Manilha
� uma bra�adeira ou tornozeleira, geralmente de cobre ou ferro, prata e ouro,
que era utilizada como moeda na �frica antes da chegada dos europeus e que foi
copiada pelos colonizadores. J� libambo significa uma corrente que era atada ao
pesco�o dos negros cativos, geralmente utilizada nos deslocamentos, e n�o raro
tamb�m unida �s m�os j� atadas.
Com
a manilha e o libambo, Alberto da Costa e Silva criou uma met�fora para
explicar num extenso ensaio o que foi a �frica colonial: a escravid�o
sustentando o desenvolvimento de uma economia que, descoberta e explorada pelos
europeus, expandiu-se e serviu para acelerar o crescimento de outras regi�es do
mundo, especialmente do Brasil, cuja hist�ria � insepar�vel da hist�ria
africana.
Com
este volume de A manilha e o libambo: a �frica e a escravid�o, de 1500 a
1700, de mais de mil p�ginas, Costa e Silva, autor de A enxada e a
lan�a: a �frica antes dos portugueses (1992) e de As rela��es entre o
Brasil e a �frica Negra, de 1822 � I Guerra Mundial (1996), retoma
um tema que o consagrou como historiador e african�logo.
De
in�cio, vira do avesso um argumento de Karl Jacoby - repetido mais recentemente
por David Brion Davis - de que a domestica��o de ovelhas, cabras, porcos,
bois, cavalos e outros animais, durante o Neol�tico, teria servido de modelo
para a escravid�o de seres humanos. E prop�e o inverso: que a experi�ncia de
escravizar homens tenha sido aplicada na domestica��o dos animais, sem recusar
que os dois processos, em algumas culturas, tenham andado de m�os dadas. Para o
autor, � mais prov�vel que o homem tenha colocado a corda no pesco�o de outro
homem e o fez trabalhar para si muito antes de colocar um animal a seu servi�o,
exceto talvez o c�o.
Desde
as ra�zes no Egito fara�nico, passando pela Gr�cia antiga e alastrando-se com
a expans�o do Isl�, que carecia de m�o-de-obra e via na pr�tica uma maneira
leg�tima de expiar a culpa dos �mpios, a escravid�o � analisada por Costa e
Silva como um fen�meno econ�mico que, posteriormente, derivou em a��es de
discrimina��o racial. Na sua longa e bem fundamentada pesquisa, ele deixa isso
claro recorrendo a relatos de divis�es negras dos ex�rcitos, aos manuais de
avalia��o de temperamento dos cativos e mesmo �s diferen�as na emascula��o
de soldados: os eunucos brancos tinham apenas o saco escrotal extirpado,
enquanto os negros eram decepados rente ao abd�men.
Costa
e Silva explica que os que defendem a tese de que o com�rcio de escravos �
dist�ncia foi respons�vel pelas transforma��es que sofreu na �frica a
escravid�o lembram que o escravismo em grande escala se verificou sobretudo em
sociedades ligadas ao tr�fico transaariano e, mais tarde, ao transatl�ntico.
Ou a ambos. E apresentam exemplos de povos que sequer conheciam a escravatura,
mas acabaram por adot�-la, por press�o externa, como os diolas da Casamansa,
que s� se fizeram senhores de escravos no decorrer do s�culo XIX.
Para
Costa e Silva, � poss�vel argumentar que o desenvolvimento da escravid�o na
Eti�pia e na N�bia tenha tido por est�mulo as transa��es com seres humanos
- mulheres, rapazolas e eunucos - que, desde tempos imemoriais, se faziam pelo
mar Vermelho e a descer o Nilo. Mas, retruca, � poss�vel tamb�m sustentar que
foi em Axum e na N�bia que a Ar�bia recolheu incentivos para ampliar o uso de
escravos.
Fosse
como fosse, o certo � que, na �frica de terras extensas e dotada de
instrumentos de trabalho muito rudimentares, era mais rico quem conseguisse
multiplicar o n�mero de homens e mulheres sob suas ordens. Era a posse do
trabalho de outrem que garantia a expans�o das riquezas. E era mais poderoso
quem tivesse sob suas ordens grande quantidade de homens e armas.
