baseando-se
em fontes demogr�ficas, textuais, plantas da cidade e fotografias, buscou
relacionar dados populacionais e an�lises presentes na �documenta��o
oficial� do governo (em tr�s esferas - municipal, provincial e federal) com a
encontrada em �documentos n�o oficiais�, como, por exemplo, jornais,
revistas, obras escritas por memorialistas e viajantes. Com isso, o olhar acerca
do comportamento e da exist�ncia da parcela pobre da popula��o, como as
informa��es referentes aos apontamentos estat�sticos - demogr�ficos e
descritivos acerca da composi��o sociocultural dos paulistanos e dos
trabalhadores na cidade -, possibilitou ao autor apreender aspectos
diferenciados das transforma��es populacionais do per�odo, quase sempre
elogiadas pela historiografia brasileiras pelo seu sentido civilizat�rio e de
progresso.
A
leitura que faz permite acompanhar aspectos da din�mica do viver urbano e a
evolu��o populacional das diferentes parcelas da popula��o nacional. Assim,
encontramos personagens como o Pai In�cio, vendedor de p�ssaros, ervas,
ra�zes e outros produtos no Mercado Velho, como outros vendedores que se
espalhavam pelas ruas e pra�as da �rea central da cidade.
O
processo de urbaniza��o levou �quela regi�o o progresso, que as promessas
dos governadores diziam representar melhores qualidades de vida. Linhas de bonde
cortavam a cidade, pavimenta��o e energia come�avam a tornar-se realidade,
conforme os novos planos urban�sticos. As fotografias reproduzidas no livro, em
n�mero de 24, permitem-nos notar, mesmo que sorrateiramente, em algumas delas,
esses elementos. Mas, o mais importante das reprodu��es s�o as
particularidades do dia-a-dia captadas �sem querer� pelos fot�grafos,
muitas vezes, respons�veis em registrar o crescimento urbano da cidade e uma
certa europeiza��o do seu centro.
Fotos
de trilhos de bondes com os seus limpadores, vendedores ambulantes batalhando
pelo seu sustento, carregadores de �gua e lavadeiras de roupas na v�rzea do
rio Tamanduate� - imagens da cidade provinciana do s�culo XIX que aparecem
simultaneamente com a da metr�pole que caminhava rumo � nova cent�ria.
Construindo
uma leitura sobre diferentes modos de viver e de trabalhar em S�o Paulo, o
livro divide-se em tr�s cap�tulos interligados entre si. No primeiro
cap�tulo, Os elementos indiscut�veis de nosso progresso, Carlos Jos� procurou
recuperar cr�tica e historicamente o projeto modernizante e o de branqueamento
que se pretendeu instituir em S�o Paulo. Os modos e as maneiras pelas quais a
popula��o pobre interagia com essas transforma��es s�o os objetivos desse
item.
No
cap�tulo seguinte, Em busca da presen�a dos nacionais pobres: espa�os
urbanos, trabalho, cultura e transgress�o, discute as formas de resist�ncia
criadas por essa popula��o ao modelo urban�stico e sociocultural que se
queria implantar. Projeto de uma �hipot�tica� civiliza��o moderna, branca
e europeizada, que procurava esconder ou destruir os vest�gios de uma suposta
barb�rie relacionada � popula��o pobre.
O
�ltimo item versa sobre os Servi�os de negros - na cad�ncia de modas
ind�genas e africanas. Analisando os trabalhadores de ruas e pra�as, os
carroceiros e ambulantes, assim como as mulheres em seus servi�os dom�sticos
(amas-de-leite, criadeiras, empregadas dom�sticas) e os homens, que se
dedicavam aos servi�os de eventuais, tais como os lavadores de casas, os
matadores de gafanhotos, de formigas, tratadores de cavalos, varredores de vias
p�blicas, etc., adentra nos particularismos da vida privada daqueles
indiv�duos. Este cap�tulo � o mais interessante do conjunto, devido �
percep��o proporcionada por outros modos de viver da parcela pobre da
popula��o. Por tr�s de um projeto urbano h� um projeto de exclus�o social,
e esses personagens s�o os ind�cios de resist�ncia que encontramos na cidade
de S�o Paulo no in�cio deste s�culo. Pelas imagens e conclus�es a que chega
o autor, as �reas que sofreram maior interfer�ncia provincial e municipal s�o
as �reas que hoje sofrem com a pauperiza��o de suas popula��es e ruas.
Todas
essas indica��es apontam para �ngulos de leitura que s�o m�ritos de Nem
tudo era italiano: o rigor na pesquisa, o tratamento das fontes, a
constru��o da narrativa, onde se descreve a hist�ria de personagens que
raramente deixaram testemunhos escritos, mas cujos valores, a��es e
sentimentos s�o percebidos nas entrelinhas dos registros deixados pelos grupos
dominantes e pelos memorialistas. Avan�a em muitas quest�es referentes ao
projeto de marginaliza��o da popula��o pobre que habitava ou circulava pelas
�reas centrais durante o momento de crescimento e urbaniza��o da cidade de
S�o Paulo, na virada do s�culo XIX para o XX. Mais do que uma simples
disserta��o de mestrado, esse trabalho liga quest�es socioculturais do
in�cio de nossa modernidade com problemas sociais que hoje se repetem com a
grande massa populacional da megal�pole S�o Paulo.