Charles
Frederick Hartt, um cientista canadense que, no s�culo XIX, dedicou 13 dos 38
anos de sua vida a estudar o Brasil, acaba de ganhar uma biografia
intelectual, escrita com rara sensibilidade liter�ria por Marcus Vin�cius
de Freitas, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Ao reconstruir o percurso
intelectual de seu personagem, Freitas aproveita para jorrar luz sobre a
inser��o do naturalista no ambiente cient�fico-intelectual do Brasil nas
d�cadas de 60 e 70 do s�culo XIX.
Nascido
em Fredericton, Nova Brunswick, Canad�, a 23 de agosto de 1840, Hartt, s�dito
da rainha da Inglaterra, portanto, filho de um diretor da Horton Academy, de
Wolfville, Nova Esc�cia, desde cedo teve o seu interesse despertado para a
Ci�ncia por um professor de mineralogia e geologia da Acadia College, a quem
passou a auxiliar na organiza��o de um museu de minerais, f�sseis e pedras.
Em 1860, quando terminou a universidade, Hartt voltou com a fam�lia para Nova
Brunswick, dessa vez para residir em Saint John, onde o pai abrira uma high
school para rapazes e mo�as, uma novidade para o lugar e a �poca.
Trabalhando
na escola do pai, Hartt chamou a aten��o do famoso naturalista Agassiz ao
fazer uma descoberta extremamente original em Fern Ledges, uma praia rochosa
perto de Saint John. Onde outros naturalistas nada viram, Hartt encontrou alguns
insetos f�sseis, os mais antigos at� ent�o conhecidos. A descoberta serviria
para criar uma aura em torno do jovem naturalista, ent�o com apenas 21 anos.
Afinal, o inseto chegou a ser citado por ningu�m menos que Charles Darwin.
Convidado
em 1862 para completar seus estudos no rec�m-fundado Museu de Zoologia
Comparada de Harvard, em Cambridge, no estado americano de Massachusets, Hartt
tornou-se disc�pulo de Agassiz, � �poca o maior naturalista que havia sobre a
face da Terra. Isso, no entanto, mais tarde, n�o o impediu de ficar, ainda que
polidamente, contra o mestre em sua famosa querela com Darwin. De forma��o
marcada pelo idealismo alem�o, Agassiz morreu sem nunca aceitar a teoria
evolucionista de Darwin que, ao defender a concep��o transformativa da
hist�ria natural, em resumo, deixava claro que as transforma��es na Terra e
dos seres vivos n�o estavam nas m�os de um ser supremo, mas incrustadas nas
pr�prias leis da natureza.
Para
Agassiz, as ra�as humanas e mesmo as diferentes l�nguas seriam entidades
aut�nomas, sem rela��o umas com as outras. Tinha, portanto, todos os motivos
para fazer a mais ferrenha oposi��o ao autor de Origem das esp�cies.
E, mesmo depois que houve um consenso da comunidade cient�fica mundial em torno
da tese darwinista, ele n�o deu o bra�o a torcer. Em sua briga particular com
Darwin, Agassiz apostava na possibilidade de comprovar a a��o das geleiras no
processo de forma��o do continente americano, o que garantiria o isolamento
catastr�fico da Am�rica. Para Agassiz, essa cat�strofe constituiria mais uma
evid�ncia contra os evolucionistas.
Foi
assim que o Brasil surgiu para Agassiz como a grande e �ltima cartada contra a
teoria darwinista. Seria tamb�m uma forma de recuperar o prest�gio perdido. Em
carta com data de 6/5/1865, convenceu o imperador Pedro II da import�ncia de
uma expedi��o. E, assim, surgiu a oportunidade para a primeira viagem de Hartt
ao Brasil como participante da expedi��o Thayer, nome do milion�rio de Boston
que aceitara financiar a aventura de Agassiz e seus disc�pulos.