Foi
essa situa��o que os europeus encontraram na �frica. N�o inventaram o
com�rcio de escravos, mas s� se aproveitaram de um estado de coisas que vinha
de tempos remotos. Como explica o autor, os escravos eram disputados por pelo
menos tr�s grandes mercados: o local, o inter-regional e o oce�nico, fosse
atl�ntico ou �ndico, neste se incluindo o mar Vermelho.
Por
quase toda a parte, os europeus e seus prepostos tinham de apresentar-se com as
melhores condi��es de compra do que as vigentes nas feiras vizinhas e do que
as oferecidas pelos mercadores mu�ulmanos. Tantos eles quanto os islamitas
tinham de propor aos r�gulos, chefes e homens fortes da terra compensa��es
suficientemente atrativas para convenc�-los a se desfazerem de um bem pelo qual
se media a riqueza e o poder.
Segundo
as pesquisas de Costa e Silva, nos s�culos XVI e XVII, a maior parte dos
cativos produzidos pelas guerras, pelas razias, pelos seq�estros e pelas
senten�as penais n�o era vendida �s c�filas nem �s caravelas, mas ficava
mesmo como escravo na �frica. Os chefes n�o se alienavam sen�o de uma
fra��o, embora grande, conservando os que se tinham por melhores ou mais
adapt�veis. Entre guardar jovens adultos ou crian�as, estas eram preferidas
porque mais f�ceis de se incorporarem � comunidade. Preferia-se vender um
homem a uma mulher, porque esta, al�m de gerar mais gente para o grupo, podia
ser mais produtiva como agricultora, oleira ou tecel�.
Ler
este livro de Costa e Silva � desfazer um sem n�mero de mitos e preconceitos
em rela��o � escravid�o. � saber, por exemplo, que, embora importante para
as elites de algumas comunidades, o com�rcio de gente n�o representava mais do
que uma parcela �nfima das economias africanas. E que o africano, sempre que
p�de, impediu que os europeus chegassem �s fontes de suas riquezas - �s minas
de ouro e de cobre, por exemplo - ou controlassem um pouco que fosse das
produ��es da terra.
Com
as exce��es em Angola, no Cabo da Boa Esperan�a e em Mo�ambique, ele n�o
permitiu que, descidos em terra, os brancos fechassem espa�os para suas
planta��es ou sa�ssem a pastorear gado. At� mesmo num enclave como o de
Luanda, com os estabelecimentos que dela dependiam, diz o autor, seria
necess�rio distinguir entre o poder nominal portugu�s e a hegemonia real
africana. Eram os africanos que controlavam as feiras no interior e a
circula��o das mulheres, que comandavam os rios e os caminhos do sert�o e que
regulavam os pre�os e o com�rcio. Eram as suas moedas que movimentavam as
trocas, e n�o as de Portugal, que quase sempre tiveram de ser impostas �
for�a.
A
prosa rica e o estilo conciso e elegante deste livro, em meio a cita��es em
abund�ncia, t�m uma raz�o: Alberto da Costa e Silva � tamb�m um fino poeta,
um artes�o do verso. Servem de complemento para uma obra atual�ssima que,
desde j�, merece lugar cativo nas estantes dos historiadores da escravid�o.
Embaixador do Brasil em Portugal de 1986 a 1990, na Rep�blica de Benim e na
Nig�ria, o autor serviu na �frica em v�rias oportunidades, o que, a par da
sabedoria livresca, lhe deu o conhecimento da terra e dos costumes de um
continente t�o m�ltiplo. Tudo isso nos permite consider�-lo, hoje, sem
d�vida, o maior african�logo da L�ngua Portuguesa, embora afirma��es
categ�ricas n�o sejam caminhos de convic��o mas de pol�mica. Deste seu
antol�gico e exemplar livro, por�m, para se repetir o que Agostinho da Silva
disse da obra anterior, pode-se afirmar que � a continua��o da �b�blia da
terra�.