A
expedi��o serviu para Agassiz produzir um dos maiores fiascos da hist�ria da
geologia. Dizia ter encontrado drift no solo brasileiro, como prova de
uma suposta a��o das geleiras no Brasil. Em sua necessidade de se opor a
Darwin, viu o que queria ver. J� Hartt preocupou-se com outras quest�es,
estudando por quinze meses a geologia da costa brasileira do Rio de Janeiro �
Bahia. Suas observa��es constitu�ram o livro Geologia e geografia f�sica
do Brasil, que, publicado em 1870, logo se tornou um marco no caminho da
institucionaliza��o das ci�ncias naturais no pa�s.
Entusiasmado
com o que vira e pesquisara, em 22/6/1867 Hartt deixa Nova York no vapor Havana
para passar f�rias na costa brasileira. Tr�s s�culos depois, repete o
entusiasmo de Pero de Magalh�es G�ndavo para descrever a exuber�ncia da
flora, da fauna e dos acidentes geogr�ficos do litoral brasileiro. Produz
v�rios textos e carregou material para numerosas confer�ncias em seu retorno
aos Estados Unidos. Leva consigo tamb�m o sonho de instalar um servi�o
geol�gico no Brasil, capaz de articular as pesquisas em todo o extenso
territ�rio do Imp�rio, aproveitando o indisfar��vel interesse do imperador
pelas ci�ncias.
O
segundo ciclo da experi�ncia de Charles Frederick Hartt no Brasil abre-se com
as duas viagens da Expedi��o Morgan e vai at� 1874. Esse per�odo � marcado
pela refuta��o que faz da teoria de Agassiz sobre a a��o glacial no
continente sul-americano e, sobretudo, pela publica��o de artigos de
etnografia brasileira. A partir de 1874, enfim, abre-se o terceiro ciclo de seus
estudos. � quando empreende sua �ltima e mais longa viagem ao Pa�s para
assumir a Comiss�o Geol�gica do Brasil. Deixara de ser o estudante de Agassiz
ou o pesquisador independente de 1867 para se tornar um renomado professor de
Geologia de Cornell, cujos estudos sobre o Brasil j� estavam consagrados.
Viaja
para o Brasil como chefe de uma equipe que inclu�a nove estudantes de Cornell e
um bot�nico. Entre esses estudantes, estava Orvile Derby, que viria a ser o
continuador do trabalho de Hartt no Brasil e ator principal do processo de
institucionaliza��o das ci�ncias geol�gicas no pa�s.
A
passagem de Hartt pelo Brasil conclui com sua morte prematura em 1878, v�tima
de febre amarela. No tempo em que esteve no pa�s, exerceu um papel de
transi��o: a ci�ncia brasileira seria diferente antes e depois dele. Como
observa Marcus Vin�cius de Freitas, a import�ncia de sua imagem de cientista
para o ambiente intelectual brasileiro daquele momento pode ser avaliada pelo
lugar que seu nome e seu trabalho ocuparam na Exposi��o Antropol�gica
Brasileira, montada por Ladislau Netto, em 1881.
Ao
todo, o naturalista faria cinco viagens ao Brasil, deixando uma incr�vel
profus�o de materiais e conhecimento que o coloca no pante�o dos grandes
naturalistas do s�culo XIX, como Saint-Hilaire, Humboldt, Von Martius e Spix,
que se embrenharam e descreveram a natureza e a cultura brasileiras. Seu
trabalho vai influenciar figuras decisivas da cultura brasileira no s�culo XX,
como, por exemplo, M�rio de Andrade, que tratou de se inspirar em Hartt em sua
reinven��o liter�ria dos mitos nacionais.
Originalmente
tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Estudos Portugueses e
Brasileiros da Brown University, em Providence, em abril de 2000, este trabalho
de Marcus Vin�cius de Freitas contou com o apoio de duas figuras cimeiras no
mundo cultural luso-brasileiro nos Estados Unidos: os professores George
Monteiro, orientador, e On�simo Almeida, diretor do Departamento de Estudos
Portugueses e Brasileiros. O resultado � um trabalho de fundamental
import�ncia para a recupera��o da contribui��o de Hartt ao panorama
cultural do Brasil na segunda metade do s�culo XIX.